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Em face das notícias que se espalharam
recentemente nos jornais de maior circulação do País
a respeito da educação, as quais demonstram uma miopia
(ou hipermetropia, porque conseguem enxergar de longe, mas não
de perto) a respeito das questões essenciais da educação
pública – muitas delas reduzindo-a a uma mera estatística –,
os educadores, sejam eles professores do ensino fundamental e médio
ou mesmo ligados à universidade, não poderiam deixar
de se pronunciar. Se formos analisar mais profundamente os motivos
desse mal-estar que recai sobre a educação pública
em particular, veremos que a questão se concentra ainda
na relação professor-aluno e nas condições
tanto de trabalho como de estudo oferecidas seja ao professor,
seja ao aluno. Condições estas que apontam para a
necessária autonomia que deve estar ligada a todo trabalho
de criação e de produção intelectual
que se preze.
As iniciativas do governo parecem mais uma tentativa apressada
de dar conta de problemas estruturais da educação
e, a despeito de seus objetivos de universalização
do acesso à escola e de formação continuada
do professor, têm contribuído cada vez mais para a
massificação do ensino, uma vez que destitui o professor
de sua capacidade de pensar e planejar com autonomia seu trabalho,
além de promover o distanciamento cada vez maior dos objetivos
educativos em relação às necessidades de formação
e aspirações culturais da juventude deste país.
O governo federal, alarmado com os últimos resultados dos
exames escolares (Saeb e Prova Brasil), lançou o Plano de
Desenvolvimento da Educação (PED), anunciado recentemente
pelo ministro Fernando Haddad, informando que irá premiar,
com uma série de auxílios financeiros e projetos,
as escolas e professores que estiverem empenhados em reverter a
situação do ensino público, considerando o
resultado pífio dos alunos dos níveis fundamental
e médio, sobretudo nas metrópoles.
Um esforço sobremodo válido, desde que acompanhado
de uma ampla revisão das atuais estruturas de poder e das
estratégias de gestão no interior dos sistemas de
ensino, cujo exame deve passar não apenas por critérios
técnicos, mas éticos, sobretudo.
O governo estadual anunciou um aumento salarial para o funcionário
público por mérito e produtividade, o que pressupõe,
no entanto, segundo uma ótica apressada e imediatista, o
exercício da função pública não
muito condizente com a remuneração percebida. A verdade é que
exigem muito e pagam vergonhosamente pouco, sobretudo quando se
trata do magistério.
A administração municipal, por sua vez, com estranho
vezo midiático, está mais empenhada em limpar a cidade,
retirando os outdoors e comprando briga com pequenos e médios
empresários da área de publicidade, ou mesmo tomando
medidas de impacto, tais como a própria extensão
do período escolar de cinco para seis horas-aula, do que
preocupada, na realidade, em estancar o colapso da educação
no município de São Paulo.
Em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo (25.03.2007),
apoiada em uma pesquisa realizada por Menezes Filho, diretor do
IBMEC e professor da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade (FEA) da USP, chegou-se a uma surpreendente conclusão:
nem sempre o maior volume de recursos destinados à educação
nos municípios resulta em um melhor desempenho dos alunos
na Prova Brasil. Depois de uma série de ponderações
sobre os municípios que estão conseguindo bons resultados,
conclui-se que o problema é a gestão: ou seja, o
quanto o diretor da escola está empenhado. Em quê?
Esclarece o pesquisador: em controlar as faltas dos professores
e monitorar o cumprimento das aulas.
A dimensão social, existencial e humana propriamente dita
do que ocorre em sala de aula nem é “computada”.
Como se o problema fosse mais uma vez a falta de empenho do professor!
E o pior, que pode ser demonstrado estatisticamente, comparando-se
o bom desempenho de um professor de uma escola pequena (dotada
de parcos recursos) na região mais pobre do País
com os péssimos resultados das escolas públicas das
metrópoles (estas recheadas de recursos), porém,
sem tomar em consideração algo fundamental – a
complexidade dos problemas sociais de uma grande cidade em países
onde a concentração de renda acarreta problemas tão
crucialmente vividos pelos estudantes pobres nas metrópoles.
Sem considerar também o ponto de vista do professor, que
se vê obrigado a percorrer uma cidade como São Paulo
por mais de três escolas, espalhadas por todo canto, enfrentando
realidades as mais diversas e gestões e culturas escolares
muitas vezes incompatíveis com o bom exercício da
docência, num esforço desesperado e desesperançado
de compor sua jornada de trabalho.
