Quando o navio Kasato Maru aportou em Santos, no dia 18 de junho de 1908, os 781 imigrantes japoneses imaginavam que estariam só de passagem. Tinham a certeza de que a terra dos grãos de ouro os levaria de volta ricos e felizes. Trabalharam de sol a sol. E foram vendo o sonho de voltar para o Japão ficar cada vez mais distante. Aprenderam que o

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grão de ouro era escuro e amargo. Levaram tempo para aprender a saborear o gosto do café.

O sonho, no entanto, trouxe uma nova realidade para o Brasil. Hoje, os japoneses e descendentes somam cerca de 1,5 milhão de pessoas. É a maior população de nikkeis fora do Japão, impulsionando a economia, a cultura e, o mais bonito,  compondo um novo rosto de brasileiros. De olhos puxados, cabelos lisos ou anelados e características típicas de quem descende da terra do sol.

Cultura clássica – Por todo o País, há uma série de eventos em homenagem aos cem anos da imigração japonesa. Na Pinacoteca do Estado, a mostra “O Florescer das Cores: A arte do período Edo” (1603-1867), organizada pela Agência Cultural do Japão, com apoio do Consulado Geral do Japão em São Paulo e da Fundação Japão, traz os tesouros da cultura clássica japonesa. São peças  que vêm de diversos museus do Japão para lembrar um tempo em que aquele

país viveu sob o domínio de Tokugawa, um guerreiro e estadista que impôs um governo centralizado e um isolamento em relação ao resto do mundo. Edo era a antiga denominação de Tóquio, que, naquele período, passou a ser a capital do país.

A exposição, sob a curadoria de Saito Takamasa, é dividida em quatro módulos. O primeiro apresenta as vestimentas e os ornamentos do corpo, como os quimonos kosode, de mangas pequenas, o furisode, de mangas longas, e katabira, que não têm forro e é feito de cânhamo (uma espécie de planta rica em minerais que garantiu a sobrevivência dos japoneses e chineses em períodos de guerra). Os  visitantes vão poder observar a tecelagem, o tingimento e as estampas que se inspiram na natureza. Essa coleção se completa com os pentes, presilhas e ornamentos de diferentes materiais e técnicas artesanais.

Curiosos também os quimonos usados nos teatros nô e kabuki. “O  kabuki é uma modalidade de teatro que se formou no período Edo, cujos vestuários se caracterizam por cores muito fortes e brilhantes, que tinham como função atrair a atenção do público sobre a representação dos atores”, explica Takamasa. “O Nô é um teatro de dança e canto que combina o recitativo e a música para contar uma história. Ele se caracteriza por uma beleza sutil e poética que se expressa por meio do uso de máscaras e vestuário luxuosos.”


As várias manifestações artísticas japonesas: contribuições de um povo para a cultura brasileira

O segundo módulo mostra o universo dos samurais, os guerreiros tradicionais do Japão feudal que povoam o imaginário dos ocidentais. O público poderá observar duas armaduras completas e selas de montaria. “Essas armaduras são usadas desde a Antigüidade e foram se transformando com sofisticadas técnicas artesanais para garantir a defesa”, orienta o curador. Outro destaque são duas espadas, uma confeccionada por Bungo-no Kuni Yukihira, no século 13, e outra por Masatsume, no século 12. Essas peças são consideradas pelos especialistas como “tesouro nacional” e são expostas pela primeira vez na América Latina.

O terceiro módulo é dedicado à cerâmica japonesa. Há peças produzidas em diferentes períodos e locais, iniciando-se pelas cerâmicas jomon, feitas há 12.500 anos e consideradas uma das mais antigas do mundo. Do período Edo, há as porcelanas com desenhos coloridos, criados a partir da técnica sometsuke de imari, que iniciou a produção de porcelanas no Japão; as peças de kokutani, voltadas só para o mercado nacional; de kakiemon, que influencia a produção na Europa; de nabeshima, que tem a melhor técnica e reúne os melhores materiais da época, e de ninsen e kenzan que se desenvolvem em Kyoto, centro da cultura tradicional.

No quarto módulo, o visitante vai apreciar os artefatos de laca. Há uma coleção de pequenos objetos chamados inrô, ou seja, caixas pequeninas usadas para carregar remédios. Também é exibida uma coleção de objetos para o enxoval de noivas da elite, incluindo móveis para toaletes femininas, objetos de papelaria e artigos para incenso, todos decorados luxuosamente com a técnica makie que utiliza o pó de ouro na aplicação do verniz.

Viagem de luz – É o universo do ser japonês que “A Viagem de Yukio Suzuki” propicia no Museu Brasileiro da Escultura (MuBe). De Sendai, a cidade onde nasceu, que fica no nordeste do Japão, Yukio trouxe a luz do sol e as cores fortes da natureza e das estampas dos quimonos. Chegou no Brasil em 1962, junto com a mulher Shoko, também artista plástica. Enquanto Yukio impressionou os brasileiros pela atmosfera de seu desenho, Shoko surpreendia pela harmonia, delicadeza e estética das formas de sua cerâmica.

Quando o público mergulhar na viagem do artista, há de perceber também a serenidade da presença de Shoko na sua trajetória. Com muita delicadeza, as curadoras Lila Papenburg e Sonia Bogaz revelam momentos pontuais do artista. Através do cenário criado por Daniele Klintowitz, é possível captar a harmonia da obra do artista. A mostra consegue expressar a estética da ikebana. Todos os espaços estão em equilíbrio, como a vida do artista. Espaços que revelam a contemplação do céu, da flor, do mar, do homem e da cidade. “O visitante vai perceber uma linha cronológica. Yukio Suzuki sempre foi arrojado, experimentava diversas técnicas em um constante exercício da pintura e do desenho”, conta Lila.

