Certas questões morais e éticas atravessam os tempos sem que as sociedades consigam ser coerentes de fato com o falar e o agir. A disseminação da tortura, especialmente nos espaços prisionais, anda de mãos dadas com a deflagração de uma cultura da violência no imaginário coletivo. Práticas violentas e degradantes contra a pessoa humana têm se

tornado cada vez mais institucionalizadas nas democracias ocidentais. Pior, aceitas e mesmo apoiadas por amplas camadas populares. Esse fato – e seus desdobramentos morais e éticos – foi demonstrado por especialistas do direito, filósofos, historiadores e outros pesquisadores do tema durante o 1 o Seminário Internacional sobre a Tortura. Realizado nos dias 25, 26 e 27 de fevereiro pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, o encontro reuniu, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, estudiosos de universidades como a de Oxford, no Reino Unido, de Michigan e de Indiana, nos Estados Unidos, de Melbourne, na Austrália, e até um ex-agente especial da contra-informação do Exército dos Estados Unidos, veterano da guerra do Iraque.

Nada mais atual num momento em que os Estados Unidos e o mundo ainda discutem os desdobramentos dos ataques de 11 de setembro de 2001, o que inclui a tortura

amplamente aplicada nos interrogatórios feitos a terroristas. A polêmica veio à tona principalmente após as revelações dos atos degradantes realizados contra prisioneiros da base militar norte-americana na Baía de Guantánamo, ao sul da ilha de Cuba, e do complexo penitenciário da cidade iraquiana de Abu Ghraib, cujas imagens, amplamente disseminadas pela imprensa e internet, chocaram a opinião pública.

Além dos desdobramentos comportamentais e legais quanto à aceitação social da tortura, as exposições dos palestrantes demonstraram que a institucionalização da prática é um dado preocupante. Essa preocupação tem base em muitos fatos. O mais recente deles é tratado numa matéria publicada em 22 de fevereiro pelo jornal The New York Times. Segundo a matéria, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos revelou que haverá uma sindicância interna para investigar a aprovação legal a atos de tortura aplicados por agentes da CIA (Central Intelligence Agency), entre eles o famoso waterboarding, que consiste em consecutivos mergulhos da cabeça da vítima na água.

“As propostas de salvaguardas contra ‘tortura injustificada' e mesmo as ‘garantias de tortura' usadas apenas em altos círculos militares vêm sendo aperfeiçoadas com o argumento de que esses instrumentos deveriam ser aplicados nos casos de ticking bombers (homens-bomba ou situações extremas de bomba-relógio). Mas este é um terreno escorregadio e tal argumento não dissolve o dilema moral sobre o qual a situação é apresentada”, disse Yuval Ginbar, conselheiro da Anistia Internacional e conselheiro sênior do Comitê Público Contra a Tortura em Israel. O estudioso assinala os prós e contras de seus argumentos em sua mais recente publicação, Why not torture terrorist? – Moral, practical and legal aspects of the ‘ticking bomb' justification for torture, a ser lançada neste mês pela Oxford University Press.


"As emergências nunca vão acabar e a tortura é um atalho conveniente. É muito fácil deixar os soldados à solta para que eles resolvam os problemas que o estado deveria solucionar. Temos que reconhecer que essa prática é um mal incompatível com os ideais cristãos e os ideais democráticos", disse especialista no seminário sobre tortura, realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP

Roy King, do Instituto de Criminologia de Cambridge, um especialista em sistema carcerário britânico e norte-americano, falou de casos famosos de tortura, como o da prisão de Pelican Bay, e o do Corredor da Morte em Oklahoma, nos Estados Unidos. Em todos, houve comprovação da prática. No entanto, nem as instituições nem os torturadores foram penalizados. Em Oklahoma, por exemplo, constatou-se que prisioneiros com problemas mentais foram mandados para o corredor da morte e torturados antes de morrer por carcereiros que se divertiam ao microfone dizendo frases como “Ei, aqui quem fala é Deus”. King conta que “o resultado do tribunal de Oklahoma remete a um texto que diz algo como ‘este presídio é dirigido pelo Departamento Correcional de acordo com suas próprias regras e com as leis dos Estados Unidos e de acordo com o desejo dos cidadãos de Oklahoma'”.

A violência encenada no filme Tropa de elite, de José Padilha (Brasil, 2007), foi citada diversas vezes nas perguntas de uma platéia ampla e eclética, composta por acadêmicos, operadores do direito, estudantes, ativistas e até policiais civis e militares.

Para a carioca Tânia Kolker, integrante do grupo Tortura Mais, do Rio de Janeiro, o encontro “trouxe a oportunidade de entender melhor qual é a lógica que está sendo construída para legitimar a chamada ‘tortura light'. Trata-se de um procedimento que sempre foi considerado tortura e que agora está sendo visto como algo possível e aceitável dentro de certas condições, numa relação de custo-benefício para garantir a proteção da sociedade”, disse.

