![editoria sobre reprodução](ilustras/p1011a.jpg)
O
A criatura que o salmista viu um pouco abaixo dos anjos, Darwin
mostrou estar apenas um pouco acima dos irracionais, afirma John
Greene no livro A morte de Adão – Evolução
e seu impacto no pensamento ocidental. Se antes o homem era uma
criação divina que ganhou vida através de um
sopro, agora ele e todos os seres vivos são apenas o resultado
de uma bem-sucedida mutação casual de espécies
anteriores. Com essa idéia, publicada em 1859 no livro A
origem das espécies, o cientista inglês Charles Darwin
chocou a sociedade e revolucionou a ciência. Sua teoria, que
defende que as espécies têm uma origem comum e que
elas se diferenciaram através do processo da seleção
natural, transformou para sempre o modo de o ser humano enxergar
a natureza e a si mesmo. Desde então, Darwin foi atacado,
criticado e contrariado, mas o evolucionismo permanece, ainda hoje,
a forma mais aceita pelos cientistas para explicar a origem e a
diversidade da vida na Terra.
![foto: kika mandaloufas](ilustras/p1011c.jpg)
Mayana Zatz na abertura do evento: debate extremamente atual |
Discutir
essa teoria e analisar seus impactos ao longo do tempo foi o objetivo
da 5a São Paulo Research Conference – Teoria da Evolução:
Princípios e Impactos, realizada nos dias 18, 19 e 20 de
maio no Auditório da Faculdade de Medicina da USP, em São
Paulo. O evento, aberto pela pró-reitora de Pesquisa, professora
Mayana Zatz, reuniu palestrantes de diversas universidades e de
diferentes áreas de estudo. “É um tema científico
importante, essencial para a biologia, a medicina, a geologia, a
paleontologia e a antropologia. Sem a teoria da evolução,
a ciência é solapada”, afirmou ao Jornal da USP
o professor Boris Vargaftig, docente do Instituto de Ciências
Biomédicas (ICB) da USP e organizador do evento. Vargaftig
também lembrou que a discussão acontece num momento
“particularmente importante”, uma vez que, segundo ele,
o público está cada vez mais inclinado a aceitar as
idéias criacionistas – que vêem o mundo e o homem
como criação de Deus –, em lugar do racionalismo
científico.
![reprodução](ilustras/p1011b.jpg) |
Religião
e ciência – O embate entre criacionistas e
evolucionistas foi muito citado no evento. Apesar de verem o livre
debate de idéias como algo produtivo, os participantes mostraram
uma certa preocupação com a expansão das crenças
religiosas no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos. “Uma
entidade superior que tem a capacidade de quebrar as regras do mundo
natural mata a ciência”, afirmou em sua palestra o professor
José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências da
USP. Ele lembrou que, quando se ataca uma teoria com base no misticismo,
faz-se um ataque a toda a ciência. Amabis ressaltou, porém,
que isso não significa dizer que o sobrenatural não
exista, mas que os métodos científicos não
permitem investigações dessa ordem.
Apesar
da simplicidade e da lógica presentes nas idéias de
Darwin, sua teoria foi atacada desde o começo, como foi narrado
no evento. O criacionismo era amplamente aceito e tinha importantes
defensores, entre eles o teólogo William Paley, autor de
Teologia natural, de 1802. Paley fez uma famosa analogia da vida,
comparando-a a um relógio, muito citada no evento. Segundo
ele, o relógio é um mecanismo complexo, resultado
de um projeto inteligente que, portanto, pressupõe a existência
de um criador, o relojoeiro. Da mesma forma, a complexidade presente
nos organismos vivos deve ser vista como uma evidência da
existência de um criador. A idéia de Paley, sintetizada
nessa analogia, ainda tem muitos adeptos. Ela está, por exemplo,
na base do mais moderno opositor do darwinismo, a chamada teoria
do design inteligente.
