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amplamente aplicada nos interrogatórios feitos a terroristas. A polêmica veio à tona principalmente após as revelações dos atos degradantes realizados contra prisioneiros da base militar norte-americana na Baía de Guantánamo, ao sul da ilha de Cuba, e do complexo penitenciário da cidade iraquiana de Abu Ghraib, cujas imagens, amplamente disseminadas pela imprensa e internet, chocaram a opinião pública.
Além dos desdobramentos comportamentais e legais quanto à aceitação social da tortura, as exposições dos palestrantes demonstraram que a institucionalização da prática é um dado preocupante. Essa preocupação tem base em muitos fatos. O mais recente deles é tratado numa matéria publicada em 22 de fevereiro pelo jornal The New York Times. Segundo a matéria, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos revelou que haverá uma sindicância interna para investigar a aprovação legal a atos de tortura aplicados por agentes da CIA (Central Intelligence Agency), entre eles o famoso waterboarding, que consiste em consecutivos mergulhos da cabeça da vítima na água.
“As propostas de salvaguardas contra ‘tortura injustificada' e mesmo as ‘garantias de tortura' usadas apenas em altos círculos militares vêm sendo aperfeiçoadas com o argumento de que esses instrumentos deveriam ser aplicados nos casos de ticking bombers (homens-bomba ou situações extremas de bomba-relógio). Mas este é um terreno escorregadio e tal argumento não dissolve o dilema moral sobre o qual a situação é apresentada”, disse Yuval Ginbar, conselheiro da Anistia Internacional e conselheiro sênior do Comitê Público Contra a Tortura em Israel. O estudioso assinala os prós e contras de seus argumentos em sua mais recente publicação, Why not torture terrorist? – Moral, practical and legal aspects of the ‘ticking bomb' justification for torture, a ser lançada neste mês pela Oxford University Press.
"As emergências nunca vão acabar e a tortura é um atalho conveniente. É muito fácil deixar os soldados à solta para que eles resolvam os problemas que o estado deveria solucionar. Temos que reconhecer que essa prática é um mal incompatível com os ideais cristãos e os ideais democráticos", disse especialista no seminário sobre tortura, realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP
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Roy King, do Instituto de Criminologia de Cambridge, um especialista em sistema carcerário britânico e norte-americano, falou de casos famosos de tortura, como o da prisão de Pelican Bay, e o do Corredor da Morte em Oklahoma, nos Estados Unidos. Em todos, houve comprovação da prática. No entanto, nem as instituições nem os torturadores foram penalizados. Em Oklahoma, por exemplo, constatou-se que prisioneiros com problemas mentais foram mandados para o corredor da morte e torturados antes de morrer por carcereiros que se divertiam ao microfone dizendo frases como “Ei, aqui quem fala é Deus”. King conta que “o resultado do tribunal de Oklahoma remete a um texto que diz algo como ‘este presídio é dirigido pelo Departamento Correcional de acordo com suas próprias regras e com as leis dos Estados Unidos e de acordo com o desejo dos cidadãos de Oklahoma'”.
A violência encenada no filme Tropa de elite, de José Padilha (Brasil, 2007), foi citada diversas vezes nas perguntas de uma platéia ampla e eclética, composta por acadêmicos, operadores do direito, estudantes, ativistas e até policiais civis e militares.
Para a carioca Tânia Kolker, integrante do grupo Tortura Mais, do Rio de Janeiro, o encontro “trouxe a oportunidade de entender melhor qual é a lógica que está sendo construída para legitimar a chamada ‘tortura light'. Trata-se de um procedimento que sempre foi considerado tortura e que agora está sendo visto como algo possível e aceitável dentro de certas condições, numa relação de custo-benefício para garantir a proteção da sociedade”, disse.
Kolker concorda que o filme de Padilha reflete o imaginário popular, especialmente porque a tortura passa por um processo de aceitação e naturalização na sociedade brasileira. “Se no passado ela só existia nos porões e não era possível ser denunciada, hoje ela tem aplauso na sociedade e não é mais uma prática que precisa ser feita às escondidas”, afirmou.
Bomba-relógio – O professor Fritz Alhoff, da Universidade do Oeste de Michigan, nos Estados Unidos, mostrou uma pesquisa realizada com 1.030 estudantes de uma academia militar da Austrália e da Universidade do Oeste de Michigan, nos Estados Unidos. Com base nos conceitos do utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832), a pesquisa buscava saber quão aceitável moralmente é a tortura entre aqueles jovens e se em algumas situações ela se torna mais aceitável.
