Estudantes corriam; cassetetes desenhavam parábolas no ar e só encontravam sossego quando atingiam pernas, costas, cabeças para depois recomeçar sua dança; bombas zuniam para lá e para cá; cavalos, tanques e jipes atropelavam o que estivesse à frente. Em diversos recantos do mundo – do mais desenvolvido, como no Quartier Latin parisiense e nas

Foto crédito: Arquivo/CCS-USP

universidades dos Estados Unidos, de resto sacudidos pelos assassinatos de Martin Luther King e de Robert Kennedy; do que constituía sob a órbita soviética o outro pólo da Guerra Fria, como na Primavera de Praga; do que padecia (e segue padecendo) das mazelas terceiro-mundistas, como na cidade do México do massacre de Tlatelolco –, o ano de 1968 deixou heranças que hoje, exatas quatro décadas depois, motivam ondas de filmes, livros, debates e polêmicas.

Para o escritor mexicano Carlos Fuentes, o

O conflito na rua Maria Antonia, em outubro de 1968: marcas de uma década de contestação e mudanças

balanço daquele ano remete à lembrança do rei grego de Epiro, Pirro, que invadiu a Itália em 280 a.C. e venceu os romanos em Heracléia, embora com perdas enormes em suas tropas. “Mais uma vitória como essa e estou perdido”, exclamou o soberano. “Tenho pensado no antigo rei Pirro nos últimos tempos para perguntar-me se as derrotas aparentes dos movimentos estudantis em 1968 e, nesse mesmo ano, do ‘socialismo com rosto humano’ na Checoslováquia não foram, na realidade, fracassos pírricos, isto é, derrotas aparentes cujos frutos só puderam ser avaliados a longo prazo: derrotas pírricas, vitórias adiadas”, escreve no recém-lançado Em 68 (leia texto abaixo).

Aqui e ali, entretanto, algumas vozes alertam sobre o que julgam ser mitificação – ou seja, uma celebração autoglorificante da geração que estava na casa dos 20 anos na década de 60 e que hoje ocupa postos de destaque no cenário político, acadêmico e cultural. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, um dos pais da Teologia da Libertação latino-americana, disse numa palestra em São Paulo, em 2003 – 35 anos após o emblemático 68 –, que aquele não foi um ano otimista. “Massacre em Tlatelolco, AI-5 no Brasil, ditaduras em nossos países, início do descalabro de alguns regimes democráticos”, apontou. Entre as novidades desagradáveis, citou o fato de que os golpes de estado não eram mais aventuras de caudilhos, mas sim institucionais, originados nos exércitos nacionais.

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A cerimônia de devolução para a USP do prédio da Maria Antonia, realizada em 1991 na Reitoria: construção é tombada como patrimônio histórico

Gutiérrez referiu-se à Conferência Episcopal de Medellín (também de 68), que pensava a Igreja do continente à luz da renovação do Concílio Vaticano II. “Nos anos 60, a presença do pobre na América Latina começou a ter cor e dimensão muito grandes. Começamos a ver a crueldade da pobreza como antes não havíamos visto.” Conseqüentemente, para o teólogo, dizer que 1968 foi um ano otimista é “uma coisa astuta, porque então o que Medellín afirmava, que a pobreza é um mal e não santifica o pobre, antes é um escândalo num continente majoritariamente cristão, não valia mais”. Seja como for, os anos 60 passaram à história como “a década que mudou tudo” – título de uma edição especial, em livro, da revista Veja publicada já em 1969. O especial, aliás, foi editado por Zuenir Ventura, que 20 anos depois publicaria 1968 – O ano que não terminou. O livro acaba de ser relançado numa caixa com um segundo volume: 1968 – O que fizemos de nós.

Leite fervendo – “Foi como se esquecessem o leite fervendo sobre o fogão. Em 1968, o mundo transbordou. Foi como se tudo fosse terminar no ano seguinte. A história avançava com velocidade, fúria e criatividade. Nada seria como antes. Ninguém ficaria parado”, escreve o jornalista Gilberto Amendola em Maria Antonia – A história de uma guerra, mais um dos títulos sobre o ano a sair do forno. O livro reconstitui os confrontos entre alunos da USP e do Mackenzie no mês de outubro. Os embates mobilizaram centenas de pessoas de cada lado e resultaram na morte do estudante secundarista José Guimarães, que havia ido ao local apenas por curiosidade.