Nova
luz – Quando publicou sua obra, Darwin tinha consciência
do impacto do que estava propondo. Ele sabia, também, que
inúmeros novos estudos surgiriam a partir dali. “No
futuro distante visualizo novos campos que se estendem para pesquisas
ainda mais importantes. Nova luz será lançada sobre
a origem do homem e de sua história”, previu em A origem
das espécies.
![reprodução](ilustras/p1011e.jpg)
Isso
não demorou a acontecer. August Weismann, por exemplo, com
sua crítica à herança dos caracteres adquiridos,
deu uma contribuição importante para o darwinismo,
como explicou a professora Lílian Al-Chueyr Martins, da Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo, em sua palestra.
Weismann mostrou que só eram transmitidas para as próximas
gerações as características que estivessem
presentes nas células reprodutivas e não em qualquer
célula do corpo. O geneticista japonês Motoo Kimura
– bastante citado no evento – também dialogou
com a teoria darwinista. Kimura aceita a seleção natural,
mas faz um reparo às idéias de Darwin sobre as mutações.
Para o cientista inglês, as mutações podem ser
positivas (que ajudam o indivíduo a se adaptar ao meio) ou
negativas (que prejudicam o indivíduo). Já para Kimura,
principalmente no nível molecular, ocorrem muitas mutações
que não são nem positivas nem negativas. Elas seriam
simplesmente neutras.
![](ilustras/p1011d.jpg)
Charge irônica, publicada
na revista Hornet em 1871, mostra Darwin como um macaco: reflexo
do embate entre criacionistas e rvolucionistas, iniciado assim
que o cientista inglês publicou sua teoria,
em 1859 |
Das
diversas linhas teóricas que interagiram com o darwinismo,
a mais marcante foi certamente o mendelismo. A relação
entre essas duas teorias foi o tema do segundo módulo do
evento, ministrado pelo professor Amabis. O austríaco Gregor
Mendel foi o autor das leis da hereditariedade que, no século
19, explicitaram o processo pelo qual as características
são transmitidas através das gerações.
Seus estudos, assim como os de Darwin, revolucionaram a biologia,
tornando-se a base da genética moderna. Mas, apesar de sua
importância, suas idéias foram vistas como opostas
à evolução e, inicialmente, não tiveram
grande aceitação. Em 1936, Theodosius Dobzhansky publicou
Genética e a origem das espécies, uma primeira conciliação
entre as duas teses. A partir de então, as teorias passaram
a caminhar juntas. Estava surgindo o chamado neodarwinismo.
Com
o tempo, além de interagir com as teorias que foram surgindo,
o darwinismo ganhou novas aplicações. Para explicar
a epidemia da Aids, por exemplo, estão sendo utilizados cada
vez mais os conceitos evolucionistas. A palestra de David Watkins,
do Laboratório de Pesquisas sobre a Vacina da Aids da Universidade
de Wisconsin, nos Estados Unidos, mostrou isso. Watkins explicou
que existe um gene, já conhecido, que torna as pessoas resistentes
ao vírus do HIV. Esse gene oferece uma vantagem evolutiva
clara e já estaria sendo positivamente selecionado. Estendendo
esse processo ao longo prazo, seria possível até imaginar
um grupo cada vez maior de seres humanos resistentes ao vírus.
Não
só na biologia o darwinismo ganhou novas aplicações.
Por exemplo, o chamado darwinismo social, que culminou com a teoria
de raças defendida pelo nazismo, traz a idéia de “sobrevivência
dos mais aptos” para o contexto social. Também na psicologia
a teoria evolutiva está tendo seu papel. O professor César
Ades, do Instituto de Psicologia da USP, mostrou, em sua palestra,
que Darwin mudou o modo de o homem pensar a si mesmo. O professor
destacou que hoje os especialistas acreditam que até mesmo
comportamentos, animais ou humanos, podem ser positiva ou negativamente
selecionados. Mas, explica Ades, é importante ressaltar que,
no caso dos humanos, os comportamentos adaptativos sofrem influência
de outros fatores importantes, como o meio social e cultural.
