Conta-se que, certo dia em Paris, a bela
Heloísa, então com 17 anos, passeava com sua criada,
Sibyle, pelas ruas da cidade quando se deparou com um grupo de
alunos reunidos em torno de Pedro Abelardo, já considerado
um dos maiores teólogos de sua época – o século
12. Nessa hora, o chapéu da jovem foi levado pelo vento,
indo parar nos pés do professor. Este recolheu a peça
e, ao devolvê-la, trocou o primeiro olhar com Heloísa.
Foi o ponto de partida de uma trajetória amorosa que teria
vastas conseqüências na história da literatura,
da teologia e da filosofia.
Heloísa tornou-se discípula de Abelardo e ambos viveram
um apaixonado romance, contra a vontade do tio e tutor da jovem,
Fulbert. Tiveram um filho, Astrolábio, e se casaram secretamente
em Paris, após muita resistência da jovem, que se
recusava a se unir ao amado pelo matrimônio. Mas o tutor,
inconformado, enviou homens para seqüestrar Abelardo, que
foi castrado por eles. Puniram-no por onde pecara, como o teólogo
diria mais tarde. Separado da amada, Abelardo se retirou para a
vida de estudos, aulas e contemplação na abadia de
Saint-Denis. Heloísa também entrou para a vida monástica,
em profunda depressão.
Por muito tempo não mais se falaram. Comunicavam-se apenas
através de cartas, nas quais lembravam com nostalgia o grande
amor que viveram e discutiam os principais problemas filosóficos
e teológicos da época. “Tu sabes a quais torpezas
minha paixão desmedida consagrara nossos corpos. Nem o respeito
pela decência nem por Deus, mesmo nos dias da Paixão
do Senhor ou das maiores solenidades, me retinha de rolar nessa
lama”, escreve Abelardo numa de suas epístolas. “Eu,
Deus o sabe, eu não teria hesitado em te seguir ou em te
preceder no inferno se me tivesses ordenado a fazê-lo. Não
era comigo que estava meu coração, mas contigo. E
ainda agora, e mais que nunca, se ele não está contigo,
não está em parte alguma, pois lhe é impossível
ser sem ti”, declara Heloísa (leia ao lado dois exemplos
dessa célebre correspondência).
Ao longo dos séculos, as cartas de Abelardo e Heloísa
foram estudadas e comentadas pelos principais especialistas na
chamada Idade Média, entre eles o francês Étienne
Gilson, que em 1937 proferiu, no Collège de France, em Paris,
uma série de lições sobre os dois amantes
do século 12. Essas lições se transformaram
no livro Heloísa e Abelardo, que, publicado pela primeira
vez na França em 1938, é lançado agora no
Brasil pela Editora da USP (Edusp). “A correspondência
que trocaram é suficientemente importante para que Gilson
possa dizer que dela depende toda nossa compreensão do século
12”, afirma o professor José Carlos Estêvão,
do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que assina a apresentação
do livro, lembrando que o trabalho de Gilson é “a
mais fina análise” já feita das mensagens trocadas
entre os dois amantes.
Amor puro – Da análise de Gilson, extrai-se um profundo
perfil moral e psicológico dos dois amantes e uma descrição
pormenorizada do drama vivido por eles. Segundo o autor, Heloísa é a
personificação do ideal do mais puro amor, capaz
de reprimir seus desejos mais ardentes em benefício do amado.
Isso explica a forte resistência com que se opôs à idéia
de se casar com Abelardo.
