Wob-bop-a-lulla-wob-ben-bow. Esse refrão não quer dizer nada – é mais uma onomatopéia musical-sacolejante do que qualquer outra coisa. Mas foi graças a ela e a outras pegadas no mesmo ritmo, esse tal de rock-n’-roll, que a sociedade mudou, que o tutti-frutti cultural ganhou novos ingredientes e um novo ator social deu as caras: o jovem.

Estamos falando dos anos 50, época emblemática que determinou uma série de mudanças de costumes e posturas. Afinal, foi a partir da década de 50 que o mundo começou a ser menos careta e a juventude – transviada ou não – ganhou voz, adornos e ícones. Até então, o jovem comme il faut praticamente não existia: vestia-se e comportava-se como seus pais e seus ídolos culturais eram os mesmos dos de outras gerações. A partir dos anos 50 e das décadas que viriam a seguir, esse jovem se reposicionou – ou, na verdade, se posicionou –, ganhou importância social, cultural e política e balançou os alicerces de uma sociedade que até então parecia estar indo muito bem, obrigado. Mas não estava.

É exatamente dessa metamorfose de costumes e posturas que trata o novo livro do sociólogo e professor Waldenyr Caldas, da Escola de Comunicações e Artes da USP, a ECA. A cultura da juventude – De 1950 a 1970, publicado pela Editora Musa, é uma importante análise sobre um período riquíssimo das transformações sociais e das inter-relações, sem a qual fica bem difícil compreendermos o mundo no qual vivemos hoje. Foi entre essas décadas que se deu a ruptura dos laços familiares (muitas vezes esclerosados, mas que eram mantidos à mão forte pelo Estado e pela própria estrutura da família, na qual o jovem não tinha voz ativa),

James Dean, Marlon Brando e Elvis: ícones de uma juventude que ganhou importância social, cultural e política e balançou os alicerces da sociedade

a negação do status quo até então vigente – principalmente a postura dura e belicista que havia levado o mundo a duas guerras mundiais e o estava empurrando para outra, desta vez “Fria” – e o redimensionamento cultural, que explodiria em várias facetas de flores no cabelo e batas indianas na contracultura hippie dos anos 60 e em atitudes que se fazem sentir até hoje. Tudo isso é açambarcado por Caldas em seu trabalho, de texto fluido e instigante, mas sem perder em momento algum a profundidade e o rigor analítico. E sempre com um riff de guitarra e tremeliques roqueiros a dar o tom, ao fundo.

Hip e square – Faz sentido. Como bem pontua o autor, o rock-n’-roll foi de suma importância para os jovens daquela época, tornando-se algo definitivo na cultura musical e no comportamento dos adolescentes em todo o mundo. Foi uma liberação ver Bill Halley e seus Cometas, em 1954, cantando Rock around the clock. O que era aquilo? Que ritmo era aquele que destoava completamente dos até então onipresentes standards da música americana, principalmente o jazz? E que raio de cabelinho era aquele do Bill, com um imponderável “pega-rapaz” a lhe cobrir a calva precoce? Era tudo muito diferente, era tudo muito louco – para a época. Era tudo muito novo e muito bom. E a moda pegou. E os pais daqueles jovens nunca mais tiveram sossego. O leitor atento a estas linhas deve ter notado, com certeza, que há uma certa entonação ianque nessas mudanças. Mas não é para menos. Todas as modificações das quais tratamos aqui emanaram dos Estados Unidos e dali proliferaram para o mundo, o Brasil – país periférico naqueles distantes anos 50 – incluído, preparando-se para a bossa nova e, mais tarde, para jovens guardas e tropicalismos que viriam a confirmar tudo o que estava acontecendo e, por outro lado, a ser a negação que reforça a ideologia.

“Os Estados Unidos foram os grandes vencedores da Segunda Guerra e acabaram por impor seu estilo de vida, de consumo, para uma parte do mundo que alinhava com sua ideologia”, explica Waldenyr Caldas. “Naquele momento, o mundo estava cindido entre dois blocos: o capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, capitaneado pela União Soviética, na nova configuração da Guerra Fria criada no pós-guerra. E os Estados Unidos acabaram importando seu modo de vida e sua cultura para vários países.”  Nesse contexto, alguns fatores foram preponderantes para pavimentar a longa e tortuosa estrada que aqueles jovens percorreriam com cabelos soltos – que estavam começando a crescer fora dos limites do tolerável – e um sorriso nos lábios. A primeira voz dissonante não veio de um show de rock, mas sim de cafés nova-iorquinos, onde poetas beberrões, iconoclastas e delirantes – e talentosos, frise-se – demoliam uma parte do tal “sonho americano”.


Caldas: o surgimento da juventude

Eram as vozes da chamada Geração Beat, com destaque para nomes como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinguetti, Gregory Corso e William Burroughs. Havia algo de diferente nessa história. A sociedade americana, aparente e enganosamente tão monolítica, estava emparedada. Os beats eram jovens – talvez não tão jovens quanto aqueles que se inspirariam neles mais tarde –, mas principalmente eram “novos”. Eram a novidade. Uma novidade que acabou inspirando outro rebelde – com causa –, Norman Mailer, a escrever um ensaio seminal a respeito dessas mudanças que aconteciam nos anos 50. Em The white negro, ele, pela primeira vez, estabelece as fronteiras do que era arcaico e do que parecia ser o novo, criando as expressões hip – como algo “pra-frente, novo”, que mais tarde seria adaptada e criaria a palavra “hippie” – e square, literalmente “quadrado” em inglês, para aqueles seres  tradicionais até a medula. Os beats arrebentaram a pontapés e doses industriais de uísque a porteira até então bem guardada da sacrossanta sociedade americana. A partir daí, levas e levas de jovens por todo o mundo passaram com suas novas idéias.

