Nélio
Bizzo já esteve
no paraíso. Não o paraíso onde a serpente
convenceu Adão e Eva a morder a maçã proibida,
mas o paraíso do campus da Universidade de Cambridge, na
Inglaterra. “Lá você se sente no paraíso,
porque todas as ruas, todas as faculdades, tudo se refere a Deus
e aos santos. Sai da Faculdade da Trindade e vai para a de São
João; do Colégio Corpus Christi para a Igreja Santa
Maria”, diz Bizzo, biólogo que atua na Faculdade de
Educação da USP e lá passou uma temporada
fazendo pesquisa. Pois foi nesse paraíso, na universidade
criada no século 16 para questões de fé, que
Charles Darwin cometeu o original pecado de afirmar que o homem,
como todos os seres vivos, é produto da evolução
das espécies. O então ex-candidato a pastor anglicano
teve de ouvir cobras (e lagartos) de teólogos e cientistas
que, interpretando apressadamente seus escritos, concluíam
que pregava que o homem vem direto do macaco.
Mas onde está a novidade? Matéria
que se prezem tem
que abrir com a notícia principal, para que a reportagem
tome a forma de uma pirâmide invertida. Ora, o paraíso
terrestre é tão velho quanto a Bíblia
e o de Cambridge tem quatro séculos. Também não é nova
a história de Darwin, nem que ele continua sendo discutido,
amado e contestado, talvez mais apaixonadamente do que quando
voltou das Ilhas Galápagos. A notícia mais próxima,
e já é da última semana da greve decretada
pelo Sintusp, é que a Faculdade de Educação
promoveu um fórum para discutir coisas da religião
e da ciência. Para esse encontro (finalmente o topo da
pirâmide
invertida), o professor Bizzo levou o problema da relação
entre evolução e religião. Não
estava sozinho. A seu lado assentava-se a erudição
do professor Mário de Pinna, zoólogo evolucionista
que não
recusa debate sobre o tema, nem que seja na televisão
e com padres ou pastores criacionistas. Bizzo queria mostrar como as idéias da evolução
nasceram e como são encaradas atualmente nas escolas. É impossível
separar a teoria evolucionista da religião, porque as próprias
idéias da evolução e as formulações
iniciais de Darwin foram influenciadas pela teologia protestante,
em especial de William Paley, que incentivava o estudo da natureza,
ou teologia natural, como forma de reverenciar o Criador. Registros
manuscritos de Darwin, não destinados a publicação,
revelam a evolução de suas idéias e a influência
que recebeu dos teólogos até os idos de 1844.
O professor Nélio Bizzo
(à direita), com o zoólogo Mário
de Pinna:
formulações
iniciais de Darwin foram influenciadas pela teologia protestante,
que incentivava
o estudo da
natureza -
chamado
de teologia
natural - como forma de
reverenciar
o Criador
Dedicando-se aos estudos da geologia e da
botânica, depois
de desistir da medicina e ir descartando a idéia de tornar-se
presbítero, como a família pretendia, começa
a esboçar uma visão evolucionista com base na doutrina
de que tudo no mundo é harmonia e pressupõe alguém
muito poderoso que o fez. “Conheça o Criador estudando
a criação”, recomendava Paley, ou “conheça
o relojoeiro estudando o relógio”. Não faltaram
na academia contestações ao argumento de que todo
relógio deve ter por trás um desígnio, uma
intenção de criação. Uma referência à polêmica
encontra-se no título de uma obra de Richard Dawkins, O
relojoeiro cego. O problema era explicar não apenas a origem
do relógio, mas também do relojoeiro, pois, se tudo
tem causa e início, quem criou o Criador?
É desse tempo a versão de uma nova geração
de cientistas que acreditava no Intelligent Design (desenho inteligente).
Em vez de atribuir a Deus a evolução observada na
natureza, considerava a necessidade de haver “causas inteligentes” para
explicar as complexas informações provenientes das
estruturas da biologia.
O certo é que também Darwin mudou seus conceitos
depois de se libertar da influência anglicana, deixando até de
acreditar em Deus, depois da morte dolorosa de uma filha de oito
anos. A visão mais madura do cientista prevalece na sua
obra fundamental, A origem das espécies, publicada em 1859.
