O fosso entre os países ricos e as nações
em desenvolvimento está crescendo. Basta dizer que os países
ricos investem em ciência 220 vezes mais recursos do que
os pobres. De acordo com dados de 2002 da Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência
e Cultura (Unesco), os Estados Unidos são responsáveis
por 37% dos investimentos totais do mundo no setor. Os países
asiáticos respondem por 31%, a Europa, por 28% e a América
Latina, por apenas 2%. Esses números serviram de base para
algumas das várias mesas, palestras e seminários
da 10ª Conferência Geral da Academia de Ciências
do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), que reuniu cerca de 450 cientistas
no Resort Blue Tree, em Angra dos Reis (RJ), de 2 a 6 de setembro.
![créditos: francisco emolo](ilustras/p1011d.jpg) “As nações mais desenvolvidas entre aquelas do mundo
em desenvolvimento têm que assumir um papel de liderança
e mais destaque entre os vizinhos, assim como em relação
aos países mais avançados”, disse o matemático
brasileiro Jacob Palis, eleito novo presidente da TWAS na conferência. “Estamos
constatando o fortalecimento da nossa atuação através
de resultados de nossos programas e da excelência dos pesquisadores
que ajudamos a formar, e vamos intensificar as cooperações
entre países, entidades e pesquisadores”, afirmou Palis,
professor do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada
(Impa), sediado no Rio de Janeiro.
Desenvolvimento sustentável, nanotecnologia, mudanças
climáticas e investimento em ciência foram alguns
dos assuntos debatidos pelos cientistas, que também assistiram à palestra
do Prêmio Nobel de Física de 2004, o americano David
Gross, sobre as revoluções por que passa a física
fundamental (leia na página 12) . A conferência
de Angra abriu espaço ainda para uma reunião de ministros
de Ciência e Tecnologia do G-77 (grupo constituído
em 1964 por 77 países que não pertenciam a nenhum
bloco durante a Guerra Fria) e para o primeiro Encontro Regional
de Jovens Cientistas da América Latina. “ Até aqui,
temos olhado para as nações desenvolvidas para que
o Ocidente encontre soluções para nós. Isso
não vai acontecer, porque as soluções de alta
tecnologia das nações desenvolvidas do Ocidente não
têm aplicação para as massas que vivem em pobreza
abjeta em nossos países”, afirmou o ministro de Ciência
e Tecnologia da Índia, Kapil Sibal. “As questões
que os países menos desenvolvidos enfrentam têm a
ver com os problemas do dia-a-dia das pessoas: são problemas
de saneamento, de água, moradia, segurança alimentar,
acesso à eletricidade. O que precisamos fazer é encontrar
soluções simples, acessíveis e de baixo custo
para os pobres dos nossos países.”
A TWAS é uma organização internacional autônoma
fundada em 1983 em Trieste, Itália, sob a liderança
do paquistanês Abdus Salam, Prêmio Nobel de Física
em 1979, e foi oficializada pela Secretaria Geral das Nações
Unidas em 1985. Originalmente chamada Academia de Ciências
do Terceiro Mundo (Third World Academy of Sciences, daí a
sigla em inglês), acabou rebatizada mais tarde. Seu principal
objetivo é promover a capacitação e excelência
científicas e o desenvolvimento sustentável no Hemisfério
Sul. A TWAS atua por meio de vários programas, como financiamento
de pesquisas e pesquisadores, com o intuito de dar apoio para contatos
e cooperação entre cientistas e instituições
dos países em desenvolvimento e também com as nações
desenvolvidas.
A academia tem 807 membros de 72 países – 184 dos membros
(23% do total) são da América Latina e Caribe. Vários
professores da USP participaram da conferência, como o ex-reitor
José Goldemberg, a pró-reitora de Pesquisa, Mayana
Zatz, e o diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA)
da USP de São Carlos, Sérgio Mascarenhas. Para Erney
Plessmann de Camargo, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e docente do Instituto
de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, e Mahir Saleh
Hussein, do Instituto de Física, o evento foi especial porque
marcou seu ingresso como membros efetivos da TWAS. O Ministério
da Ciência e Tecnologia (MCT) e a Academia Brasileira de
Ciências (ABC) foram as co-promotoras da conferência,
ao lado da TWAS.
