“Nós temos uma missão
bastante clara: colocar nossos alunos nas melhores instituições
de ensino superior do País. Os números mostram que
temos atingido nosso objetivo. Nossos alunos obtêm os mais
altos índices de aprovação nos principais
vestibulares. Em 2001, por exemplo, obtivemos 15% das vagas de
Medicina na USP, 14% das cadeiras na Escola Paulista de Medicina,
13% das vagas de Administração de Empresas da Fundação
Getúlio Vargas. Sessenta e três alunos nossos foram
aprovados, em 2001, na Escola Politécnica. Uma outra escola,
cujos alunos conseguiram o segundo melhor resultado, conseguiu
aprovar ali 24 alunos. E o número de candidatos da referida
escola era praticamente o mesmo. Respondendo à sua pergunta,
nosso papel continuará sendo o mesmo: colocar nossos alunos
nas melhores instituições de ensino superior do País” (Mauro
de Salles Aguiar, Jornal da Band, edição 50).
O Conselho Estadual de Educação de São Paulo
acaba de prestar um desserviço à educação
paulista e, por conseqüência, aos jovens do Estado de
São Paulo. Numa indicação sumaríssima, “pronuncia-se
pela não obrigatoriedade da introdução de
Filosofia e Sociologia no currículo das escolas de ensino
médio” sob sua jurisdição, além
de pôr em dúvida a legalidade da decisão tomada
unanimemente pelo Conselho Nacional de Educação.
O laconismo da norma está a indicar anti-aticismo do autor.
Demorei-me a comentar a medida do Conselho paulista porque fiquei à procura
do parecer ou relatório que instruísse a decisão
dos demais membros do Conselho, mas, debalde, não havia
mesmo tais peças justificativas.
Estranha que o Conselho paulista, onde pontificou uma figura
como o professor José Mário Pires Azanha, se convença
tão cabalmente com pouco mais de uma dúzia de linhas
de considerandos e decida opor-se a uma diretriz federal que traz
justificativas baseadas em pareceres do MEC e do próprio
Conselho Nacional de Educação, ambos muito bem pensados,
instruídos e compostos a muitas mãos. O próprio
professor Azanha – de quem não se duvide do gosto
pela síntese e parcimônia, pois onde podia usar cinco
palavras buscava dizer em três – não exarava
pareceres tão sucintos: preocupava-se antes de tudo com
a clareza, a exposição que convencesse, os exemplos
que iluminassem, sem se deixar cair na retórica verborrágica,
no pedagogismo de ocasião ou num eruditismo inútil.
Não extrapolava o suficiente, mas rendia-se ao necessário.
Continuava o professor mesmo quando conselheiro – seus pareceres
eram aulas de Filosofia da Educação e de História
da Educação Brasileira, de que foi testemunha por
mais de 50 anos, como diretor, pesquisador, administrador, conselheiro,
mas sempre professor.
A indicação recende a excesso de autoridade só vista
em períodos de exceção – o decreto basta-se
a si mesmo. Os argumentos agora se reduzem a dois – menos
ainda que aqueles brandidos na época do veto do presidente
Fernando Henrique Cardoso a um projeto de lei aprovado no Congresso
Nacional versando sobre o mesmo tema –, a demonstrar que
vão faltando a razão e fugindo os fatos aos que se
opõem a essa determinação que o legislador
originário quis inscrever na lei maior da educação
(LDBEN 9394/96, art. 36, § 1º., inciso III): “autonomia
de sistemas de ensino e de unidades escolares” e “implicações
não desprezíveis quanto aos recursos humanos e financeiros
necessários à implementação com qualidade”.
Ora, quando a LDB e as DCNEM determinam que Educação
Física e Artes devem ser tratadas como disciplinas obrigatórias,
ninguém questiona o vilipêndio da autonomia de escolas
e sistemas de ensino, nem se são implementadas com qualidade;
o mesmo se aplica à Língua Estrangeira Moderna, esta
nunca jamais atingindo o nível mais razoável da mais
mediana escola privada de língua; o mesmo ainda se aplica
a Língua Portuguesa e Matemática, disciplinas-latifúndios-improdutivos
de nossa educação, cujos resultados estão
sempre a mostrar o País com os mais baixos níveis
de rendimentos em estatísticas internacionais.
É interessante notar que a autonomia dos sistemas de ensino
e unidades escolares só é exercida para pôr ou
tirar Sociologia e Filosofia do currículo. Esse argumento
da autonomia seria até respeitável não fosse
a mera conveniência do seu uso – não tem profundidade
nem sinceridade. A lei do Fundef e agora a do Fundeb expõem
mais o problema da autonomia das unidades da federação – essa
mal resolvida questão da transição da Monarquia à República – do
que a presença ou ausência de disciplinas escolares.
