Deve-se
conferir aos primeiros monges cristãos – a começar
dos pioneiros Santo Antão e São Pacômio, no
século 4 – o crédito de ter feito as mais profundas
descobertas sobre a alma. Em seu objetivo de se isolar no deserto
por dezenas de anos, e assim forçar a alma a retornar a seu
estado de pureza original, como se encontrava antes de o pecado
corrompê-la, eles experimentaram sentimentos e emoções
que revelaram traços ocultos da psicologia humana. Mais tarde,
homens como João Cassiano e São Gregório Magno
investigaram essas experiências e relacionaram os sete principais
vícios a que a alma está suscetível –
o que ficou conhecido como “os sete pecados capitais”,
assim chamados porque cada um deles tem a capacidade de atrair consigo
“uma multidão” de outros pecados. Esses vícios
são: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula
e acídia.
Ao
contrário dos outros vícios bem conhecidos –
ninguém tem dúvidas sobre o que é inveja ou
gula, por exemplo –, a acídia atravessou os séculos
praticamente ignorada. Após a Revolução Industrial,
no século 18, ela chegou até mesmo a ser mal traduzida
por “preguiça”, possivelmente numa tentativa
de condenar a indolência e evitar a queda de produção
dos operários nas fábricas européias. Agora,
o medievalista Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação
da USP, mostra para o mundo contemporâneo o significado desse
vício, tema do ensaio “O pecado capital da acídia
na análise de Tomás de Aquino”, publicado no
livro Sete Conferências sobre Tomás de Aquino, recentemente
lançado pela Editora da Escola Superior de Direito Constitucional
(ESDC).
Tristeza
e alegria – Segundo Lauand, acídia é
um estado da alma decorrente da contemplação de si
mesmo e do mundo. Abandonada à reflexão profunda,
a alma indaga sobre o sentido das coisas, do ser e da existência.
Tal consciência é algo tão terrível que
o ser humano tende, até inconscientemente, a fugir dela.
Para Lauand, é a isso que se refere o filósofo francês
Blaise Pascal (1623-1662), quando afirma, em seus Pensamentos, que
o homem não consegue ficar a sós consigo mesmo num
quarto. Ao contrário, as pessoas se agitam, tratam de arrumar
várias atividades a fim de se manter ocupadas, buscam a variedade,
fazem guerras, promovem revoluções – tudo para
não pensar em si mesmas e em sua condição.
A
profunda contemplação de si mesmo pode levar o indivíduo
a duas situações opostas, segundo Lauand. Uma delas
é um estado de grande euforia e arrebatador entusiasmo. Isso
porque, ao analisar as coisas ao redor, a alma chega à conclusão
de que o mundo – criado por Deus, que é o perfeito
Bem e só pode dar origem a coisas boas – é maravilhoso
demais. O Universo infinito, os astros cintilantes, a água
cristalina, a delicada flor, os olhos de uma criança, o amor
de Deus: tudo é indescritível e extraordinariamente
belo, e a consciência disso produz uma alegria igualmente
indizível.
Entretanto, conhecer-se profundamente provoca outra situação
– o desespero. O homem se vê só, destituído
de tudo o que possa disfarçar sua condição,
um ser insignificante diante do mundo infinito, sem saber de onde
veio, para que veio e para onde vai. O resultado é a tristeza,
a depressão, a inatividade, a angústia. “Isso
acontece porque, como ensina Tomás de Aquino, o homem, como
criatura de Deus, procede do nada, Deus o criou do nada”,
explica Lauand. “Em si ele é treva. Só é
luz na medida em que participa do ser de Deus.” Dada essa
capacidade de fazer a alma transitar da euforia à depressão,
Lauand acredita que a acídia pode ser uma das causas do transtorno
bipolar, o mal que leva a variações bruscas do estado
de humor do indivíduo.
Garota de Ipanema – Em seu ensaio, Lauand mostra
vários exemplos – extraídos da literatura, da
poesia e da filosofia – de que a acídia é uma
realidade bem presente na vida e no coração do ser
humano. Um desses exemplos é a música Garota de Ipanema,
composta em 1962 por Tom Jobim e Vinícius de Moraes. A composição
dessa obra está marcada pela acídia, segundo o professor.