Alguns questionários foram aplicados aos estudantes de forma a colocar a seguinte questão: “O que você faria numa situação de bomba-relógio?”. A pergunta foi feita com algumas variações acerca da eficácia do método da tortura e em relação à culpa ou inocência da vítima. Por exemplo, uma das perguntas dava como 100% certo que a tortura tornaria possível chegar à informação de um código que desarmaria uma bomba-relógio que mataria milhares de pessoas. Nesse caso, a vítima era tida como culpada com 100% de certeza pelo ato terrorista. Em outra variação da pergunta, havia 1% de chance de que a vítima daria o código da bomba e 99% de que as vidas seriam salvas. Em outra pergunta, a filha da vítima era colocada sob tortura para que o terrorista revelasse o código da bomba. “A pesquisa revelou que, para os cadetes australianos, a tortura é mais moralmente permissível do que acha o grupo norte-americano. Independentemente da atribuição de culpa ou do grau de certeza quanto à utilidade da tortura, o mais revelador é que houve uma aceitação ampla da tortura entre esses estudantes”, disse o pesquisador.
Logo após a palestra de Alhoff, um participante enviou, do auditório, a seguinte pergunta aos integrantes da mesa: “O que cada um de vocês, pessoalmente, faria numa situação de bomba-relógio?”. William Scheuerman, da Universidade de Indiana, disse que não seria possível responder à questão, naquele momento, com todas as nuances que a resposta exigiria. Alhoff observou que nunca seria possível chegar a uma resposta prática para uma pergunta teórica como aquela, pois na prática não seria possível comprovar a veracidade do argumento, ou seja, o de que haveria 100% de eficácia na aplicação da tortura. “Não se trata de usar esse caso de exceção para justificar uma regra, e sim de vermos qual é o nosso compromisso moral maior e em quais valores acreditamos”, disse.
Dilema moral – Para os estudiosos e filósofos que pensam o tema, há duas abordagens possíveis sobre a aceitação ou recusa da tortura. Os defensores da prática a aceitariam sob condições extremas e justificam moralmente essa atitude segundo uma lógica utilitarista, em que os meios são justificados pelos fins. No caso de tortura a terroristas, os fins seriam salvar milhares de vidas e, portanto, a tortura seria um preço a ser pago mesmo que isso sacrifique os valores sobre os quais estão estabelecidos os ideais democráticos.
O oposto disso é a chamada visão “absolutista”, daqueles que “nunca, absolutamente” defenderiam quaisquer atos desumanos. Yuval Ginbar defendeu a visão a que chamou de “absolutismo mínimo”, segundo a qual “certos atos devem ser proibidos absolutamente, quaisquer que sejam as conseqüências”. Ginbar usou o exemplo da tortura a bebês, pois esta também deve ser uma situação a ser considerada pelos que defendem a tortura. Hipoteticamente, pensando pelo lado utilitarista, a tortura de um bebê, transmitida pela internet para 300 mil assassinos pedófilos, estatisticamente cancelaria os planos de pelo menos 1% (ou 3 mil) dessa audiência em perpetrar algum crime do tipo, já que esse contingente poderia “se divertir” em casa com aquelas imagens. Isso também seria justificável, ainda segundo a mesma visão, já que a morte de um bebê salvaria da tortura milhares de outras crianças.
Para Ginbar, nada poderia ser mais moralmente corruptor do que justificar a tortura pela lógica utilitarista, já que não seria necessário um agente moral para determinar o que é certo ou o que é errado, mas uma simples calculadora de bolso, já que o ponto mudou para quantas vidas a serem salvas.
Para o professor Henry Shue, da Universidade de Oxford, no Reino Unido – que falou na sessão de abertura do seminário –, sempre houve e sempre haverá estados de exceção, em que as sociedades precisam fazer escolhas. “As emergências nunca vão acabar e a tortura é um atalho conveniente. É muito fácil deixar os soldados à solta para que eles resolvam os problemas que o estado deveria solucionar. Temos de reconhecer que essa prática é um mal incompatível com os ideais cristãos e os ideais democráticos”, disse.
Shue lembrou que uma liderança forte não precisa usar da força e, ao contrário, governos fracos precisam dela para se impor. Declarou-se um cidadão norte-americano orgulhoso de sua nacionalidade, mas lamentou a linha adotada pela atual administração dos Estados Unidos. “O governo de George W. Bush jogou fora a parte do poder sobre a qual é construído o respeito ao tolerar a tortura”, afirmou.