Aluno e professor – Seria importante, portanto, que contextualizássemos
a preocupação, a nosso ver legítima, com a
gestão, desde que remetida à experiência efetiva
dos principais atores do cotidiano escolar: o aluno e o professor.
A pesquisadora D. A. Oliveira, em seu artigo “A reestruturação
do trabalho docente: precarização e flexibilização” (setembro
2004), propõe uma discussão sobre as “atuais
condições de trabalho dos docentes de escolas públicas
brasileiras”, procurando se ater à reestruturação
do trabalho pedagógico que ocorreu, segundo a autora, “de
modo mais ostensivo” nas duas últimas décadas,
cujas novas demandas têm imposto mudanças fundamentais
na gestão e organização do trabalho na escola.
A autora sustenta que as últimas reformas educacionais resultaram
em “intensificação do trabalho docente, ampliação
de seu raio de ação e, conseqüentemente, em
maiores desgastes e insatisfação por parte desses
trabalhadores”.
A autora salienta a importância de se analisar o impacto
dessas reformas sobre o trabalho docente, que têm ocasionado
a desprofissionalização e a desqualificação
do magistério, juntamente com a chamada flexibilização
e precarização das relações de emprego
e de trabalho, que têm atingido também a gestão
escolar do trabalho docente.
De acordo com a pesquisadora, o impacto das reformas educacionais
observadas na década de 90 é comparável às
da década de 60, com a diferença de que estas últimas
visavam à adequação ao modelo fordista e ao “ideário
nacional-desenvolvimentista”, enquanto as dos anos 90 apontam
para a realidade imposta pela nova ordem econômica mundial:
a globalização.
Eqüidade social – A passagem de um ideário ao
outro implicou repensar a educação como condição
de ascensão social, uma vez que a mesma deixou de ser vista
como sendo capaz de responder às necessidades de uma melhor
distribuição de renda. As políticas redistributivas,
que sustentavam as reformas dos anos 60 e que tinham como eixo
a questão da mobilidade social, são convertidas,
nos anos 90, em políticas voltadas para a “eqüidade
social”, formando os indivíduos para a empregabilidade,
ao mesmo tempo em que se vêem associadas a políticas
compensatórias de “contenção da pobreza”.
A autora está se referindo às reformas iniciadas
no primeiro mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso, cujos
eixos foram mantidos no atual governo, e que, segundo ela, podem
ser resumidos pelo slogan “transformação produtiva
com eqüidade”.
Dentro dessa perspectiva, iniciou-se uma série de reformas,
envolvendo relativa descentralização do planejamento
e gestão, atribuindo tais funções à escola,
o financiamento per capita por meio do Fundef (Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério), a regularidade e ampliação
dos exames nacionais (Saeb, Enem, ENC), avaliação
institucional e mecanismos de gestão que incluem a participação
da comunidade. A gestão escolar passou a ser orientada por
princípios relacionados às teorias de administração
de empresas, que são transpostos para a escola seguindo
os mesmos critérios de produtividade, eficácia, excelência
e eficiência.
A Conferência Mundial sobre Educação para Todos,
realizada em março de 1990 na cidade de Jomtien, na Tailândia,
representou uma tentativa de estabelecer a eqüidade social
pela via da expansão da educação básica,
de modo a atingir os países mais pobres e populosos do mundo.
Os países em desenvolvimento foram obrigados a cumprir tais
recomendações, procurando expandir o atendimento
das necessidades de educação da população,
porém sem aumentar na mesma proporção o nível
de investimentos. A idéia era não mais promover a
ascensão social, mas diminuir os efeitos da miséria
e propiciar caminhos de sobrevivência para aqueles em “situação
vulnerável”. Mas, de outro lado, também permitir
o ingresso no mercado de trabalho pelo acesso à “cultura
escrita, letrada e informatizada”.
Como tudo isso passou a ser implementado no Brasil? Pela via da
padronização e massificação de procedimentos
administrativos e pedagógicos, reservando às unidades
escolares o papel de implementá-los, permitindo, por meio
dessa descentralização, a obtenção
de recursos da comunidade e do estabelecimento de parcerias.
Ocorre que essa forma de proceder pela via combinação
do planejamento e controle central das políticas e a descentralização
administrativa tem onerado muito os professores. Como conseqüência
dessas políticas, os professores estão sendo obrigados
a exercer funções que vão muito além
de sua formação, tais como: agente público,
assistente social, enfermeiro, psicólogo, entregador de
leite, mochila, tênis etc. Tudo isso tem contribuído
para a descaracterização do professor (perda de sua
identidade profissional), ao desviá-lo de sua função
primordial: o ensino. Um sentimento que é reforçado
pelo “voluntarismo e comunitarismo”, presentes no ideário
da expansão da educação para todos. Perde-se,
com isso, tempo e energia, deixando a escola e o professor à deriva,
sem condições de se envolver na elaboração
de um projeto didático-pedagógico capaz de repensar
seriamente o processo ensino-aprendizagem.