Outra conseqüência foi a aceleração da retirada dos cursos da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) uspiana do movimentado centro da cidade e sua transferência para o Butantã. Amendola, que nem era nascido na época (tem 32 anos), pesquisou arquivos dos jornais (como no seu próprio local de trabalho, o Jornal da Tarde) e ouviu testemunhas oculares, como o escritor Mario Prata, o jornalista Percival de Souza, o ex-ministro e ex-deputado José Dirceu e o professor Shozo Motoyama, diretor do Centro Interunidades de História da Ciência da USP.

Foto crédito: Jorge Butsuem
O líder estudantil José Dirceu, nos anos 60: luta contra a ditadura

Em linguagem que passa longe dos rigores acadêmicos, Amendola faz na primeira parte do livro uma contextualização de alguns dos aspectos que marcavam o clima político e cultural da época, detendo-se na descrição do cenário que seria palco das batalhas de outubro. “Na década de 60, a rua Maria Antonia, na Vila Buarque, era o endereço da agitação estudantil, política e etílica dos universitários paulistas. Em seus modestos 500 metros de extensão, localizavam-se duas importantes instituições de ensino. De um lado, o prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; do outro, o Mackenzie.” Um dos entrevistados, o artista plástico Cláudio Tozzi – então aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) –, definiu a região como “o nosso Quartier Latin”, referindo-se ao bairro universitário parisiense que vivera as agitações de maio.

Amendola relembra o baque sofrido pelo movimento estudantil a partir do golpe militar de 1964 e as suas primeiras tentativas de reorganização, marcadas pelas manifestações de setembro de 1966. Na chamada “setembrada”, o slogan “Abaixo a ditadura” começou a ganhar força. “Em setembro de 1966, a UNE (União Nacional dos Estudantes) voltava a ganhar relevância no cenário nacional. A chama revolucionária voltava a se acender nos olhos da garotada”, descreve. Como nem só de esquerdistas vive a política, às organizações que visavam ao fim da ditadura opunham-se grupos paramilitares de direita. O mais notório deles era o Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, que tinha adeptos também no meio estudantil. Amendola registra que, no total, o CCC tinha cerca de 5 mil membros, na maioria “capangas da classe média e gente disposta a subir na hierarquia policial ou militar, alguns candidatos a delegados, integrantes do Dops (Departamento de Orden Política e Social) e membros da direita religiosa”, abrigados em entidades como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP).

Foto créditos: Arquivo/CCS-USP e Jorge Maruta
O prédio da Faculdade de Filosofia, logo após os conflitos, e nos anos 90: recuperado

A rua Maria Antonia tinha sua própria guerra fria, caracterizada pela separação entre o que uspianos e mackenzistas faziam no dia-a-dia. “Nem freqüentar os mesmos lugares a gente freqüentava. Não assistíamos aos mesmos shows, não sentávamos nas mesmas mesas. Éramos adversários nos esportes e tudo mais”, diz Mario Prata, então estudante de Economia da USP. “Aquilo tinha tudo para terminar do jeito que terminou.”

Pedágio e tijolos – O “tudo” foi a guerra dos dias 2 e 3 de outubro, sobre a qual se detém a segunda parte do livro. Em julho, o prédio da Faculdade de Filosofia havia sido ocupado por estudantes, o que fez deteriorar ainda mais o clima de confronto entre as duas instituições de ensino. “O relacionamento entre Mackenzie e Filosofia sempre foi ruim, mas a situação andava mais belicosa. Por duas vezes, em menos de 30 dias, membros do CCC haviam disparado contra as barricadas montadas pelos universitários do outro lado da rua”, escreve Amendola.

Para o autor, o estopim do confronto foi a organização de um pedágio nas ruas Maria Antonia e Itambé, destinado a arrecadar dinheiro para a organização do 30º Congresso da UNE. Um ovo podre voou do prédio do Mackenzie e atingiu uma das estudantes que participavam do pedágio. “Imediatamente depois, vieram pedras e tijolos. A direita do Mack estava atacando. Ovos e pedras se transformaram em rojões, coquetéis molotov e cilindros de metal de 15 quilos.”