Agora, em vez de apostar na harmonia perfeita no mundo no dia-a-dia,
que poderia ser perturbada somente por esporádicas catástrofes
naturais, acreditava que harmonia perfeita não existe, mas
prevalece um equilíbrio instável, com modificações
suficientes para dar conta das necessidades dos seres vivos. Por
exemplo, a todo o momento uma infinidade de vírus provocam
a eliminação de organismos, não sendo necessário
esperar terremotos para que ocorra a eliminação seletiva
de indivíduos ou o favorecimento de tipos mais bem adaptados
ao ambiente da vida. A seleção natural é permanente.
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Nas
escolas – Depois de expor a origem teológica
das idéias evolucionistas de Darwin, Bizzo abriu uma série
de livros para explicar como o darwinismo foi e é visto
nas escolas, começando pelo evolucionista alemão
Ernest Haeckel. Adepto do monismo (doutrina filosófica que
considera possível reduzir todas as coisas à unidade),
adversário ferrenho da teologia católica, Haeckel
difundiu o darwinismo na Alemanha, especialmente por meio de palestras,
reunidas em livro em 1906, e analisou as implicações
religiosas da doutrina evolucionista. Suas conferências ganhavam
especial interesse, porque é desse tempo a crença
(não dele) de que a evolução contraria a religião. O segundo livro apresentado pelo professor
Bizzo é Deus
após Darwin (José Olympio, 2004), do teólogo
e professor da Universidade de Georgetown John Haught. Segundo
esse autor, está totalmente superada a idéia de confronto
entre religião e ciência, e a teologia cristã convive
pacificamente com a teoria evolucionista. A pergunta que se segue é até que
ponto a criatividade do processo evolutivo pode ser atribuída
ao acaso, ou se é necessário admitir a intervenção
divina em alguns momentos cruciais. A polêmica não
acabou, mas é certo que até um grande número
de religiosos está convencido de que a evolução
veio para ficar e que não é necessário negar
a existência de Deus para admiti-la.
No entanto, como aceitar, em conformidade
com a teologia cristã,
o pecado original, se o primeiro homem, produto da lenta evolução
da vida, certamente não tinha as mínimas condições
de discernimento entre o bem e o mal, para desobedecer a Deus,
pecar e ver a sua falta castigada em todas as gerações,
até o final dos séculos? Bizzo responde que teólogos
e cientistas modernos asseguram que não se pode traçar
paralelos literais entre o relato bíblico e aquilo que a
ciência vai descobrindo. Portanto, a tradição
judaico-cristã do pecado original deve ser entendida no
contexto da fé. “A idéia de que o homem nasce
devendo algo a Deus não depende de qualquer tipo de comprovação
em achados paleontológicos”, afirma. “Basta
admitir a transcendência e a dependência de um ser
superior que, como se supõe, te quer bem, te ama e te protege.” O
grande crime contra Deus teria sido o livre-arbítrio. Se
o homem não quer seguir as ordens de Deus será expulso
do paraíso.
Isso é debate bizantino e nada tem a ver com ciência.
Por último, o professor serviu-se dos ensinamentos do biólogo
canadense Brian Alters para mostrar as grandes linhas que tentam
interpretar a evolução darwiniana. Das quatro principais
tendências – literais, progressivos, teístas
e projeto inteligente –, apenas a primeira aferra-se ao criacionismo
radical, garantindo que o mundo tem 4 mil anos, não existe
tempo geológico nem evolução nenhuma. O criacionismo
está associado a seitas fundamentalistas e o interessante,
conforme observa Alters, é que essa visão é largamente
encontrada em todos os grupos de opinião dos Estados Unidos,
não havendo diferença quanto a isso entre republicanos
e democratas: 50% dos dois grupos se declaram criacionistas. Até nisso
os dois maiores partidos políticos norte-americanos são
iguais.
O grupo dos progressivos, mais numeroso
e heterogêneo, lendo
a Bíblia, admite que os dias da Criação podem
ser entendidos como eras geológicas. Assim dá para
a religião conviver com a ciência. Os teístas
introduzem na teoria evolucionista a intervenção
divina, afirmando que, se fosse necessário recomeçar
o Universo do zero, tudo se repetiria em razão do plano
original de Deus.