Se São Paulo dependesse disso para ter resgatada sua autonomia,
tudo estaria resolvido agora.
O outro argumento é ainda mais discutível: recursos
humanos e financeiros necessários para a implementação
da obrigatoriedade das disciplinas. Acho que estamos falando dos
velhos e batidos argumentos de falta de professores e aumento de
gastos com pessoal. Não há falta de professores – há muitos,
desempregados ou no desvio profissional. É só fazer
as contas dos licenciados formados nos últimos 15 ou 20
anos, gente com perspectiva de trabalho de mais 15, 20 ou mais
anos, dependendo das reformas da Previdência, que vão
esticando a permanência dos trabalhadores na ativa. Não
haverá aumento de gastos, apenas remanejamento, reduzindo
aulas de outras disciplinas e introduzindo essas. Sobre esses argumentos
ainda temos a dizer duas coisas: há pouco ainda um jornal
da TV trouxe matéria sobre a falta de professores de Matemática
e Física e alunos que são aprovados no ensino médio
sem praticamente nunca terem visto os professores dessas disciplinas.
Assim, devem faltar professores de Filosofia e Sociologia em número
proporcional aos de Matemática e Física ou outras
disciplinas. É um problema mais amplo, e essa medida, se
aplicada, levaria à pura e simples exclusão dessas
disciplinas do currículo também.
Há ainda um outro problema que revela o vício maior
em que recai o Conselho Estadual de Educação de São
Paulo – e que certamente havia inspirado equivocadamente,
para dizer o mínimo, a interpretação dada
pelas DCNEM ao artigo da LDB supracitado – em que se disse
que os conteúdos Sociologia e Filosofia poderiam ser tratados
interdisciplinarmente pelas outras disciplinas do currículo
(Parecer CNE/CEB 15/98, Resolução CNE/CEB 03/98,
art. 10, alínea b). Aparecem aqui os interesses das escolas
privadas sobrepondo-se aos das escolas públicas, ou mais,
universalizando-se o que é particular. Apesar de se cantar
em verso e prosa que a escola média não visa exclusivamente à continuidade
nos estudos, as escolas de ensino médio da rede privada
oferecem a aprovação no vestibular como seu principal,
senão único, produto. Aparentemente, na lei e na
prática, Sociologia e Filosofia não cumpririam esse
objetivo. A LDB determina que ao fim do ensino médio o educando
demonstre conhecimentos de filosofia e sociologia necessários
ao exercício da cidadania, e os vestibulares não
cobram explicitamente conhecimentos de filosofia e sociologia – no
que, aliás, estão ao arrepio da lei.
O problema é essa promiscuidade entre público e privado.
Lembremos que Aristóteles, a quem não se pode acusar
de ideologismos esquerdistas, já alertava para que a educação é uma
coisa pública, de interesse público, de Estado, e
não confundamos interesses da sociedade civil com interesse
público, por mais que seja essa a marca da tragédia
brasileira. E até podemos restringir essa concepção
e ainda teremos que a educação básica é um
direito do cidadão e não uma mercadoria a ser adquirida
pela clientela.
O Conselho Estadual de Educação de São Paulo,
ao agir dessa maneira, faz lembrar o velho Aristarco de O Ateneu,
de Raul Pompéia: um olho no boletim de rendimento escolar
e outro no livro-caixa. As escolas privadas estão interessadas
em colocar seus “alunos nas melhores instituições
de ensino superior do País” e para isso querem que
seus “alunos obtenham os mais altos índices de aprovação
nos principais vestibulares”. Precisam treiná-los
nas principais disciplinas requeridas pelos vestibulares. Querem
ter “liberdade de escolha”, a mesma que dizem oferecer à sua
clientela, do que a educação pública estatal
representaria uma negação. A obrigatoriedade de ensinar
Sociologia e Filosofia vai contra essa liberdade, e além
de ocuparem o espaço-tempo destinado ao que interessa, elas
se oferecem como possíveis, e indesejáveis, opções
profissionais...
Não há nisso muita metafísica – educação é mercadoria,
ou commodity. O lamentável é que há duas possíveis
conseqüências para isso: no dia em que o ramo educação
não for mais lucrativo, esses empresários migrarão
para outro ramo – secos e molhados, vestuário ou variações
da indústria química – ou, assim que “as
melhores instituições de ensino superior do País” incluírem
Sociologia e Filosofia em seus vestibulares (e a USP já vai
incluir Filosofia e começa estudos para incluir também
Sociologia), esses mesmos empresários se apresentarão
como defensores dessas disciplinas desde criancinhas. E a educação
pública e os jovens das escolas públicas estarão
mais uma vez excluídos.
Amaury Cesar Moraes é professor
do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação
Comparada da Faculdade de Educação da USP
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