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O A criatura que o salmista viu um pouco abaixo dos anjos, Darwin mostrou estar apenas um pouco acima dos irracionais, afirma John Greene no livro A morte de Adão – Evolução e seu impacto no pensamento ocidental. Se antes o homem era uma criação divina que ganhou vida através de um sopro, agora ele e todos os seres vivos são apenas o resultado de uma bem-sucedida mutação casual de espécies anteriores. Com essa idéia, publicada em 1859 no livro A origem das espécies, o cientista inglês Charles Darwin chocou a sociedade e revolucionou a ciência. Sua teoria, que defende que as espécies têm uma origem comum e que elas se diferenciaram através do processo da seleção natural, transformou para sempre o modo de o ser humano enxergar a natureza e a si mesmo. Desde então, Darwin foi atacado, criticado e contrariado, mas o evolucionismo permanece, ainda hoje, a forma mais aceita pelos cientistas para explicar a origem e a diversidade da vida na Terra.

foto: kika mandaloufas
Mayana Zatz na abertura do evento: debate extremamente atual

Discutir essa teoria e analisar seus impactos ao longo do tempo foi o objetivo da 5a São Paulo Research Conference – Teoria da Evolução: Princípios e Impactos, realizada nos dias 18, 19 e 20 de maio no Auditório da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo. O evento, aberto pela pró-reitora de Pesquisa, professora Mayana Zatz, reuniu palestrantes de diversas universidades e de diferentes áreas de estudo. “É um tema científico importante, essencial para a biologia, a medicina, a geologia, a paleontologia e a antropologia. Sem a teoria da evolução, a ciência é solapada”, afirmou ao Jornal da USP o professor Boris Vargaftig, docente do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e organizador do evento. Vargaftig também lembrou que a discussão acontece num momento “particularmente importante”, uma vez que, segundo ele, o público está cada vez mais inclinado a aceitar as idéias criacionistas – que vêem o mundo e o homem como criação de Deus –, em lugar do racionalismo científico.

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Religião e ciência – O embate entre criacionistas e evolucionistas foi muito citado no evento. Apesar de verem o livre debate de idéias como algo produtivo, os participantes mostraram uma certa preocupação com a expansão das crenças religiosas no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos. “Uma entidade superior que tem a capacidade de quebrar as regras do mundo natural mata a ciência”, afirmou em sua palestra o professor José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências da USP. Ele lembrou que, quando se ataca uma teoria com base no misticismo, faz-se um ataque a toda a ciência. Amabis ressaltou, porém, que isso não significa dizer que o sobrenatural não exista, mas que os métodos científicos não permitem investigações dessa ordem.

Apesar da simplicidade e da lógica presentes nas idéias de Darwin, sua teoria foi atacada desde o começo, como foi narrado no evento. O criacionismo era amplamente aceito e tinha importantes defensores, entre eles o teólogo William Paley, autor de Teologia natural, de 1802. Paley fez uma famosa analogia da vida, comparando-a a um relógio, muito citada no evento. Segundo ele, o relógio é um mecanismo complexo, resultado de um projeto inteligente que, portanto, pressupõe a existência de um criador, o relojoeiro. Da mesma forma, a complexidade presente nos organismos vivos deve ser vista como uma evidência da existência de um criador. A idéia de Paley, sintetizada nessa analogia, ainda tem muitos adeptos. Ela está, por exemplo, na base do mais moderno opositor do darwinismo, a chamada teoria do design inteligente.

Nova luz – Quando publicou sua obra, Darwin tinha consciência do impacto do que estava propondo. Ele sabia, também, que inúmeros novos estudos surgiriam a partir dali. “No futuro distante visualizo novos campos que se estendem para pesquisas ainda mais importantes. Nova luz será lançada sobre a origem do homem e de sua história”, previu em A origem das espécies.

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Isso não demorou a acontecer. August Weismann, por exemplo, com sua crítica à herança dos caracteres adquiridos, deu uma contribuição importante para o darwinismo, como explicou a professora Lílian Al-Chueyr Martins, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, em sua palestra. Weismann mostrou que só eram transmitidas para as próximas gerações as características que estivessem presentes nas células reprodutivas e não em qualquer célula do corpo. O geneticista japonês Motoo Kimura – bastante citado no evento – também dialogou com a teoria darwinista. Kimura aceita a seleção natural, mas faz um reparo às idéias de Darwin sobre as mutações. Para o cientista inglês, as mutações podem ser positivas (que ajudam o indivíduo a se adaptar ao meio) ou negativas (que prejudicam o indivíduo). Já para Kimura, principalmente no nível molecular, ocorrem muitas mutações que não são nem positivas nem negativas. Elas seriam simplesmente neutras.


Charge irônica, publicada
na revista Hornet em 1871, mostra Darwin como um macaco: reflexo do embate entre criacionistas e rvolucionistas, iniciado assim que o cientista inglês publicou sua teoria,
em 1859

Das diversas linhas teóricas que interagiram com o darwinismo, a mais marcante foi certamente o mendelismo. A relação entre essas duas teorias foi o tema do segundo módulo do evento, ministrado pelo professor Amabis. O austríaco Gregor Mendel foi o autor das leis da hereditariedade que, no século 19, explicitaram o processo pelo qual as características são transmitidas através das gerações. Seus estudos, assim como os de Darwin, revolucionaram a biologia, tornando-se a base da genética moderna. Mas, apesar de sua importância, suas idéias foram vistas como opostas à evolução e, inicialmente, não tiveram grande aceitação. Em 1936, Theodosius Dobzhansky publicou Genética e a origem das espécies, uma primeira conciliação entre as duas teses. A partir de então, as teorias passaram a caminhar juntas. Estava surgindo o chamado neodarwinismo.