Heloísa se reclusou após a separação
de Abelardo: “Impossível ser sem ti” |
Acontece que, para o erudito do século 12, a grandeza de
um filósofo era medida pela sua conformidade com os princípios
morais de Sêneca, o pensador estóico, e do apóstolo
Paulo, o missionário cristão autor de várias
cartas do Novo Testamento. Para Sêneca, o moralista da continência,
o verdadeiro filósofo permanece livre de tudo o que não é filosofia:
honras, cargos públicos e até casamento. “Se
deves amar, ama a razão”, diz. Para Paulo, o apóstolo
da castidade, o cristão deve evitar o casamento para melhor
servir a Deus. “Aquele que não é casado cuida
das coisas do Senhor, aquele que é casado cuida das coisas
do mundo, ele procura agradar sua mulher e fica dividido”,
escreve na sua primeira carta à igreja de Corinto. Esses
ensinamentos de Paulo, acrescenta Gilson, estão na base
das argumentações de São Jerônimo – tão
bem conhecidas por Abelardo – sobre a incompatibilidade entre
o matrimônio e a vida cristã perfeita.
Heloísa sabia que o casamento significaria, para Abelardo,
a sua ruína como teólogo e filósofo. E foi
para evitar essa desonra que ela se recusou a fazer o que mais
desejava: unir-se ao amado pelo matrimônio. “Heloísa
pensava na grandeza de Abelardo e queria somente a sua glória.
A perfeita retidão de Heloísa exigia, portanto, não
apenas que ela recusasse o casamento, mas que oferecesse uma completa
e definitiva separação”, comenta Gilson. “Heloísa
estava disposta a sacrificar até as alegrias da paixão
se a verdadeira glória de Abelardo assim o exigisse. Ela
não pode ser nem a amante nem a mulher de tal homem porque
o ama.”
Quando, finalmente, consentiu com o casamento, Heloísa sentiu-se
causa de um crime cometido contra Abelardo. Na sua visão,
mais uma vez vigorava a lei segundo a qual a mulher é a
perda do homem. Assim como Eva fez Adão ser expulso do Paraíso,
Dalila entregou Sansão aos filisteus e a mulher de Jó o
incitou à blasfêmia, também ela causara a ruína
de Abelardo. “O demônio bem sabe, de longa experiência,
que a mulher sempre é para o homem uma causa de queda imediata,
e por isso, armando para ele a armadilha de Heloísa, conseguiu
levar à perdição, através do casamento,
esse Abelardo que ele não conseguira arruinar pela fornicação”,
escreve Gilson, interpretando os sentimentos da infeliz enamorada. “Desse
complô diabólico, Heloísa tornou-se cúmplice
ao consentir no casamento, causa da catástrofe. Ela é,
então, em certo sentido, culpada. (...) Havia cometido um
crime, porém jamais consentira com ele. E é também
o motivo pelo qual, no final das contas, Heloísa é inocente.”
Abelardo e Heloísa estão enterrados juntos no cemitério
Père Lachaise, em Paris: eternamente inseparáveis
De Abelardo, a reação aos acontecimentos é diferente,
mais resignada e com final surpreendente. Ao invés de se
revoltar contra a humilhação que lhe foi imposta,
ele aceita a expiação provinda da vontade divina,
reconhece como justo o castigo pelo pecado cometido e, menos por
vocação religiosa e mais por vergonha, consagra a
vida a Deus, entrando para a vida monástica. No entanto,
isso não representou o fim de sua promissora carreira como
teólogo, filósofo e cristão. Pelo contrário,
forneceu as condições propícias para que ele
se elevasse ainda mais, segundo Gilson. “Essa submissão
sem reservas ao julgamento divino, tão contrária à revolta
obstinada de Heloísa, parece ter sido o germe de toda a
vida religiosa de Abelardo, o ponto de partida e o ponto de apoio
da ascensão espiritual que ele realizaria.”
Lógica – Os infortúnios não impediram
que os séculos conferissem a Abelardo a glória que
Heloísa quis evitar ser arruinada. Ele é autor de
influentes textos filosóficos e teológicos. Em Sic
et non (“Sim e não”), reúne textos aparentemente
contraditórios da Bíblia e dos primeiros filósofos
cristãos, para mostrar que, no fundo, há harmonia
entre eles. Mais do que em seus pensamentos, é no método
utilizado nesse livro que reside a importância do Sic et
non: a técnica da confrontação dos contrários,
seguida de uma conclusão, será incorporada no século
13 à Suma teológica, de Tomás de Aquino. Abelardo
compôs também um tratado sobre Deus, De unitate et
trinitate divina, o Diálogo entre um judeu, um filósofo
e um cristão e vários sermões. História
das minhas calamidades é seu texto autobiográfico.