O confronto que se seguiu atingiu proporções tais que foi improvisada uma enfermaria no segundo andar do prédio da Filosofia, na qual atuavam, como verdadeiros voluntários de guerra, estudantes de Medicina e Enfermagem da Santa Casa. A capa do livro estampa uma fotografia feita pelo Jornal da Tarde na qual aparecem instruções sobre que providências tomar em caso de queimaduras comuns, cortes ou queimaduras por ácido.

Foto crédito: Osvaldo José dos Santos
O prédio em atividade hoje: a serviço da extensão universitária

Cerca de cem homens armados da Guarda Civil cercaram o Mackenzie a pedido da reitora da universidade, Esther de Figueiredo Ferraz, que mais tarde seria ministra da Educação no último governo da ditadura, o do general João Figueiredo. Apesar da presença dos guardas, nenhum tiro de arma de fogo foi disparado no dia 2. Centenas de estudantes permaneceram entrincheirados dos dois lados por toda a madrugada.

Na manhã do dia seguinte, a situação ficou ainda mais quente. Por volta das 11 horas, após o discurso inflamado de um aluno mackenzista que pregava o ataque à Filosofia e também aos “traidores” do Mack que lutavam pelo outro lado – onde aliás também circulavam espiões e infiltrados –, a guerra recomeçou. Rojões, foguetes e coquetéis molotov cruzaram novamente o espaço entre os prédios. A posição estratégica dos grupos encabeçados pelo CCC era melhor, pois ficava num ponto mais alto em relação ao reduto uspiano. Os primeiros tiros foram disparados. O secundarista José Guimarães foi atingido mortalmente. Sua camisa ensangüentada foi parar nas mãos de outro José, o Dirceu, então presidente da União Estadual dos Estudantes e um dos líderes da ocupação na Maria Antonia.

Carros ardiam em chamas na rua, e havia focos de incêndio também no prédio da Filosofia, onde um aluno se arriscou para salvar o mimeógrafo, aparelho fundamental para a impressão do material do movimento. A maior parte dos estudantes decidiu sair em passeata pelo centro da cidade para “denunciar o massacre” e a morte de Guimarães. Cerca de 600 manifestantes chegaram à Praça da Sé, onde a repressão da polícia obrigou à dispersão.

Amendola registra o desalento da família de Guimarães – a mãe, a viúva Madalena, não havia autorizado o rapaz a ir ao centro. No velório, realizado na casa da família, o filho mais velho, Ladislau, disse aos jornalistas: “Filmem e fotografem à vontade. Talvez tudo isso sirva para alguma coisa, um dia”. A família se mudou para Minas Gerais logo a seguir.

Foto crédito: Osvaldo José dos Santos

Por intervenção do governo, o enterro de José Guimarães foi realizado no início, e não no final da tarde do dia 4, como estava previsto. Os estudantes, que haviam cogitado até roubar o corpo do Cemitério do Araçá, exibi-lo em passeata e enterrá-lo novamente numa grande cerimônia pública, desistiram da idéia e resolveram fazer uma manifestação com caixões vazios, velas e uma bandeira negra, partindo às 5 horas da tarde da Praça da República.

“Os estudantes voltam às ruas para denunciar a ditadura assassina. O outro enterro foi feito pela repressão, com 600 policiais, 30 parentes e nenhum estudante. O medo da Polícia e do governo caracteriza as lutas da Maria Antonia como brigas entre estudantes, mas na verdade houve lutas dos estudantes contra a ditadura, que armou alguns mackenzistas, os do CCC, contra universitários verdadeiros”, disse Dirceu no ato, mais uma vez dissolvido pela Polícia.

Passeata e Beatles – A destruição do prédio da Filosofia, que abrigava a faculdade desde 1949, ficou evidente após o confronto. A unidade foi transferida para a Cidade Universitária, no Butantã, e o imóvel foi destinado pelo governo do estado para outros fins. Em 1985, o edifício principal foi tombado por sua importância histórica. Em 1991, numa cerimônia na Reitoria da USP, com a presença do então governador Luiz Antonio Fleury Filho e do então deputado federal José Dirceu, o prédio foi devolvido à Universidade. O espaço foi reaberto dois anos depois como Centro Universitário Maria Antonia, ligado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária.