![créditos: francisco emolo](ilustras/p1011b.jpg) Compromisso – A pouca sinergia existente entre
pesquisa e desenvolvimento e o setor privado é uma realidade
comum na grande maioria dos países em desenvolvimento, constataram
os participantes da conferência. “Raros são aqueles
que investem pelo menos 1% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em
pesquisa”, disse o ministro indiano – o Brasil, de acordo com dados
apresentados no evento, investe 1,37%. Kapil Sibal defendeu que é preciso
atuar em consórcios internacionais, porque, sozinho, “nenhum
país do mundo menos desenvolvido pode realmente destinar
fundos da magnitude necessária para fazer pesquisa nas novas
fronteiras da ciência, como biotecnologia, novos materiais
ou bioinformática”.
Problemas que soam familiares aos brasileiros foram levantados
por ministros de outros países. O nigeriano Turner Isuon
relatou que há cerca de 25 mil doutores formados em seu
país atuando hoje na Europa e Estados Unidos. “Com o final
da ditadura militar, em 1998, já há alguns fazendo
o caminho de volta”, disse. O ministro de Ruanda, Romain Murenzi,
concordou. “Você pode formar pesquisadores, mas sem investimento
e bom governo eles vão embora.” Em Ruanda, entretanto, o
quadro é muitíssimo mais grave. “O genocídio
de 1994 roubou 30 anos de investimento em educação”,
disse Murenzi. A atuação do ministério no
país inclui medidas como confeccionar cartazes sobre as
ciências básicas – os órgãos do corpo
humano, por exemplo – para serem colocados na parede das escolas
fundamentais, muitas das quais recém-inauguradas. Cerca
de 800 mil pessoas foram mortas no genocídio, algo como
11% da população total de Ruanda.
Já o ministro de Ciência e Tecnologia do Irã,
Mohammad Mehdi Zahedi, afirmou que o novo plano qüinqüenal
de seu país prevê o aumento gradual do investimento
em pesquisa e desenvolvimento até atingir 2% do PIB em 2008. “O
governo deve manter seu papel de principal financiador”, disse
Zahedi. De acordo com o ministro, o governo vem aumentando os salários
dos professores universitários e dos pesquisadores, o que
faz com que seus vencimentos sejam os mais altos entre os funcionários
do governo.
“Ciência e tecnologia têm ampla relação
com economia”, disse o ministro iraniano. “Os países em
desenvolvimento têm os problemas do dia-a-dia para atacar
e não dão atenção suficiente para os
investimentos macro de longo prazo”, afirmou Zahedi, que sugeriu
que o G-77 adote o ano de 2010 como o da Economia Baseada no Conhecimento (Knowledge-Based
Economy) .
O indiano Sibal também apresentou três sugestões
ao G-77. As nações em desenvolvimento deveriam criar
um fundo, financiado por 0,01% do PIB de cada país, para
três iniciativas globais: a primeira em energia solar – “fonte
de energia limpa e ilimitada” –, a segunda para pesquisas em biodiversidade
e a terceira em saúde, focando principalmente doenças
como malária, Aids e tuberculose. “Para nossas populações,
não precisamos apenas de financiamento em pesquisa, mas
de paixão e compromisso, e espero que o G-77 tenha isso”,
afirmou Kapil Sibal.
![créditos: francisco emolo](ilustras/p1011c.jpg) Crescimento – Um painel que atraiu especial
atenção na conferência da TWAS, principalmente
entre os africanos, foi a apresentação de diversas
instituições científicas e de pesquisa do
Brasil. Também estavam presentes representantes de companhias
como a Petrobras e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa). O ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil,
Sérgio Rezende, registrou o crescimento do investimento
do governo no setor, apresentando números como o aumento
das bolsas de todos os tipos concedidas pelo CNPq. Em 1996, o órgão
financiava quase 51 mil bolsas, número que caiu para 43
mil em 1999. No governo Lula, a quantidade de bolsas subiu de 45
mil em 2003 para quase 65 mil em 2005.