Com o tempo, além de interagir com as teorias que foram surgindo, o darwinismo ganhou novas aplicações. Para explicar a epidemia da Aids, por exemplo, estão sendo utilizados cada vez mais os conceitos evolucionistas. A palestra de David Watkins, do Laboratório de Pesquisas sobre a Vacina da Aids da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, mostrou isso. Watkins explicou que existe um gene, já conhecido, que torna as pessoas resistentes ao vírus do HIV. Esse gene oferece uma vantagem evolutiva clara e já estaria sendo positivamente selecionado. Estendendo esse processo ao longo prazo, seria possível até imaginar um grupo cada vez maior de seres humanos resistentes ao vírus.

Não só na biologia o darwinismo ganhou novas aplicações. Por exemplo, o chamado darwinismo social, que culminou com a teoria de raças defendida pelo nazismo, traz a idéia de “sobrevivência dos mais aptos” para o contexto social. Também na psicologia a teoria evolutiva está tendo seu papel. O professor César Ades, do Instituto de Psicologia da USP, mostrou, em sua palestra, que Darwin mudou o modo de o homem pensar a si mesmo. O professor destacou que hoje os especialistas acreditam que até mesmo comportamentos, animais ou humanos, podem ser positiva ou negativamente selecionados. Mas, explica Ades, é importante ressaltar que, no caso dos humanos, os comportamentos adaptativos sofrem influência de outros fatores importantes, como o meio social e cultural.


O darwinismo na mídia brasileira

foto: kika mandaloufas

A relação da sociedade brasileira com a teoria darwinista é marcada pelo desconhecimento. Se nos Estados Unidos os fundamentalistas erguem a bandeira do criacionismo, entrando em constantes atritos com a comunidade científica defensora do evolucionismo, aqui raramente algo acontece. A conclusão é dos participantes da mesa-redonda “Mídia e teoria da evolução hoje”, incluída na programação da 5a São Paulo Research Conference.

O jornalista Marcelo Leite, um dos participantes da mesa, mostrou que não há debate público sobre a questão a não ser em casos pontuais como o de 2004, quando Rosinha Garotinho, governadora do Estado do Rio de Janeiro, que é evangélica, afirmou publicamente não acreditar na evolução e propôs o ensino do criacionismo nas escolas públicas. A comunidade científica ficou perplexa e houve um pequeno debate na mídia. A revista Época, por exemplo, publicou a matéria “Rosinha contra Darwin” e logo depois encomendou uma pesquisa ao Ibope sobre o assunto.

A pesquisa foi feita em dezembro de 2004 e teve resultados preocupantes para os defensores do cientista inglês. Mais da metade dos entrevistados, 54%, acredita que o homem se desenvolveu ao longo de milhões de anos, mas que nada foi aleatório ou casual. Deus teria planejado e dirigido o processo. O mais curioso, porém, é que 89% acham que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas e 75% acreditam que ele deveria substituir a teoria da evolução no currículo. Apesar do resultado, a discussão logo caiu no esquecimento.

Para o médico Drauzio Varella, outro participante da mesa, a ausência de discussão ocorre por falta de conhecimento da população. “É preciso informar as pessoas para que haja um debate. Para elas é muito mais fácil acreditar que Deus criou todas as espécies por um milagre e que depois descansou no último dia”, afirmou. O desconhecimento viria da própria formação nas escolas, onde o ensino científico é falho. O professor José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências da USP, convidado a participar da mesa, afirmou que ninguém se mobiliza contra isso porque a escola no Brasil não é levada a sério e, portanto, ninguém dá atenção ao que é ensinado. “A escola não é vista como um lugar de formação e de aprendizagem para você participar da sociedade ativamente. Isso está atingindo até nossos cursos universitários”, alerta.

Se a falta de conhecimento sobre a teoria da evolução começa nas escolas, ela é reforçada pela mídia, que muitas vezes não trata o assunto com a devida precisão, segundo os participantes da mesa-redonda. Para eles, existe também uma visão do próprio leitor comum, que busca nas matérias de jornalismo científico verdades absolutas e fáceis. Marcelo Leite afirmou que tem uma preocupação constante em introduzir
um mínimo de complexidade e de incerteza nas matérias que edita, mas admitiu que não vê muitos colegas preocupados com isso.

A questão da incerteza também foi levantada pela professora Denise Sheepmaker, do Instituto de Biociências da USP, que estava na platéia. Ela ressaltou a importância de inserir na mídia mais informações sobre os métodos científicos, para mostrar a relatividade das teorias científicas. Em resposta, Leite explicou que muitas pessoas encaram a explicitação da incerteza científica como uma fraqueza. “Eu já acho que a força da ciência está exatamente nessa capacidade de autocorreção permanente”, completou, confirmando o que Amabis havia dito em sua palestra. “A grande aquisição da ciência no século 20 foi chegar à conclusão de que a verdade é inatingível pelos procedimentos da ciência.

O que fazemos são explicações possíveis de como o mundo natural funciona”, disse Amabis.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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