É esse exercício que Lila mostra numa parede com 780 desenhos. “Ele desenvolveu durante um ano, de 2 de outubro de 1981 a 1o de outubro de 1982, um estudo da luz em diversos momentos do dia. Cada desenho traz a hora e o dia em que foi feito. Esses registros revelam a contemplação da luz e da sombra.”

Juntos, os desenhos compõem uma paleta de cores de todas as estações do ano. Interessante também a enorme maçã, com 2,5 metros de altura, criada para a 14a Bienal Internacional de São Paulo, em 1977. A instalação foi recriada e traz a busca do artista para integrar a arte no cotidiano da cidade. Em primeiro plano está a maçã gigante, vermelha e solitária. No fundo, a cidade, sempre em movimento.

“Foi no verão de 1985 que fui apresentado a Yukio Suzuki, no sítio em que o artista viveu todo o seu tempo de Brasil”, lembra João Frayze Pereira, professor do Instituto de Psicologia da USP. “Depois dos cumprimentos de praxe e aparentemente sem cerimônia, Suzuki apontou um caminho, convidando-me a andar pelo jardim. Com passos curtos e rápidos atravessou o terreno, descendo até o córrego na beirada do qual se vegetalizava um charco verde e rosa. Aí, sim, uma reunião de lótus formou o cenário para uma breve cerimônia: olhar dirigido às plantas e ao mesmo tempo para além delas. Esse foi o artista que conheci: um homem hipnotizado pela beleza do mundo. A conversa sempre foi pouca, mas alguma experiência sensorial quase sempre intermediava os relacionamentos do artista.”

Para o crítico e diretor cultural do MuBe Jacob Klintowitz, a arte de Yukio Suzuki foi a projeção de sua existência e o exercício da pintura e do desenho, uma maneira de aprimorar o seu ser. “O artista elabora no silêncio, no espaço criado e magnetizado na relação do homem com o mundo. O alvorecer da consciência. Em Yukio Suzuki, a realidade é um complexo sistema de aparências, reflexos da aparência e percepção de sombras. O homem que contempla a imagem do homem projetada num espaço sem registro e parâmetros. Espaço no qual está ausente a gravidade. Um espaço na Terra que não pertence à Terra.”

Entre planetas – A partir do dia 6 de maio, quem estiver cruzando o Espaço Citi – um dos pontos culturais mais movimentados de São Paulo, pois fica no corredor que liga a avenida Paulista com a alameda Santos, vai conhecer a trajetória de Takashi Fukushima.

A curadoria é de Jacob Klintowitz. Experiente e sensível ao percurso dos japoneses na arte brasileira, Klintowitz irá dividir as obras em três núcleos e, com certeza, saberá compor, através do trabalho de Fukushima, a paisagem poética dos cem anos da imigração japonesa.

Fukushima nasceu em São Paulo, entre as cores do Grupo Guanabara, integrado e fundado por 34 artistas, na maioria imigrantes italianos e japoneses. Entre eles, está o pai, Tikashi Fukushima (1920-2001). “Cresci  vendo as pinturas de Takahashi, Tomoo Handa, Arcangelo Ianelli, Takeshi Suzuki, Wega Nery, Massao Okinaka e o padrinho Manabu Mabe.”

Diante de tantas paisagens, o artista sente a responsabilidade de continuar puxando o fio vermelho que o pai espalhava nas telas em branco antes de começar a pintar. Era como se o infinito Tikashi Fukushima deixasse a sua alma escondida. Uma alma que o filho compartilha, porém com formas diferentes.

Nessa mostra, Takashi Fukushima reúne obras desde meados da década de 80, como as pinturas sobre papel que expôs, em 1988, no Espaço Latino Americano, em Paris. Fukushima mostra o caminho que foi descobrindo. Importante lembrar que ele integrou o movimento da Jovem Arte Contemporânea no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, em 1970, e aos 20 anos já participava de exposições por todo o país. Nessa travessia, ele encontrou os Planetas, uma série que vem desenvolvendo há seis anos e que estará exposta no Espaço Citi.

O fio vermelho do pai está nas mãos do filho na contemplação do universo e na beleza como ele filtra a luz das estações do ano. Bonito ver a dança das cores e formas quando ele retrata a primavera na obra Três graças, inspirada no quadro de Botticelli. Ou quando ele capta a energia de Júpiter ou de Marte.

Como na arte dos primeiros imigrantes, a sua arte flui como o vento. Com leveza, força. E essencial.

A exposição “O Florescer das Cores: A arte do período Edofica em cartaz na Pinacoteca do Estado (praça da Luz, 2) até o dia 22 de junho, de terça-feira a domingo, das 10 às 18 horas na praça da Luz, 2.

A mostra “A Viagem de Yukio Suzuki” está no Museu Brasileiro de Escultura, o Mube (avenida Europa, 218), de terça-feira a domingo, das 10 às 19 horas.
 
A exposição de Takashi Fukushima estará no Espaço Cultural Citi (avenida Paulista, 1.111) a partir do dia 6 de maio, de segunda a sexta-feira, das 9 às 19 horas, sábados, domingos e feriados, das 10 às 17 horas.

 
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