“A rigor, não era uma geração interessada em ideologias, muito menos em política. Contestar o estado e os valores sociais passaria a ser o grande e necessário papel daqueles jovens insatisfeitos com a falta de liberdade, mas também por uma questão de auto-afirmação como cidadãos”, escreve Caldas. “Começaria a surgir, nesse momento, uma espécie de ethos cultural da juventude. Menos subserviente e mais determinada a lutar por sua liberdade e identidade social. O grande impulso de que precisaria para isso, não há dúvida, veio mesmo da fantástica força bruta e ao mesmo tempo sensual do rock-n’-roll e da irreverência e despojamento da cultura beat.”

Ídolos vivos e mortos – Essa cultura da juventude nascida nos anos 50 contou com a criação de ícones que até hoje povoam o imaginário popular. Afinal, se aqueles jovens já tinham um “uniforme” – a indefectível calça jeans, até hoje vestimenta padrão e despojada, apesar dos preços nas nuvens de zoomps e quetais – e o rock como fundo musical, necessitavam de ídolos nos quais eles pudessem se inspirar e com os quais pudessem se identificar. Os primeiros chegaram logo, personificados na voz potente e na dança sensual e agressiva de Elvis Presley – que graças a seus requebros ganhou o apelido de “Elvis, the Pelvis” e foi censurado na TV americana – e na postura cool de James Dean, o ator de apenas três filmes e personagem de si mesmo. Dean foi não somente um dos primeiros ídolos pop e jovem, mas também seu primeiro mártir. Morreu aos 24 anos ao estourar seu Porshe Spider numa estrada na Califórnia, vivendo pouco, mas intensamente. Como cantariam (e agiriam) mais tarde outros ídolos jovens de vida breve, como Janis Joplin, Jimmi Hendrix e Jim Morrison. Ao morrer no que o clichê chama de “flor da idade”, James Dean eternizou sua figura jovial e despojada, seu rosto sem rugas e inquisidor. Deu sorte, por assim dizer. Se livrou de envelhecer e ganhar os contornos de um barril que adornaram a cintura de Marlon Brando, por exemplo, seu grande rival nos corações femininos dos anos 50 e adiante. “James Dean foi o grande ídolo jovem, mas hoje já está distante dessas novas gerações. Outros ídolos tomaram seu lugar, mas ele tem muita importância na criação de uma cultura jovem”, atesta Waldenyr Caldas.


A cultura da juventude – De 1950 a 1970, de Waldenyr Caldas, Editora Musa, 240 páginas.

Esses novos ídolos aos quais o professor Caldas se refere entraram em cena a partir dos anos 60, quando tanto o rock quanto o posicionamento jovem já estavam mais estabelecidos. De músicas mais dançantes do que contestatórias, de artistas mais performáticos do que com “conteúdo”, passa-se agora a uma outra dimensão, onde as letras dizem mais, as ações são mais incisivas e contracultura, psicodelismo e movimentos de grupo dão o tom. São tempos de Beatles e Rolling Stones, do bardo Bob Dylan, dos movimentos e passeatas jovens por lugares tão distantes quanto Rio de Janeiro e Praga, São Francisco e Paris. É o flower power, o “faça amor, não faça a guerra”. É Woodstock na cabeça e gritos contra toda e qualquer forma de repressão ou violência: contra os tanques do Pacto de Varsóvia que emboloraram a Primavera de Praga; contra a Guerra do Vietnã; contra a ditadura militar no Brasil; contra o arcaísmo gaullista na França. Mas é, antes de qualquer coisa, um posicionamento contra tudo o que estava ali, contra o establishment. O ponto de ruptura chegou ao seu grau mais extremo. Não foi à toa que jovens parisienses, em meio às barricadas do maio de 68, picharam a capital francesa com inscrições como “É proibido proibir” e “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”. Eles eram jovens e sonhavam. 

E sonhavam em grupo. O curioso nesse período estudado por Waldenyr Caldas é que as ações são conjuntas. Há um espírito de grupo, há um acento gregário que ajudou a marcar e redefinir os posicionamentos dos jovens dos anos 50 aos 70. Um “viver com” que, a partir da década de 80 – tema de um segundo volume que Caldas está preparando – passa a ser um “viver só”, e uma música como Dance with myself, de Billy Idol, é emblemática. As gerações dos 80 em diante não negaram as anteriores, mas se posicionaram de outra forma, muitas vezes sentindo saudades daquilo que não viveram ou vivenciaram. No Brasil, por exemplo, isso é marcante. “A sutil diferença passa a ser a seguinte: a luta dos jovens agora não se coloca mais em termos ideológicos”, escreve Caldas. “Não é mais contra a ditadura e o autoritarismo dos militares e sim pela redemocratização, pela justiça social e contra a corrupção no país”, afirma o sociólogo, lembrando a música Ideologia, de Cazuza e Frejat, para reafirmar sua análise.

Mas não se pode deixar de lado todas as lições, todos os encantamentos – mesmo que momentâneos – e toda a nova concepção de sociedade que a presença e a postura dos jovens acarretaram. Uma cultura jovem que hoje está na publicidade, nas mídias, no cotidiano. Impossível pensar a sociedade sem as conquistas que advieram a partir dos anos 50. E pensar que tudo começou com frases desconexas, muitas vezes ingênuas, acompanhadas de uma batida de guitarra. Wob-bop-a-lulla-wob-ben-bow. E o mundo nunca mais foi o mesmo.

 
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