Erney Plessmann de Camargo, presidente do CNPq, apontou a distribuição
desigual da pesquisa como outro problema a ser atacado. Enquanto
a região Sudeste concentra 59% dos investimentos totais,
o Centro-Oeste tem 7% e o Norte, apenas 3%. “Não podemos
tirar recursos do Sudeste e do Sul, mas sim prover dinheiro novo
para as outras regiões”, defendeu. Os recursos devem vir
dos fundos setoriais. Camargo comemorou ainda o crescimento do
número de doutores formados no Brasil. A expectativa é de
que, em 2010, sejam formados quase 17 mil. “Ainda não sabemos
o que fazer com esses doutores no futuro, mas esse é outro
problema”, disse em tom de brincadeira, provocando risos na platéia
e entre os participantes do painel.
Eduardo Moacyr Krieger, professor aposentado da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto da USP e presidente da ABC, registrou
que o Brasil possui cinco doutores para cada 100 mil habitantes,
enquanto que os Estados Unidos têm 30 e os países
europeus, em média, de 15 a 17. “O Brasil está num
bom caminho de crescimento”, acentuou. O País, entretanto,
tem várias distorções a corrigir. Por exemplo: é responsável
por 1,8% dos artigos científicos publicados no mundo, mas
por apenas 0,2% das patentes registradas. “Os papers são
reflexo da atividade acadêmica, enquanto as patentes têm
relação com o pequeno número de cientistas
na indústria”, apontou Evandro Mirra de Paula e Silva, da
Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. Cerca de
20% dos doutores formados no País atuam no setor industrial, índice
considerado muito baixo em relação aos países
desenvolvidos, onde é de três a quatro vezes maior. “O
maior desafio é estabelecer políticas para ciência,
tecnologia e inovação que sejam de Estado, mais do
que de governo”, disse Carlos Aragão de Carvalho Filho,
diretor da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ligada ao
MCT.
Para Luis Fernandes, secretário-executivo do MCT, os últimos
60 anos marcam o início do desenvolvimento científico
do País e “representam uma história de sucesso”.
Em termos globais, disse, “a distribuição desigual
da capacidade de ciência e tecnologia no mundo é um
problema crucial para os países em desenvolvimento que temos
que enfrentar”. Para Fernandes, esse é “um dos maiores pilares,
senão o maior, da reprodução das desigualdades
no mundo e na sociedade do conhecimento”. A luta contra os subsídios
dos governos dos países desenvolvidos à agricultura
faz parte da política do governo brasileiro, mas é preciso
lembrar, acrescentou, que nas nações ricas o investimento
das empresas privadas em ciência e tecnologia também é altamente
subsidiado pelo Estado. “A competição nesse cenário é muito
difícil, porque não temos os recursos que os ricos
têm para fazer suas empresas competirem no mercado global”,
disse Fernandes. “O mundo não será mais seguro, pacífico
ou justo sem uma distribuição mais igualitária
da capacidade em ciência e tecnologia.”
Junto a todas as discussões sobre desenvolvimento, política
e financiamento, é preciso registrar também a reflexão
de Lu Yongxiang, presidente da Academia Chinesa de Ciências. “Na
tecnologia do futuro, o homem não deve depender exclusivamente
da tecnologia do Ocidente, mas sim deve aprender diretamente da
natureza.” O planeta agradece. |
![créditos: francisco emolo](ilustras/p1011e.jpg)
As vacas da União Européia e
os seres humanos da África Para que vivessem em melhores condições, milhões
de africanos deveriam reencarnar como vacas européias. O comentário,
feito em tom de amarga ironia, foi proferido pelo egípcio
Ismail Serageldin em sua palestra sobre “Os dez mandamentos para
a agricultura global”, uma das mais concorridas conferências
da TWAS em Angra dos Reis. De acordo com Serageldin, os países
ricos fornecem anualmente US$ 1 bilhão em subsídios
para a produção agropecuária. “Uma vaca típica
na União Européia recebe US$ 2,20 de subsídio
governamental por dia, enquanto milhões de seres humanos na África
vivem com US$ 0,90”, comparou. Distorções como essa
são o fundamento da injustiça do comércio global,
e atacá-la é o primeiro dos dez mandamentos defendidos
pelo cientista.