Kolker concorda que o filme de Padilha reflete o imaginário popular, especialmente porque a tortura passa por um processo de aceitação e naturalização na sociedade brasileira. “Se no passado ela só existia nos porões e não era possível ser denunciada, hoje ela tem aplauso na sociedade e não é mais uma prática que precisa ser feita às escondidas”, afirmou.

Bomba-relógio – O professor Fritz Alhoff, da Universidade do Oeste de Michigan, nos Estados Unidos, mostrou uma pesquisa realizada com 1.030 estudantes de uma academia militar da Austrália e da Universidade do Oeste de Michigan, nos Estados Unidos. Com base nos conceitos do utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832), a pesquisa buscava saber quão aceitável moralmente é a tortura entre aqueles jovens e se em algumas situações ela se torna mais aceitável.

Alguns questionários foram aplicados aos estudantes de forma a colocar a seguinte questão: “O que você faria numa situação de bomba-relógio?”. A pergunta foi feita com algumas variações acerca da eficácia do método da tortura e em relação à culpa ou inocência da vítima. Por exemplo, uma das perguntas dava como 100% certo que a tortura tornaria possível chegar à informação de um código que desarmaria uma bomba-relógio que mataria milhares de pessoas. Nesse caso, a vítima era tida como culpada com 100% de certeza pelo ato terrorista. Em outra variação da pergunta, havia 1% de chance de que a vítima daria o código da bomba e 99% de que as vidas seriam salvas. Em outra pergunta, a filha da vítima era colocada sob tortura para que o terrorista revelasse o código da bomba. “A pesquisa revelou que, para os cadetes australianos, a tortura é mais moralmente permissível do que acha o grupo norte-americano. Independentemente da atribuição de culpa ou do grau de certeza quanto à utilidade da tortura, o mais revelador é que houve uma aceitação ampla da tortura entre esses estudantes”, disse o pesquisador.

Logo após a palestra de Alhoff, um participante enviou, do auditório, a seguinte pergunta aos integrantes da mesa: “O que cada um de vocês, pessoalmente, faria numa situação de bomba-relógio?”. William Scheuerman, da Universidade de Indiana, disse que não seria possível responder à questão, naquele momento, com todas as nuances que a resposta exigiria. Alhoff observou que nunca seria possível chegar a uma resposta prática para uma pergunta teórica como aquela, pois na prática não seria possível comprovar a veracidade do argumento, ou seja, o de que haveria 100% de eficácia na aplicação da tortura. “Não se trata de usar esse caso de exceção para justificar uma regra, e sim de vermos qual é o nosso compromisso moral maior e em quais valores acreditamos”, disse.

Dilema moral – Para os estudiosos e filósofos que pensam o tema, há duas abordagens possíveis sobre a aceitação ou recusa da tortura. Os defensores da prática a aceitariam sob condições extremas e justificam moralmente essa atitude segundo uma lógica utilitarista, em que os meios são justificados pelos fins. No caso de tortura a terroristas, os fins seriam salvar milhares de vidas e, portanto, a tortura seria um preço a ser pago mesmo que isso sacrifique os valores sobre os quais estão estabelecidos os ideais democráticos.

O oposto disso é a chamada visão “absolutista”, daqueles que “nunca, absolutamente” defenderiam quaisquer atos desumanos. Yuval Ginbar defendeu a visão a que chamou de “absolutismo mínimo”, segundo a qual “certos atos devem ser proibidos absolutamente, quaisquer que sejam as conseqüências”. Ginbar usou o exemplo da tortura a bebês, pois esta também deve ser uma situação a ser considerada pelos que defendem a tortura. Hipoteticamente, pensando pelo lado utilitarista, a tortura de um bebê, transmitida pela internet para 300 mil assassinos pedófilos, estatisticamente cancelaria os planos de pelo menos 1% (ou 3 mil) dessa audiência em perpetrar algum crime do tipo, já que esse contingente poderia “se divertir” em casa com aquelas imagens. Isso também seria justificável, ainda segundo a mesma visão, já que a morte de um bebê salvaria da tortura milhares de outras crianças.

Para Ginbar, nada poderia ser mais moralmente corruptor do que justificar a tortura pela lógica utilitarista, já que não seria necessário um agente moral para determinar o que é certo ou o que é errado, mas uma simples calculadora de bolso, já que o ponto mudou para quantas vidas a serem salvas.

Para o professor Henry Shue, da Universidade de Oxford, no Reino Unido – que falou na sessão de abertura do seminário –, sempre houve e sempre haverá estados de exceção, em que as sociedades precisam fazer escolhas. “As emergências nunca vão acabar e a tortura é um atalho conveniente. É muito fácil deixar os soldados à solta para que eles resolvam os problemas que o estado deveria solucionar. Temos de reconhecer que essa prática é um mal incompatível com os ideais cristãos e os ideais democráticos”, disse.