Poucos dias depois do confronto na Maria Antonia, o congresso da UNE, realizado em Ibiúna, no sul de São Paulo, terminaria com a prisão de cerca de 800 estudantes – entre eles José Dirceu, Vladimir Palmeira e Luís Travassos, então presidente da entidade. Em dezembro de 1968, o país assistiria ao recrudescimento da repressão, com a promulgação do Ato Institucional número 5, que entre outras medidas fechou o Congresso Nacional, proibiu qualquer reunião de cunho político e suspendeu o habeas corpus para os crimes considerados políticos.


Maria Antonia – A história de uma guerra, de Gilberto Amendola. Editora Letras do Brasil, 204 páginas, R$ 33,90

Era um final, sem dúvida, duro para um ano emblemático, cujo saldo continua sendo combustível de muita discussão. Num artigo publicado recentemente no jornal O Estado de S. Paulo, o professor de Sociologia da USP José de Souza Martins avaliou: “Os acontecimentos de 1968, na rua Maria Antonia, longe de terem sido expressão de convergência de idéias e de propósitos e de um grande encontro político, foram expressão de divisão, de falta de clareza quanto ao que acontecia no Brasil. As fantasias juvenis da Maria Antonia, libertárias e belas, não davam conta nem mesmo do que estava em andamento lá dentro do prédio”. Para Martins, “ao contrário do que aconteceu na França de maio de 1968, aqui pouco sobrou das lutas da Maria Antonia”.

Menos melancólico, Mario Prata, um dos entrevistados por Gilberto Amendola em Maria Antonia – A história de uma guerra, não poderia deixar de colocar em suas recordações os traços de ironia que caracterizam sua obra: “A gente tinha o fator ideológico, mas não era adulto. Ouvir um disco dos Beatles, assaltar um banco, sair em passeata e namorar, tudo isso parecia a mesma coisa. Pra gente, tudo isso fazia parte de uma grande descoberta. Uma aventura mesmo”.

 

Paris, Praga e México sob o olhar de Fuentes

O mexicano Carlos Fuentes tinha 40 anos em 1968 e agora, aos 80, reúne no livro Em 68 reflexões sobre o que viu e pensou. Fuentes testemunhou as manifestações estudantis que tomaram Paris naquele maio e meses mais tarde visitou Praga ao lado dos também escritores Julio Cortázar, argentino, e Gabriel García Márquez, colombiano. Os três latino-americanos ouviam do colega checo Milan Kundera os relatos detalhados sobre os acontecimentos detonados a partir do 21 de agosto, quando os tanques soviéticos esmagaram a chamada “Primavera de Praga”. As conversas se davam em saunas, alguns dos poucos lugares da cidade em que as paredes não tinham ouvidos.

Nos mesmos dias de outubro em que São Paulo vivia a guerra da Maria Antonia, o governo mexicano ordenou que o exército disparasse contra milhares de estudantes que haviam viajado de diversas partes do país e aproveitavam a proximidade dos Jogos Olímpicos – com início marcado para dez dias depois – para chamar a atenção mundial contra o governo de Gustavo Díaz. Os militares cercaram a Praça das Três Culturas e dispararam indiscriminadamente contra estudantes e cidadãos que não participavam das manifestações. O número oficial de mortos nunca foi conhecido, mas estima-se em pelo menos 300. Outras milhares de pessoas foram presas. Sobre o massacre em seu país, escreveu Fuentes:


Em 68, de Carlos Fuentes, Editora Rocco, 160 páginas, R$ 25,00

“Para o presidente, não eram mortos. Eram desordeiros, subversivos, comunistas, ideólogos da destruição, inimigos da pátria encarnada na faixa presidencial. Mas a águia, na noite de Tlatelolco, fugiu da faixa presidencial, foi voando para longe, e a serpente, envergonhada, mudou de pele, e o nopal virou um verme e a água do lago pegou fogo novamente. O lago de Tlatelolco, trono de sacrifícios, do alto da pirâmide atirou-se o rei tlatilca em 1473 para consolidar o poder asteca, do alto da pirâmide foram derrubados os ídolos para consolidar o poder espanhol, pelos quatro lados Tlatelolco era sitiado pela morte, pelo tzompantli, o muro dos crânios contíguos, superpostos, unidos uns aos outros por um imenso colar fúnebre, milhares de crânios formando a defesa e a advertência do poder no México, erguido, mais uma vez, sobre a morte.”

 
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