Serageldin é diretor da nova Biblioteca
de Alexandria,
projeto inaugurado em 2002 que reúne museus, institutos de
pesquisa e a biblioteca propriamente dita num grandioso complexo
de 11 pavimentos às
margens do Mediterrâneo – no mesmo local, garantem os historiadores,
em que existia a primeira, centro do saber do mundo antigo, destruída
há 1.700 anos. É autor de mais de 50 livros e cerca
de 200 papers em áreas que vão da biotecnologia
e desenvolvimento rural à importância da ciência
para a sociedade. Para ele, a humanidade pode mudar a forma como
pratica a agricultura, mas não pode perder o foco em quem
vai se beneficiar com a mudança. “É preciso ser pró-mulheres,
pró-pobres e pró-ambiente”, defendeu.
Para que se alcance a segurança alimentar no planeta, o aumento
da produção é condição necessária,
mas não suficiente. “A segurança alimentar não
se relaciona apenas à produção, mas ao acesso;
não apenas ao produto, mas ao processo; não apenas à tecnologia,
mas à política; não apenas ao global, mas ao
nacional; não apenas ao nacional, mas ao local; não
apenas ao rural, mas ao urbano; e não apenas à quantidade,
mas à qualidade nutricional”, afirmou.
Foi exatamente para atender a sua crescente demanda que a China
desenvolveu o chamado “superarroz”, experiência relatada pelo
cientista Jiayang Li, da Academia Chinesa de Ciências. A China
tem 22% da população do mundo, mas apenas 7% das terras
aráveis. O país precisa importar 10% do arroz que consome,
o que representa 30% do comércio total do cereal no mundo.
O “superarroz” – fruto de cepas híbridas de alto rendimento – é uma
planta com altura menor e mais produtividade e resultou da associação
entre várias áreas de pesquisa com a engenharia genética.
Estima-se que a produção cresça em 20%, oferecendo
ainda um grão que tem mais qualidade nutricional, ressaltou
Li.
A seguir, os dez mandamentos para a agricultura global, de acordo
com Ismail Serageldin:
1 - Reformar as políticas e mercados em direção
a um comércio global mais justo.
2 - Focar nos pequenos proprietários, porque constituem a
maioria dos produtores, são desproporcionalmente pobres e
não têm força política. Dos cerca de 1,2
bilhão de seres humanos que vivem com menos de um dólar
por dia, 92% são pequenos proprietários rurais.
3 - Poupar os recursos naturais. A utilização de extensões
de terra cada vez maiores para o cultivo acelera as transformações
ambientais, e a degradação atinge e prejudica especialmente
os mais pobres. Reduzir a poluição é essencial,
principalmente em relação ao uso de pesticidas.
4 - Aumentar a produtividade agrícola. Novos tipos de plantas
não são ficção, como o superarroz na
China.
5 - Melhorar a qualidade nutricional. Melhorias genéticas
na qualidade dos alimentos podem trazer enormes benefícios
para a saúde.
6 - Atacar a vulnerabilidade ambiental de curto prazo. É possível
tomar medidas imediatas voltadas para deter processos em curso, como
a desertificação, que aceleram as mudanças climáticas.
7 - Fortalecer as mulheres. É essencial reconhecer a dimensão
da questão de gênero na agricultura. A mulher é a
espinha dorsal do processo de produção, não
só no âmbito familiar, mas em toda a cadeia. As mulheres
precisam ter mais e melhores oportunidades em educação,
salários, crédito e poder de decisão, entre
outros itens.
8 - Estender a mão aos ultrapobres.
9 - Apoiar a ciência e aumentar os investimentos na área
para diminuir a diferença entre ricos e pobres.
10 - Transformar a retórica em ação. John Kennedy
já disse, em 1963, que a humanidade tinha a capacidade de
erradicar a fome no planeta. “Há muito o que podemos fazer
pela próxima geração e pelo mundo todo”, finalizou
Serageldin. |