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Psicóloga e socióloga, Lia deixou o Brasil em 1984, depois de sofrer ameaças de morte pelo seu envolvimento na organização do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. No dia 30 de julho, Lia Cavalcanti falou por mais de três horas para estudantes e professores no Seminário Internacional sobre Políticas Públicas na França e União Européia: As Drogas e a Saúde Pública – Prevenção de Risco e Tratamento, na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
Precariedade – Na França, cada cidadão trabalhador tem seu número de seguridade social, que é o elemento definidor de sua cidadania. “Não é o número de contribuinte, de pagador de impostos que determina a cidadania, como no Brasil: é a inscrição no sistema de saúde”, diz Lia. Nos campos em que não é o operador, como no caso das drogas, o estado contrata ONGs. É uma rede de saúde extremamente complexa, na qual a medicina pública é totalmente gratuita e o estado reembolsa de 75% a 100%, caso a pessoa decida fazer consultas privadas. “Isso gera aberrações. O sistema gera a maior dívida pública da França e um déficit incomensurável”, afirma a socióloga. Entre as razões para isso estão o envelhecimento da população – a expectativa de vida na França é de 82 anos – e a queda no número de número de trabalhadores.
É aí que está o embate entre a utopia humanista e o realismo neoliberal, define Lia Cavalcanti. Em jogo, idéias como a crescente adoção da previdência privada para complementar a saúde pública. A socióloga deu um exemplo: consultou-se com o médico que operou o jogador Ronaldo, que faz cirurgias também pela rede pública – mas cobra um “extra”. “O desconto da seguridade social é altíssimo, mas o sistema cada vez se privatiza mais”, diz Lia. Outra realidade é que muitos pequenos hospitais e serviços como laboratórios de análises clínicas têm sido fechados, substituídos pela contratação de serviços privados. Com isso, os recursos ficam cada vez mais concentrados nas cidades médias e grandes, obrigando as populações rurais a fazer grandes deslocamentos. Na Inglaterra, pacientes estão sendo levados para outros países da União Européia (UE). A fila para algumas cirurgias pode chegar a três anos.
Lia Cavalcanti, em palestra na USP: problemas no sistema de saúde europeu
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A redução dos serviços é uma tendência européia que se verifica também nas áreas da Justiça e da educação, com o fechamento de tribunais e escolas em cidades menores, diz Lia. Conseqüentemente, agrava-se o desemprego, que pode atingir diretamente a brasileira: muitas ONGs que recebem recursos públicos terão que se fundir para unificar orçamentos e reduzir gastos. De cinco ou seis diretores, apenas um ficará empregado.
Todas as questões do emprego têm repercussão na saúde, porque o seu financiamento vem do trabalho. Um exemplo é que, em 2007, dos 6.320 usuários que passaram pela EGO, 92% eram desempregados e 80% deles nunca haviam conseguido trabalho. Uma das características desse novo mundo é a instalação da “era da precariedade”. Nele, os contratos de trabalho com duração indeterminada se reduzem cada vez mais, enquanto crescem as formas temporárias e precárias. Na França, por exemplo, jovens diplomados com até 30 anos podem ser contratados sem encargos sociais para as empresas. Quando atingem essa idade, são demitidos e substituídos.
Cortes – Os programas de redução de dano têm sido outro alvo de corte de recursos em vários países. A redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis conseqüências do consumo de psicoativos sem necessariamente interrompê-lo e buscando inclusão social e cidadania para os usuários. Uma das grandes preocupações que originaram os programas era evitar a disseminação do vírus HIV pelo uso compartilhado de seringas. Em muitos países, entretanto, vários segmentos da população vêm se colocando contra iniciativas desse tipo.
De acordo com Lia, essa é uma manifestação da chamada “síndrome Nimby” – sigla em inglês para “Not in my backyard”, algo como “Não no meu quintal” –, a qual muitos políticos complementam com a “síndrome Nimey” – “Not in my electoral year”, ou “Não no meu ano eleitoral”. “Estão todos de acordo em dar atendimento, são todos politicamente corretos, mas desde que seja longe. Quando a Nimby se encontra com a Nimey, tudo é fechado”, diz Lia.
