A polêmica acerca dos mortos e desaparecidos durante o regime militar (1964-1985) e da Lei da Anistia de 1979, que ganhou espaço na mídia nas últimas semanas, não poderia faltar num debate sobre direitos humanos. Este foi um dos temas discutidos durante o Seminário Internacional A Política de Direitos Humanos no Brasil e no Mundo: Dilemas e

Conquistas, realizado nos dias 7 e 8 de agosto, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Os debates entraram na agenda de comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e pretenderam elucidar idéias e conceitos num momento em que o governo federal tem mostrado mais disposição para debater o Plano Nacional dos Direitos Humanos, segundo a coordenadora do seminário, professora Rossana Rocha Reis, do Departamento de Ciência Política da FFLCH e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP.

“A variedade dos pontos de vista foi uma característica marcante do seminário, que, num panorama geral, mostrou os arranjos institucionais dos diferentes países latino-americanos para equacionar a questão da violação dos direitos humanos ocorrida durante os chamados regimes de exceção. Em síntese, ficou claro que no Brasil esse

tema ainda continua na pauta porque não foi resolvido. Não se conhecem os fatos em detalhe, não se sabe dos corpos”, afirma Rossana.

De acordo com a professora, os palestrantes mostraram que há várias formas positivas de resolver a questão. “Esse acerto de contas pode ser resolvido positivamente e há estudos que mostram que, onde houve o acerto com o passado, as instituições democráticas se fortaleceram e, portanto, isso é bom para as sociedades democráticas”, diz.

A professora ressalta que o ponto central da discussão sobre um “acerto de contas com o passado” não foca o revanchismo nem quer a revogação da Lei da Anistia. O foco seria a interpretação dada aos chamados “crimes conexos” previstos nessa lei – uma expressão que tem sido utilizada para incluir processos de crimes como a tortura. “Tortura não é crime político. É crime contra a humanidade e, portanto, não prescreve”, afirma Glenda Mezarobba, mestre e doutora em Ciência Política pela FFLCH – uma das participantes do seminário –, referindo-se à lei que beneficiou 4.650 pessoas e livrou torturadores de processos judiciais (leia texto de Glenda Mezarobba aqui).

O evento contou com especialistas de universidades brasileiras e estrangeiras, entre eles Flávia Piovesan, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Richard Miskilci, da Universidade Federal de São Carlos, Tâmara Kay e Harold Toro, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, entre outros.

Crédito foto: Francisco Emolo
O seminário: país precisa acertar contas com o passado, diz especialista

Reginaldo Mattar Nassar, da PUC de São Paulo, chamou atenção para as empresas de segurança que proliferam em regiões de instabilidade, como Afeganistão, Iraque e África. “Em estados falidos ou em colapso, essas empresas, que utilizam armamentos pesados e táticas de guerra, operam livremente e estão livres de qualquer jurisdição. Existe uma discussão na ONU se elas devem ser regulamentadas ou enquadradas como ilegais. O fato é que sua atuação promove uma distorção grave dos direitos humanos”, afirma.

Kathryn Sikkink, professora de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, mostrou seu estudo sobre a situação de cem países que transitaram de regimes autoritários para o democrático nas últimas décadas. O resultado do trabalho derruba a hipótese de que o julgamento dos torturadores pode levar a um golpe de Estado. Ao contrário, o “acerto de contas” fortalece a democracia e melhora a vida da população, mostrou.

A lei que perdoa – O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República – que ao lado do ministro da Justiça, Tarso Genro, tem ocupado posição de destaque nos embates na mídia em torno da punição a torturadores e da questão da Lei da Anistia –, participou da mesa sobre “Um Balanço da Política Brasileira de Direitos Humanos”.

Vannuchi reiterou a necessidade de o Brasil conhecer sua história recente. “A minha posição é de absoluta reconciliação, mas não sem verdade”, disse, lembrando o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, que promoveu a reconciliação daquele país sem omitir a história do apartheid. Vannuchi apontou os direitos humanos e a segurança pública como os principais desafios a serem enfrentados pelo país no momento.