Portanto, uma desqualificação que não pode
ser explicada apenas por questões endógenas ao trabalho
docente, uma vez que, mesmo que nos restringíssemos a ele,
seria preciso analisar um leque de mediações subjetivas
e objetivas que envolvem a dinâmica complexa do trabalho
em sala de aula.
O fato é que os professores se sentem inseguros, objetiva
e subjetivamente, diante dessas novas exigências. Embora
não estejamos propriamente diante de uma escola verticalizada,
transmissiva e autoritária, está muito longe de se
encontrar democratizada (contando com ampla participação
de todos os envolvidos autonomamente). O que encontramos são
docentes muito exigidos sem o amparo necessário e tendo
suas condições de trabalho bastante precarizadas.
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A escola na periferia – Analisemos mais de perto a situação
de uma escola pública, na qual realizamos uma pesquisa,
onde, freqüentemente, cerca de cinco a seis salas de aula
se encontram sem professores, durante um período de seis
horas. Um problema comum nessa escola, situada em um dos bairros
mais ricos da cidade de São Paulo, que atende aos descendentes
de uma antiga comunidade de migrantes das Regiões Norte
e Nordeste que, nos anos 50, veio para São Paulo e participou
da construção do Estádio do Morumbi. Mais
uma vez, a periferia anônima relegada a segundo plano, da
qual a escola é o “respiradouro” de alguma maneira.
E os professores arcam, sem o saber, com mais esse ônus.
O leitor pode imaginar o que significa ter seis classes de cerca
de 40 alunos, ou seja, 240 alunos por período, sem aulas?
O que fazem os alunos durante esse tempo ocioso? Ficam presos em
sala de aula fazendo algazarra, ou são obrigados a fazer
redações e desenhos que serão jogados no lixo
(por falta de quem possa dar-lhes algum retorno), ou ainda palavras
cruzadas...
Os professores, angustiados na tentativa de mitigar essa situação
de abandono na qual vivem os alunos, procuram dar atenção
a esses adolescentes “abandonados a si mesmos”: alternadamente,
em meio às suas próprias aulas, vão até eles,
dão-lhes tarefas; um professor de educação
física acaba cobrindo as “aulas vagas” e se
esgota de tanto dar exercícios, e o faz movido por pura
angústia, e o pior, sem remuneração. Muitos
deles, com suas jornadas acumuladas e previamente computadas e
com os rendimentos já fixados em razão disso, só podem
ter suas aulas compensadas em situações de falta,
por exemplo. Mas não receberão um centavo a mais
por estarem se desdobrando para cobrir as “eventuais” faltas
dos colegas. Essa jornada “extra” não caracteriza
hora-aula, logo, não é considerada como tempo de
trabalho. Nesses momentos, fora de suas próprias salas de
aula, os professores não passam de bedéis compulsórios,
inspetores de alunos, tudo a custo zero. Essa situação
configura uma realidade extremamente conveniente para o poder público:
ela barateia ainda mais o custo do ensino público. Está aí uma
das faces da perversão do sistema: a sua eficiência é aferida
pela priorização da economia nos gastos, ficando
relegada a um segundo ou terceiro plano a dimensão educacional.
Segundo essa lógica, os professores abnegados e idealistas
sempre serão bem-vindos por serem muitíssimo úteis.
Para que se tenha uma idéia do que ocorre em uma sala de
aula sem professor, relatamos o que observamos em uma dessas classes,
quando nos propusemos a realizar um levantamento das preocupações
dos jovens nessa escola. Em uma de nossas atividades realizadas
com uma turma da 8a série, o que nos chamou a atenção
foi o pedido de socorro dos adolescentes contido na letra de rap
que eles mesmos escreveram. Ficou estampado o papel da escola e
da sociedade para esses jovens sem muitas perspectivas para o seu
futuro. Vamos aqui mencionar apenas o refrão do rap que
eles intitularam “Realidade, não fantasia”:
A falta de emprego e compreensão
Transporta o pivete pra
uma vida de ladrão
A falta de emprego e compreensão
Mata os sonhos da pessoa
e (os) joga dentro do caixão!