Também participaram da sessão de abertura o professor Celso Lafer, da Faculdade de Direito da USP, o secretário de Ensino Superior do estado de São Paulo, Carlos Vogt, que leu o poema Geração, de sua autoria, o coordenador do NEV, Sérgio Adorno, o secretário da Justiça e Defesa da Cidadania, Luís Antônio Marrey, o ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos José Gregori e Pedro Montenegro, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
“Tortura light” – A pesquisadora Jéssica Wolfendale, de Melbourne, na Austrália, discorreu sobre a disseminação da tortura e sua aceitação pela sociedade através do eufemismo “tortura light”. O termo, explicou, produz encadeamentos lógico-discursivos que minimizam a idéia da tortura, tornando-a aceitável e até mesmo desejável em situações extremas. Assim, a prática poderia ser justificável, se for moderada e usada em situação extrema, cumprindo a função de arrancar de terroristas ou de traficantes, por exemplo, informações que possam garantir a segurança de centenas de pessoas. É por este viés que é construída a argumentação do discurso favorável à tortura nos Estados Unidos, disse.
Para David Rodin, da Universidade de Oxford, o paradoxo moral sobre a questão da tortura não deve ser analisado como linguagem de direitos humanos, mas ser considerado como um aspecto de prioridade moral. Assim, a rejeição à tortura se basearia unicamente na defesa dos valores e virtudes humanas, visto que tanto vítima como torturador perderiam sua essência humana ao participar de atos cruéis e degradantes.
Para Rodin, a argumentação favorável à tortura deriva da relação entre governos e cidadãos, que pode ser comparada à relação dos pais com os filhos. Os governos têm o compromisso coletivo de proteger os cidadãos, assim como os pais devem proteger seus filhos. “O poder outorgado pelos cidadãos ao governo pressupõe responsabilidades e o dever de cuidar deles. Mas esse poder é limitado pelas crenças e valores e, portanto, ele deve ser consistente com o nosso compromisso social. Assim, um policial seria obrigado a nos proteger e não a praticar a tortura, pois não lhe foi dado o poder de violar os valores e crenças sociais”, argumentou Rodin.
“Ora, vocês devem então se perguntar: ‘Mas você está dizendo, então, que é preferível morrer para proteger nossos valores?'. Eu respondo que fazemos isso o tempo todo. Quando a construção de uma estrada é embargada para proteger o ambiente, estamos preservando nossos valores, mesmo que seu alargamento significasse a salvação de milhares de vidas. Meu governo poderia ter colocado, por exemplo, mais agentes policiais nas ruas em vez de financiar filósofos como eu, e isso poderia garantir mais segurança aos cidadãos. Porém, essas escolhas são exemplos do que é uma vida política. Concordamos com a morte para preservar valores que nos são caros”, afirmou Rodin.
O questionamento sobre essa questão moral pode ser mais encorajador do que parece, disse Rodin. “Uma pesquisa do Instituto Gallup, feita nos Estados Unidos em 2006, mostrou que a grande maioria dos entrevistados não concordaria com a ‘tortura light', mesmo que para salvar milhares de vidas numa situação de bomba-relógio. Uma outra perspectiva é analisar as leis que a comunidade democrática aprovou. O Brasil e também os Estados Unidos têm o compromisso institucional de rejeição à tortura. E, quanto aos valores, eles podem ser vistos de dois ângulos. Num deles, os valores representam certas preferências que podem mudar conforme a ocasião. No outro, representam certas preferências que não se mudam assim do dia para a noite, como a liberdade e a democracia, por exemplo. Estas últimas são compromissos que funcionam como razões e fundamentos para uma rede de outros compromissos e fatos sociais.”
Rodin remeteu seu discurso para a pergunta feita no dia anterior, sobre o seu próprio comportamento numa situação prática de bomba-relógio. É possível que “fizesse qualquer coisa para preservar minha família e meus filhos. Mas isso não diz nada sobre o arcabouço legal e ético que eu quero para a sociedade em que eu vivo. Portanto, a pergunta certa seria: que tipo de leis eu posso querer caso eu ou minha família venhamos a ser vítimas de tortura?”. Rodin disse que a aceitação da tortura tem uma ressonância profunda. “Tony Blair e Bush argumentam que o terrorismo é uma ameaça aos valores democráticos. Mas valores não são algo que se possa ameaçar com bombas. Por outro lado, a tortura funciona contra os nossos valores, pois somos nós que podemos enfraquecer e superar nossos valores”, disse.
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