|
O
darwinismo na mídia brasileira
![foto: kika mandaloufas](ilustras/p1011f.jpg)
A
relação da sociedade brasileira com a teoria darwinista
é marcada pelo desconhecimento. Se nos Estados Unidos os
fundamentalistas erguem a bandeira do criacionismo, entrando em
constantes atritos com a comunidade científica defensora
do evolucionismo, aqui raramente algo acontece. A conclusão
é dos participantes da mesa-redonda “Mídia
e teoria da evolução hoje”, incluída
na programação da 5a São Paulo Research Conference.
O jornalista Marcelo Leite, um dos participantes da mesa, mostrou
que não há debate público sobre a questão
a não ser em casos pontuais como o de 2004, quando Rosinha
Garotinho, governadora do Estado do Rio de Janeiro, que é
evangélica, afirmou publicamente não acreditar na
evolução e propôs o ensino do criacionismo
nas escolas públicas. A comunidade científica ficou
perplexa e houve um pequeno debate na mídia. A revista
Época, por exemplo, publicou a matéria “Rosinha
contra Darwin” e logo depois encomendou uma pesquisa ao
Ibope sobre o assunto.
A pesquisa foi feita em dezembro de 2004 e teve resultados preocupantes
para os defensores do cientista inglês. Mais da metade dos
entrevistados, 54%, acredita que o homem se desenvolveu ao longo
de milhões de anos, mas que nada foi aleatório ou
casual. Deus teria planejado e dirigido o processo. O mais curioso,
porém, é que 89% acham que o criacionismo deve ser
ensinado nas escolas e 75% acreditam que ele deveria substituir
a teoria da evolução no currículo. Apesar
do resultado, a discussão logo caiu no esquecimento.
Para
o médico Drauzio Varella, outro participante da mesa, a
ausência de discussão ocorre por falta de conhecimento
da população. “É preciso informar as
pessoas para que haja um debate. Para elas é muito mais
fácil acreditar que Deus criou todas as espécies
por um milagre e que depois descansou no último dia”,
afirmou. O desconhecimento viria da própria formação
nas escolas, onde o ensino científico é falho. O
professor José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências
da USP, convidado a participar da mesa, afirmou que ninguém
se mobiliza contra isso porque a escola no Brasil não é
levada a sério e, portanto, ninguém dá atenção
ao que é ensinado. “A escola não é
vista como um lugar de formação e de aprendizagem
para você participar da sociedade ativamente. Isso está
atingindo até nossos cursos universitários”,
alerta.
Se a falta de conhecimento sobre a teoria da evolução
começa nas escolas, ela é reforçada pela
mídia, que muitas vezes não trata o assunto com
a devida precisão, segundo os participantes da mesa-redonda.
Para eles, existe também uma visão do próprio
leitor comum, que busca nas matérias de jornalismo científico
verdades absolutas e fáceis. Marcelo Leite afirmou que
tem uma preocupação constante em introduzir
um mínimo de complexidade e de incerteza nas matérias
que edita, mas admitiu que não vê muitos colegas
preocupados com isso.
A questão da incerteza também foi levantada pela
professora Denise Sheepmaker, do Instituto de Biociências
da USP, que estava na platéia. Ela ressaltou a importância
de inserir na mídia mais informações sobre
os métodos científicos, para mostrar a relatividade
das teorias científicas. Em resposta, Leite explicou que
muitas pessoas encaram a explicitação da incerteza
científica como uma fraqueza. “Eu já acho
que a força da ciência está exatamente nessa
capacidade de autocorreção permanente”, completou,
confirmando o que Amabis havia dito em sua palestra. “A
grande aquisição da ciência no século
20 foi chegar à conclusão de que a verdade é
inatingível pelos procedimentos da ciência.
O
que fazemos são explicações possíveis
de como o mundo natural funciona”, disse Amabis.
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