Vladimir Benincasa, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, passou mais de três anos visitando, medindo e fotografando mais de 300 fazendas de café do estado de São Paulo. Até aí, nada demais, embora pareça ser muito trabalho para uma só

Foto crédito: Cecília Bastos

pessoa. A novidade, ou a estranheza, é que em várias dessas fazendas ele era recebido com a pergunta “Mas o que você está fazendo aqui? O que você quer?”, em clara demonstração de que os guardiões de um patrimônio histórico secular não tinham consciência da importância de preservá-lo.

Mas, também, isso não é de estranhar, pois até recentemente nem os fazendeiros nem os arquitetos nem mesmo os órgãos criados para zelar pelo patrimônio artístico do estado não consideravam as fazendas cafeeiras dos séculos 19 e 20, entre 1800 e 1940, como arquitetura histórica. Elas foram sendo abandonadas, vendidas, enterradas, transformadas em condomínios residenciais ou desapareceram completamente, dando

lugar ao plantio de cana-de-açúcar. Nem todas, é certo, pois algumas ainda produzem e beneficiam café, outras se mantêm preservadas ou se transformaram em locais de turismo rural.

Benincasa fez delas tema de tese de doutorado, que defendeu dia 15 de fevereiro perante uma banca composta por representantes das áreas de arquitetura, de história e de museus, sendo aprovado com todos os acréscimos de mérito e recomendação para publicação. O agora doutor reuniu e resumiu a sua pesquisa em dois volumes fartamente ilustrados, contendo parte das 15 mil fotos que tirou, das 200 plantas de casarões que desenhou e das mais de 50 entrevistas que fez. Ele está convencido de que nas fazendas de café há ainda um acervo muito grande completamente desconhecido, e sua tese abre caminho para muitos projetos complementares. As famílias dos grandes fazendeiros eram geralmente cultas, estudavam no exterior, conheciam várias línguas, especialmente o francês, e colecionaram obras literárias valiosas, muitas das quais estão preservadas. Nas bibliotecas também se encontram cartas falando do dia-a-dia na fazenda, fotografias e documentação referente aos trabalhadores.

Foto crédito: Francisco Emolo
Benincasa: 15 mil fotos, 200 desenhos e 50 entrevistas realizadas

Autonomia – Uma fazenda, localizada longe de cidades e vilas, constituía uma unidade quase autônoma e independente, resolvendo ali mesmo os seus problemas. O pesquisador diz a certa altura de sua tese que, além dos casarões e equipamentos de beneficiamento e armazenagem, a fazenda cafeeira paulista sempre possuiu uma série de edificações para produção de alimentos e prestação de serviços aos seus moradores. Os ensinamentos dos manuais agrícolas dos séculos 18 e 19 foram seguidos durante praticamente todo o ciclo cafeeiro. “Encontramos inúmeras propriedades ostentando aquela mesma disposição de moinhos, engenhos, queijarias, estábulos, currais e oficinas, além de capelas, escolas e escritórios, algumas com cinema, campos de futebol, clubes.”

Uma fazenda de café do tipo estudado por Benincasa compõe-se basicamente de um casarão, ou casa do proprietário, terreiro, túlia (abrigo) e casa de máquinas. Muitas preservam rico mobiliário, capela, bibliotecas e arquivos de grande valor histórico. Segundo Benincasa, nota-se maior abandono no que se refere ao beneficiamento do café. Atualmente, o estado de São Paulo só produz café em maior escala na Alta Mojiana, divisa com Minas Gerais, na região de São Manoel e Botucatu e alguma coisa na região de Garça até Marília. “O resto virou cana-de-açúcar”, diz o pesquisador, calculando que pelo menos 80% do espaço antes ocupado pelo café está nessa condição.

Entre as razões do declínio no cultivo está a mudança na forma de plantar, mais pés em menor espaço. Não apenas isso: também porque “a era dos fazendeiros acabou”, não há mais bons administradores que se dediquem ao café, os filhos dos proprietários migraram para as cidades, abraçando profissões liberais, a legislação trabalhista é um ônus pesado e o investimento no ramo cafeeiro tem retorno duvidoso.

Em São Carlos , a Fazenda Santa Maria ainda produz quantidade significativa de café, usando as máquinas do tempo da inauguração. Uma outra unidade, chamada Fazenda São Roberto, na divida de São Carlos com Baté, possuía todos os equipamentos originais, além das edificações, e uma preciosidade: a capela projetada por Ramos de Azevedo. Acabou vendida para uma imobiliária e transformada em condomínio fechado, inclusive com campo de golfe. Os que preferem transformar suas propriedades em lugar de turismo tratam de preservar as construções antigas e alguns até, como na Fazenda Pinhal, também em São Carlos , adquirir as mesmas máquinas que eram usadas no século 19, então fornecidas pela empresa escocesa Mac Hardy, com filiais nos Estados Unidos e em Campinas. Nesses casos, os turistas podem vê-las funcionando como antigamente.

Ao pesquisar fazendas de café, Benincasa não estava lidando com matéria desconhecida. Estava reconstruindo a memória familiar. Seus bisavós maternos vieram da Itália, região de Vêneto, para trabalhar na cultura de café na região de Cafelândia, depois Araraquara. Seus avós já nasceram no estado de São Paulo, assim com os pais e vários tios, todos trabalhando “no eito”. O agora doutor Benincasa nasceu em Araraquara e o que guarda das conversas em família são lembranças de bailes, andanças a pé nas fazendas, travessias no escuro. Chegou à USP de São Carlos em 1985 para fazer graduação em Arquitetura. Tempos depois, acabou trabalhando com a professora Maria Angela Bortolucci, que também foi sua orientadora na tese de doutorado.

História social – Antes da imigração, principalmente italiana, para trabalhar no plantio do café paulista, a mão-de-obra principal no campo era constituída por indígenas. Mesmo os escravos negros eram raros no estado, pois, conforme salienta Benincasa, a Coroa portuguesa só permitiu a importação direta do escravo africano para São Paulo a partir de 1700. Os poucos que havia eram comprados em capitanias vizinhas, onde esse tipo de comércio era permitido. Ainda segundo a pesquisa, havia então estreita ligação entre fazenda/fazendeiro e mercado consumidor, mas, enquanto em outros países ‘mais civilizados' ocorriam rapidamente mudanças nos campos social e tecnológico, no Brasil era diferente: “A condição de país periférico, assumida pela elite brasileira desde então, ajuda a entender a manutenção do trabalho servil e o pouco esforço feito por ela em efetuar prontamente a transição para o trabalho livre e assalariado. Não havia interesse em formar um mercado consumidor local, uma vez que havia um amplo e ávido mercado externo para o café”.

Os aspectos sociais que ressaltam da pesquisa de Benincasa, especialmente a questão da mão-de-obra escrava e a divisão e controle do trabalho, foram o que mais chamaram a atenção da banca formada por Maria Angela Bortolucci, Telma de Barros Correia (Escola de Engenharia de São Carlos), Maria Lucia Bressan Pinheiro (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), Paulo César Marins (Museu Paulista) e Rafael de Bivar Marquese (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP). Símbolo do controle do trabalho sempre à vista na fazenda eram os relógios. Estão parados, mostrando que está na hora de se preocupar com a sua preservação.

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]