A polêmica em torno da Lei da Anistia não foi levantada para revogar essa lei, mas para promover um debate sobre o direito à memória e à verdade histórica, disse o ministro. “Qualquer decisão sobre o tema cabe ao Judiciário”, ressaltou. Vannuchi apontou que não se sabe ao certo nem quantas pessoas foram mortas pela repressão. “O livro Direito à memória e à verdade, editado pela SEDH, aponta mais de 400. Mas não se tem conhecimento. A universidade precisa fazer essa pesquisa”, disse.

A polêmica sobre o passado recente brasileiro e a Lei de Anistia despontou no dia 31 de julho, em audiência pública promovida pelo Ministério da Justiça. Na ocasião, o ministro Tarso Genro declarou que não considerava tortura e violação de direitos humanos crimes políticos, mas crimes comuns. A declaração de Genro acirrou os ânimos entre os militares, que organizaram um seminário para discutir o assunto no Clube Militar do Rio de Janeiro, em 7 de agosto. O episódio fez com que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva solicitasse que Genro fosse a público colocar fim na polêmica. Na mesma audiência pública, Vannuchi defendeu ponto de vista semelhante ao de Genro, lembrando que o argumento de não mexer nas feridas do passado é uma falácia, justamente “porque só as feridas lavadas cicatrizam”, disse, citando a frase da presidente do Chile, Michelle Bachelet.

Balanço histórico – Durante os debates na FFLCH, o ex-ministro da Justiça, José Gregori, participou da mesma mesa em que estava Vannuchi, mas abordou pontos de vista diferentes sobre a Lei da Anistia. Ao Jornal da USP, Gregori disse que seu balanço é positivo no que diz respeito aos resultados da lei de 1979. “Esta é uma lei importantíssima porque iniciou um trabalho de recomposição da nação brasileira e porque foi responsável por uma parte importante dos avanços nas políticas de direitos humanos no país”, afirmou.

Para o ex-ministro, os que defendem o acerto com o passado buscam responsabilizar os culpados pelas mortes e pelos desaparecidos. “Eu não tenho nenhuma razão para duvidar de que os que defendem essa tese o fazem com as melhores das intenções. Eu, porém, tenho outra visão. A anistia foi extremamente benéfica para o país, um fator indispensável para a redemocratização. Tanto que nos últimos 12 anos são os anistiados as personalidades de maior força política no país”, disse referindo-se ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a Lula.

A revogação de uma lei fica um “não acabar; vira uma Argentina”, compara Gregori. “Essa lei tem limitações exatamente no ponto em que coloca uma pedra em cima do passado. Mas também é uma vitória da sociedade civil. Ela pode e deve ser aperfeiçoada, como eu fiz quando ministro e me vali dela para reconhecer responsabilidades e indenizar as famílias das vítimas. Provou historicamente ser um instrumento válido.”

Gregori expôs, em sua palestra, o desenrolar histórico do avanço dos direitos humanos desde a época do regime militar, passando pela redemocratização do país. “Passamos por um período em que não se aceitava hábeas-corpus nem liberdade de imprensa e em que não havia a possibilidade de prisão comunicada à autoridade jurídica. Uma época em que a Comissão de Justiça e Paz comandada pelo cardeal D. Evaristo Arns atuava grandemente para a localização de desaparecidos e pela justiça”, lembrou.

O ex-ministro disse que numa reunião com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, propôs uma política mais eficiente de direitos humanos. “Caminhamos para a responsabilização direta do estado pelos desaparecidos. Criamos uma comissão que estudou os pedidos e indenizou familiares num valor máximo fixado em US$ 100 mil para cada família (na época o real era igual ao dólar). Cerca de 400 pessoas foram reconhecidas como pertencentes à lista dos desaparecidos. No governo FHC houve denúncias de que ex-agentes que praticaram atos de tortura estavam ocupando cargos públicos e de fato 12 pessoas foram afastadas de seus cargos. Muito se divulgou a respeito e o livro Tortura nunca mais faz a lista de quem cometeu violência estando do lado do governo. E um livro das Forças Armadas fez a mesma lista dos que contestavam o governo. Acredito que muito se sabe e muito se divulgou. Para um bom historiador, essas informações não estão fechadas”, afirma Gregori.

 
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