Ou uma frase colocada a esmo em outro cartaz, demonstrando a falta
de opção dos alunos pobres da periferia de São
Paulo: “Viva nessa droga de mundo, mas nunca no mundo das
drogas”.
Frente a tantas adversidades, como era possível recriar-se?
Uma tarefa que tantos dizem ser própria do adolescente.
E a escola teria um papel no sentido de lhes propiciar alternativas
menos trágicas?
Os professores, por sua vez, ficam literalmente entre a cruz e
a espada. Como exercer qualquer tipo de autoridade em tais circunstâncias?
Como enfrentar a impotência sentida nessas situações
e encarar o descaso por parte das autoridades públicas?
Recriação – De um lado, uma burocracia desumana
que instituiu um sistema centralizado de distribuição
de aulas, em princípio para evitar qualquer tipo de favorecimento
local, mas que impede uma resposta imediata para os problemas de
reposição de professor.
Os professores, sentindo-se inseguros, ficam fragilizados e estressados
com essa situação, o que os deixa à mercê dos
mandos e desmandos de toda a hierarquia da secretaria de ensino.
Os alunos, por sua vez, por sentirem tamanho descaso em relação
a eles por parte da escola, não têm para com o professor
que entra em sala de aula qualquer respeito ou consideração.
Mas, talvez, a barbárie maior seja a quase-aceitação
dessa situação absurda de falta de professores em
sala de aula como algo normal, tanto por parte da administração
como dos professores e até mesmo da comunidade.
E ainda a secretaria de ensino, em desespero de causa e sem escutar
os professores, cria a cada instante um novo pacote: aumenta o
tempo de permanência dos alunos na escola (o período
passou de cinco para seis horas-aula); diminui as JEIs (Jornadas
Especiais Integrais), um tempo conquistado pelo professorado para
estudar e refletir sobre o ensino.
Em diversos momentos, a equipe pode pensar sobre os motivos do
fracasso escolar, sobretudo nas grandes metrópoles. Os docentes
se queixam do fato de se culpabilizar sempre o professor, sem mencionar,
por exemplo, as salas superlotadas e a falta de compromisso dos
administradores com a escola pública, que permanece sem
o suporte necessário para o seu bom funcionamento. Todos
parecem, a despeito de tudo isso, estar encontrando em nossa pesquisa
a oportunidade de re-significarem suas experiências e, sentindo-se
apoiados, intelectual, emocional e politicamente, reassumem, aos
poucos, a autoridade ameaçada.
Humanismo de resultados – Inspirando-nos nas idéias
sobre o método de pesquisa proposto pelo antropólogo
italiano Massimo Canevacci (2005) para pesquisar as culturas juvenis
no mundo contemporâneo – que convoca o olhar participante
de Eros, abrindo-se para a experiência do desconhecido e,
desse modo, refunda a própria autoridade –, acreditamos
que, ao constituir um campo de experiência que permita o
encontro do mundo juvenil e de suas formas de expressão
culturais, em meio a suas duras experiências de subjetivação/dessubjetivação,
com o conjunto de professores e a direção da escola,
seja possível produzir rupturas e até mesmo abrir
fendas nos discurso e nas práticas em seu cotidiano. Condição,
a nosso ver, para o fortalecimento do corpo docente e de sua autoridade.
E, desse modo, gerando melhores condições de subjetivação
para aqueles alunos.
Mas, para tanto, é preciso que o Estado faça a sua
parte: que no mínimo não deixe mais faltar professor
em sala de aula!
Aliás, não podemos nos esquecer do lema de um dos
professores de nossa equipe: por que, em vez de um capitalismo
de resultados, não nos propomos a construir um humanismo
de resultados? A começar por uma forma de nomeação
de docentes com uma margem de liberdade suficiente para que cada
unidade de ensino possa convocar seus próprios professores
substitutos, estabelecendo um sistema misto de nomeação
via coordenadoria e unidade escolar. E evidentemente construindo
um espaço democrático de respeito e consideração
pelos mestres que, fortalecidos, encontrarão disposição
para uma escuta atenta das angústias e incertezas de nossos
jovens e possam, assim, junto com eles, assumir a responsabilidade
pelo mundo, como dizia ser a “tarefa da educação”,
a filósofa Hannah Arendt, em seu livro Entre o passado e
o futuro.
Mônica Amaral é professora da Faculdade de Educação
da USP, Luiz Abbondanza é bolsista colaborador da pesquisa
(Fapesp/USP), Edson Nakashima é mestrando da Faculdade de
Educação da USP e Silas Corrêa Leite é escritor,
poeta e professor da rede pública de ensino.
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