Primeiro, os autores ficam extasiados diante da beleza da mulher:
Olha, que coisa mais linda
Mais cheia de graça (...)
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Logo depois, abruptamente, a letra deixa de exaltar a beleza das
coisas para expressar solidão e tristeza:
Ah, por que estou tão sozinho
Ah, por que tudo é tão triste
E, num terceiro momento, volta a refletir uma alegria esfuziante:
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
O mesmo tédio típico da acídia foi captado
pela sensibilidade de Carlos Drummond de Andrade, no poema Cidadezinha
qualquer:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Na inércia ou na atividade, o homem não consegue fugir
do desconforto de si mesmo, diz Lauand, citando o Livro do Desassossego,
de Fernando Pessoa, que afirma: “Mas, umas vezes em pleno
trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos
moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me
a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não
da obra ou do repouso, mas de mim”.
Tomás de Aquino – lembra Lauand – considera que
o oposto da acídia é o dom da fortaleza, ou seja,
o esforço por não se deixar dominar por essa acidez
da alma. Além de desenvolver tal dom, acrescenta Aquino,
o homem deve meditar nos “bens espirituais” e, com isso,
participar do ser de Deus, onde ele encontra a verdadeira felicidade.
“É certo que a felicidade definitiva do homem reside
na posse de Deus pela contemplação, pelo olhar de
amor, mas, para Aquino, essa felicidade não é algo
‘transferido’ para depois da morte”, comenta Lauand.
“É, sim, algo que irrompe, que já se inicia
nesta vida, pela fruição do bem de Deus nos bens do
mundo.”
Segundo Lauand, a acídia passa despercebida para a imensa
maioria dos homens – que sente seus efeitos mas não
a conhece (mesmo porque a palavra acídia, que dá acesso
a essa realidade, praticamente saiu do vocabulário das pessoas).
O ensaio do professor pode ajudar o ser humano a descobrir mais
sobre si mesmo. |
“O homem é um
ser que esquece”
Além
do ensaio sobre a acídia, o novo livro do professor Jean
Lauand, Sete Conferências sobre Tomás de Aquino, traz
outros instigantes artigos. Um deles é “A unidade da
idéia de homem em diferentes culturas”. Nele, o professor
mostra que diferentes obras da humanidade – dos textos sagrados
do cristianismo e do islamismo até a mitologia grega e a
música popular – revelam as mesmas características
do ser humano, hoje ignoradas.
Uma
dessas características é que o homem é “um
ser que esquece”. Não se trata de esquecer de pagar
o aluguel – brinca Lauand –, mas sim de ignorar as dimensões
mais profundas do seu ser, como o fato de que ele é uma criação
de Deus. Como tal, é uma criatura destinada à “última
potência”, a realizar plenamente tudo aquilo para o
que é chamado a ser.
Não
foi à toa que os deuses, reunidos no Olimpo para ver as obras
de Zeus, disseram ao soberano supremo da religião grega:
“É tudo muito bonito, mas estão faltando criaturas
que louvem e reconheçam a grandeza divina deste mundo”,
pois o homem é um ser que esquece, escreve Lauand, parafraseando
o poeta grego Píndaro (século 5 antes de Cristo).
No
livro do profeta Isaías – um dos textos do Velho Testamento
–, Deus garante que jamais se esquecerá do homem, ainda
que a mulher (ser que esquece) se esqueça de sua criança
de peito (Isaías 49:15). No Alcorão (20, 50-52), Deus
se apresenta como “aquele que não esquece”, em
contraposição ao homem. E a própria palavra
homem em árabe, insan, significa “aquele que esquece”.
“Só a partir dessa consciência de que o homem
é esquecidiço é que se pode edificar uma educação
digna desse nome”, afirma Lauand.
Outros
ensaios publicados em Sete Conferências sobre Tomás
de Aquino são “Deus ludens – O lúdico
no pensamento de Tomás de Aquino e na pedagogia medieval”,
“Antropologia e formas cotidianas – A filosofia de Tomás
de Aquino e nossa linguagem do dia-a-dia”, “Ciência
e Weltanschauung – A álgebra como ciência árabe”,
“A filosofia da educação no novo Catecismo Católico”
e “Método e linguagem no pensamento de Josef Pieper”. |