Shue lembrou que uma liderança forte não precisa usar da força e, ao contrário, governos fracos precisam dela para se impor. Declarou-se um cidadão norte-americano orgulhoso de sua nacionalidade, mas lamentou a linha adotada pela atual administração dos Estados Unidos. “O governo de George W. Bush jogou fora a parte do poder sobre a qual é construído o respeito ao tolerar a tortura”, afirmou.

Também participaram da sessão de abertura o professor Celso Lafer, da Faculdade de Direito da USP, o secretário de Ensino Superior do estado de São Paulo, Carlos Vogt, que leu o poema Geração, de sua autoria, o coordenador do NEV, Sérgio Adorno, o secretário da Justiça e Defesa da Cidadania, Luís Antônio Marrey, o ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos José Gregori e Pedro Montenegro, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

“Tortura light” – A pesquisadora Jéssica Wolfendale, de Melbourne, na Austrália, discorreu sobre a disseminação da tortura e sua aceitação pela sociedade através do eufemismo “tortura light”. O termo, explicou, produz encadeamentos lógico-discursivos que minimizam a idéia da tortura, tornando-a aceitável e até mesmo desejável em situações extremas. Assim, a prática poderia ser justificável, se for moderada e usada em situação extrema, cumprindo a função de arrancar de terroristas ou de traficantes, por exemplo, informações que possam garantir a segurança de centenas de pessoas. É por este viés que é construída a argumentação do discurso favorável à tortura nos Estados Unidos, disse.

Para David Rodin, da Universidade de Oxford, o paradoxo moral sobre a questão da tortura não deve ser analisado como linguagem de direitos humanos, mas ser considerado como um aspecto de prioridade moral. Assim, a rejeição à tortura se basearia unicamente na defesa dos valores e virtudes humanas, visto que tanto vítima como torturador perderiam sua essência humana ao participar de atos cruéis e degradantes.

Para Rodin, a argumentação favorável à tortura deriva da relação entre governos e cidadãos, que pode ser comparada à relação dos pais com os filhos. Os governos têm o compromisso coletivo de proteger os cidadãos, assim como os pais devem proteger seus filhos. “O poder outorgado pelos cidadãos ao governo pressupõe responsabilidades e o dever de cuidar deles. Mas esse poder é limitado pelas crenças e valores e, portanto, ele deve ser consistente com o nosso compromisso social. Assim, um policial seria obrigado a nos proteger e não a praticar a tortura, pois não lhe foi dado o poder de violar os valores e crenças sociais”, argumentou Rodin.

“Ora, vocês devem então se perguntar: ‘Mas você está dizendo, então, que é preferível morrer para proteger nossos valores?'. Eu respondo que fazemos isso o tempo todo. Quando a construção de uma estrada é embargada para proteger o ambiente, estamos preservando nossos valores, mesmo que seu alargamento significasse a salvação de milhares de vidas. Meu governo poderia ter colocado, por exemplo, mais agentes policiais nas ruas em vez de financiar filósofos como eu, e isso poderia garantir mais segurança aos cidadãos. Porém, essas escolhas são exemplos do que é uma vida política. Concordamos com a morte para preservar valores que nos são caros”, afirmou Rodin.

O questionamento sobre essa questão moral pode ser mais encorajador do que parece, disse Rodin. “Uma pesquisa do Instituto Gallup, feita nos Estados Unidos em 2006, mostrou que a grande maioria dos entrevistados não concordaria com a ‘tortura light', mesmo que para salvar milhares de vidas numa situação de bomba-relógio. Uma outra perspectiva é analisar as leis que a comunidade democrática aprovou. O Brasil e também os Estados Unidos têm o compromisso institucional de rejeição à tortura. E, quanto aos valores, eles podem ser vistos de dois ângulos. Num deles, os valores representam certas preferências que podem mudar conforme a ocasião. No outro, representam certas preferências que não se mudam assim do dia para a noite, como a liberdade e a democracia, por exemplo. Estas últimas são compromissos que funcionam como razões e fundamentos para uma rede de outros compromissos e fatos sociais.”

Rodin remeteu seu discurso para a pergunta feita no dia anterior, sobre o seu próprio comportamento numa situação prática de bomba-relógio. É possível que “fizesse qualquer coisa para preservar minha família e meus filhos. Mas isso não diz nada sobre o arcabouço legal e ético que eu quero para a sociedade em que eu vivo. Portanto, a pergunta certa seria: que tipo de leis eu posso querer caso eu ou minha família venhamos a ser vítimas de tortura?”. Rodin disse que a aceitação da tortura tem uma ressonância profunda. “Tony Blair e Bush argumentam que o terrorismo é uma ameaça aos valores democráticos. Mas valores não são algo que se possa ameaçar com bombas. Por outro lado, a tortura funciona contra os nossos valores, pois somos nós que podemos enfraquecer e superar nossos valores”, disse.

 
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