A figura do usuário menor de idade abandonado nas ruas é praticamente desconhecida na UE, de acordo com Lia. Na França, as crianças são acolhidas por entidades do estado. O sistema, porém, demonstra ineficiência, porque 70% dos jovens que mais tarde são presos por questões relacionadas às drogas têm passagem por essas instituições. O problema existe em grande escala em países do Leste Europeu. A situação é dramática na Rússia, exemplifica a socióloga, onde há populações inteiras de crianças e jovens vivendo nos túneis do Metrô.
Saudade dos tempos da heroína
Há cerca de 20 anos, Lia Cavalcanti ouviu a profecia do antropólogo americano Philippe Bourgois, que nos anos 90 estudou o tráfico de crack em Nova York: “Um dia você ainda vai sentir saudade dos bons e velhos tempos da heroína”. A pedra chegou com força à periferia francesa em 1996 e teve efeitos devastadores. Tanto que Lia reconhece: “Eu sou uma das vítimas do crack”.
Os laços sociais e os códigos de ética que se mantinham mesmo entre usuários de heroína foram varridos pela nova droga. Entre as razões de sua sedução está o fato de que o derivado da folha de coca já atua diretamente no sistema nervoso central cerca de dez segundos depois da inalação. “O crack é a droga do aqui e agora por excelência. Ele destrói as relações comunitárias e sociais e gera a disseminação da violência”, explica Lia. Quem faz uso das pedras e de outras drogas ao mesmo tempo vira “uma granada sem pino”, define. Para ela, a droga “é a substância funcional dos nossos tempos”, regidos pelo imediatismo e pelo individualismo.
Tratar de um usuário da pedra é uma jornada difícil. Como se trata de “um cidadão presentificado, um ser do momento”, é preciso, diz Lia, “reintroduzir a história onde a história não existe mais”. A imagem de jornada, de construção de um percurso de tratamento, não é gratuita, mas o passo a passo é mais complexo do que parece. Lia relatou o caso de um líder do tráfico, com mais de 30 anos de vida na rua e de uso de várias substâncias – incluindo crack –, que num dado momento começou a viver num quarto de hotel pago pela ONG. Para ele, cidadania passou a ser possuir a chave do quarto e ter um lugar para onde voltar.
Certo dia, porém, a gerente do hotel entrou no quarto para uma limpeza e encontrou um cachimbo utilizado para fumar a pedra. Não teve dúvidas: empacotou as coisas do hóspede e colocou tudo do lado de fora. O homem então disse a Lia: “É grave o que você está fazendo, me dando a ilusão de cidadania, porque isso não é possível e não existe para mim”. A socióloga prometeu retomar o percurso e, entre outras coisas, deu início a um processo contra o hotel. “O crack me deu uma lição de humildade. Deixei de me achar invulnerável”, avalia.
Uma das conquistas do trabalho foi a formação, há oito anos, de um grupo de teatro dos usuários, do qual participavam prostitutas e travestis. A trupe montou peças em teatros comerciais para o público em geral. Numa delas, adaptou A miséria do mundo, texto de Pierre Bourdieu, mesclando cenas da vida e do cotidiano dos integrantes. Em 2008, porém, não há grupo de teatro. “Nosso público sabia ler e escrever. Mas, neste ano, são todos iletrados e analfabetos”, diz Lia. É um retrato de uma soma de exclusões: o usuário de crack é também morador de rua, portador de hepatite e/ou do vírus HIV etc. etc. Os sintomas da exclusão estão também na vizinhança. Quando a turma do crack chegou e começou a deixar visíveis os sinais de sua presença, praticamente acabaram as doações de roupas, livros e alimentos que chegavam com freqüência.
O percurso, é claro, inclui também vitórias. As maiores são conquistadas quando os usuários reconstroem sua história individual e coletiva. São estimulados, por exemplo, a ir sozinhos a agências de emprego procurar trabalho ou a morar em albergues ou quartos, sem permanecer indefinidamente em clínicas. “A reinserção social é o vetor que levanta a possibilidade de abstinência, não o contrário”, diz a socióloga brasileira. “Quanto mais conseguimos normalizar os processos, mais aumentam as possibilidades de reinserção e abstinência.”
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