Os adeptos do projeto inteligente consideram que, mais do que ensinar
teorias, que às vezes não passam de conjecturas,
seria melhor admitir a complexidade dos seres vivos e se convencer
de que o mero acaso não pode explicar estruturas tão
complexas como o olho humano. Ou até mais complicadas, como
a bateria de enzimas presentes na célula. O biólogo
Bizzo se entusiasma: “É notável a maneira pela
qual os seres vivos estão organizados nos seus detalhes”.
Por isso mesmo, essa proposta busca ajuda numa inteligência
superior.
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Duas falsas
polêmicas
Faz quatro anos que o Rio de
Janeiro anda envolvido em debates (não) evolucionistas.
Bizzo explica. Em 2002, projeto de lei do deputado Carlos Dias
(PTB) instituiu a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas
oficiais do Estado, respeitando o princípio constitucional
de que esse ensino deve ser facultativo, a critério dos
alunos ou das famílias. Os críticos da lei, “metendo
os pés pelas mãos”, acreditaram que o projeto
aprovado na Assembléia Legislativa iria barrar, ou tornar
obrigatório, algum conteúdo escolar da área
de ciências. Na verdade, a lei fala apenas de ensino religioso,
mas é evidente que nas aulas o professor pode se referir
a todas as teorias que envolvem a origem do homem, inclusive o
criacionismo. O fato de um governador ou governadora acreditar
ou não nas idéias de Darwin é absolutamente
irrelevante. Independentemente do que os Garotinhos pensem, as
diretrizes curriculares nacionais e outras normas em vigor obrigam
as escolas a ensinar aquilo que se aceita em termos de ciência,
e a teoria da evolução está incluída
nisso. Daí porque Bizzo entende que se trata de
uma falsa polêmica.
A cidade de São Paulo também enfrenta a sua pequena
confusão. Pelo jeito, também uma falsa polêmica. É que
a Câmara Municipal aprovou, prefeito promulgou e o Diário
Oficial publicou, há três semanas, lei que cria o
ensino religioso nas escolas municipais. Parte da imprensa e alguns
outros setores estranharam o documento, de apenas três artigos,
suspeitando que representava uma regressão na legislação,
mas ele apenas repete o artigo 210, parágrafo 1o da Constituição,
que trata do ensino religioso. De acordo com o professor Bizzo,
que já foi membro do Conselho Federal da Educação,
a nova lei poderia até ser dispensada, desde que o secretário
da Educação tivesse pedido ao Conselho Municipal
de Educação que regulamentasse a matéria,
conforme estabelece a LDB (Lei de Diretrizes e Bases).
O equívoco da crítica, segundo Bizzo, foi não
ter atentado para o fato de que a redação da lei
anterior, de dezembro de 1996, já tinha sido alterada em
julho de 1997. A primeira versão atribuía o ônus
financeiro pelas aulas às instituições responsáveis
pelo ensino religioso, desonerando o Estado, e criava, ao lado
do ensino confessional (seleção dos alunos por credo),
o ensino interconfessional (um neologismo), que pode ser entendido
como ecumênico ou ensino da história das religiões.
A segunda versão da lei diz que o ensino da religião
não será obrigatório e que o Estado se responsabilizará pelos
gastos decorrentes.
Para o professor Bizzo, as críticas à lei omitem
o principal, discutir a oportunidade desse ensino religioso facultativo.
Ele pergunta se vale a pena o Estado aumentar a complexidade da
estrutura educacional quando nem consegue dar conta dos aspectos
mais elementares e básicos do ensino. “Um aluno que
não sabe ler nem escrever não está preparado
para estudar qualquer coisa da Bíblia.” Bizzo lembra
que o governo recusou a ampliação do ensino fundamental
para nove anos e as escolas municipais deixaram de acolher as crianças
de 6 anos, alegando falta de recursos. “Se não há recursos
para o ensino fundamental pleno, não deveria haver para
o ensino religioso. É incoerente.”
Em outros aspectos, de acordo com o professor
da USP, o Brasil está adiante até de países mais antigos e
desenvolvidos. Recentemente, um milhão de espanhóis
se reuniram no centro de Madri para protestar contra decisão
do governo socialista de acabar com a obrigatoriedade do ensino
do credo católico nas escolas públicas. Pouco tempo
atrás, essa obrigatoriedade alcançava inclusive os
exames de ingresso nas universidades espanholas. No Brasil, lembra
Bizzo, essas coisas foram resolvidas no tempo do Império.
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