Em filosofia, a obra de Abelardo é ainda mais original.
Autor de uma Dialectica e de vários comentários sobre
a obra de Aristóteles e de Boécio, ele se destacou
na chamada “querela dos universais”, uma acalorada
discussão entre os eruditos da época, que se perguntavam
se os conceitos gerais – nomes como “homem”, “árvore” e “cachorro” – têm
existência real ou não. Abelardo recusou as duas correntes
em disputa, o realismo (para a qual os universais existem objetivamente)
e o nominalismo (que assegurava serem os universais puros nomes),
e formulou o conceitualismo, segundo o qual os universais são
conteúdos da mente, representações do intelecto
derivadas das coisas. “É certo que a lógica
de Abelardo influenciou profundamente a Idade Média”,
explica Gilson em outra de suas obras, A filosofia na Idade Média. “Dois
partidos se dividiam quanto à questão de saber se
a lógica trata de coisas (res) ou de palavras (voces). Eliminando
a primeira solução, ele contribuiu poderosamente
para refazer da lógica uma ciência autônoma,
livre de todo pressuposto metafísico em sua ordem própria.”
“Deus fingiu não ver”
A
seguir, carta de Heloísa
para Abelardo.
Eu, infeliz e aflita entre todas as mulheres. Tu levantaste-me
ainda mais alto só para aumentar a minha dor na queda.
Enquanto entregávamo-nos aos prazeres da luxúria,
Deus fingiu não estar vendo, mas depois castigou-nos,
e nem mesmo o nosso casamento abrandou a sua cólera.
O Maligno sabe até bem demais como usar uma mulher
para arruinar um homem. Éramos dois, a pecar, mas
só tu tiveste que pagar. Agora eu também sofro.
Por tempo demais entreguei-me aos prazeres da carne e este é o
justo castigo. Persegue-me a lembrança. Até durante
a missa, quando a oração deveria fazer-me sentir
mais pura, as lembranças atormentam a minha mente,
e em lugar de arrepender-me tenho saudade daquilo que perdi.
As pessoas louvam a minha castidade só porque não
sabem que no fundo não passo de uma hipócrita.
A minha habilidade em fingir consegue enganá-las,
mas eu não me curei: penso em ti, te amo, te quero,
te desejo, como antes, mais do que antes.
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Abaixo, carta de Abelardo para
Heloísa.
Tu sabes a que baixeza arrastou minha desenfreada concupiscência
a nossos corpos. Nem o simples pudor, nem a reverência
devida a Deus foram capazes de apartar-me do seio da lascívia,
nem mesmo nos dias da Paixão do Senhor ou qualquer
outra festa solene.
Mereço a morte e alcanço a vida. Se me
chamam, dou as costas. Persisto no crime e sou perdoado
contra minha vontade.
Tu me disseste: “Mas eu sofri por ti”. Não ponho isso em dúvida.
Mas eu sofri mais por ti; e isso, mesmo contra a tua vontade. Não por
um amor que saíra de ti, mas por coação minha. Não
resultou em tua salvação, mas apenas em tua dor. Ele, ao contrário,
padeceu porque quis e nos trouxe a salvação. Ele, que com sua paixão
cura todas as enfermidades e dissipa toda dor. É nele – te suplico – e
não em mim que irás centrar toda tua devoção, toda
tua compaixão. Chora a grande injustiça cometida contra um ser
tão inocente e não chora a justa vingança da eqüidade
sobre mim – e, se quiseres, como já te digo –, a suprema graça
que caiu sobre nós dois.
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