Reconhecer o valor de Ecléa Bosi como professora, pesquisadora, escritora, poetisa e militante é uma tarefa difícil. “Essa dificuldade se dá por conta da multiplicidade de dons e, conforme o caso, é até mesmo difícil identificá-los, tão bem escondidos que foram pelo recato de sua portadora”, analisa carinhosamente o professor e colega de

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trabalho Paulo Salles Oliveira. Esse reconhecimento se traduz agora no título de Professora Emérita do Instituto de Psicologia da USP, que Ecléa receberá no dia 20 de outubro, às 15 horas, na Sala do Conselho Universitário.

Professor Emérito é um título outorgado apenas em ocasiões especiais a professores aposentados que se notabilizaram por suas pesquisas, por sua prática docente e pela contribuição às atividades de extensão, engrandecendo o nome da USP. É o caso de Ecléa, professora titular desde 1982, que

Ecléa Bosi: gosto por contar histórias vem do amor pela cultura popular

tem uma significativa obra no campo da psicologia social brasileira. Entre os seus livros, destacam-se Memória e sociedade – Lembranças de velhos, Cultura de massa e cultura popular – Leituras de operárias e Simone Weil e a razão dos vencidos.

Uma de suas alunas na década de 70, Emma Otta, hoje diretora do Instituto de Psicologia, fala da professora com grande admiração. “O título é um reconhecimento pelo seu trabalho e sua obra. É uma honra ter sido sua aluna e aprendido a ter um olhar sensível e sempre atento para dar vez e voz às pessoas.” Segundo ela, Ecléa é capaz de atitudes e gestos que, enquanto tais, não mudam o mundo e, no entanto, exigem uma mudança completa da relação do sujeito com o mundo. “Sua experiência de vida tem dado grande contribuição à psicologia social, através do resgate da memória e de sua interpretação das leituras de mulheres operárias, passando pelas memórias de velhos e chegando à formação de comunidades de leitores”, declara Emma.

Os trabalhos de Ecléa Bosi nascem na psicologia social e se estendem para outras áreas das ciências humanas, entrelaçando arte e ciência. Eles são reconhecidos não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na Europa, e se destacam pelo interesse na memória oral. “Entrevistei longamente, durante três anos, oito pessoas idosas, que a meu ver têm uma riqueza biográfica maior do que qualquer outra pessoa. Essas pessoas me contaram, longamente, as mudanças da cidade. Foram pessoas sensíveis às transformações urbanas”, diz a professora.

Dessa observação surgiu o clássico Memória e sociedade – Lembranças de velhos, incluído pelo Ministério da Educação entre as cem obras sobre o Brasil que devem compor as bibliotecas das escolas públicas. Segundo Paulo Oliveira, o livro supera em muito os limites da psicologia social e se coloca com destaque na literatura das humanidades. “Esse texto inaugura uma nova proposta metodológica, alinhavando teoria e empirismo a cada momento de sua reflexão, nunca dissociando um do outro.”

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Ecléa com alunos do Instituto de Psicologia (abaixo) e com o marido, o imortal da Academia Brasileira e Letras Alfredo Bosi: ênfase na memória oral

Ecléa propõe que os mais jovens sejam guardiões dos mais velhos, pois estes representam a memória viva de um passado remoto. Para a professora de Filosofia da USP Marilena Chauí, sua grande amiga, nessa obra a autora expõe uma ferida que não se cicatriza na sociedade brasileira, “os idosos pobres e solitários, abandonados como os últimos vestígios da cidade”.

Das pesquisas sobre a memória dos idosos, nasceu também a Universidade Aberta à Terceira Idade (Uati), um programa iniciado em 1993 na USP e amplamente reconhecido pela sua importância como espaço de participação social e de ressignificação da vida. Já no livro Cultura de massa e cultura popular – Leituras de operárias, Ecléa propõe uma discussão em torno das chamadas culturas de massa, popular e erudita.

Vida cotidiana – A respeito da obra da professora, Marilena Chauí destaca que Ecléa buscou propor uma visão operária do mundo segundo as próprias operárias, ou uma visão da cidade, do tempo, da vida e da história segundo a fala dos próprios idosos. “Não buscou produzir um discurso sobre elas e eles, mas deixa falar o discurso delas e deles.”

Como grande contadora de histórias, Ecléa se lembra de fatos interessantes que colheu quando fazia pesquisas para compor o livro sobre as memórias das operárias paulistas. “Preocupei-me em colher depoimentos do cotidiano das operárias. Queria saber como era a vida, a condução, o lazer, as emoções, as aspirações. Lembro-me de uma delas, que gostava muito de Castro Alves e que, com as outras colegas de trabalho, comprou a obra completa desse poeta”.

Toda a trajetória de Ecléa mostra o quanto ela tem um gosto especial por contar histórias. Para o professor José Moura Gonçalves Filho, também do Instituto de Psicologia da USP, “na voz da professora e no texto da escritora, várias vezes os fatos viram história. São incluídos num drama vivo. Mesmo quando ela adota o modo descritivo ou dissertativo de dizer e escrever fatos, uma história desponta. A explicação disso pode ser bem geral: quem não ama ouvir e contar histórias? Esse gosto por ouvir e contar histórias vem do amor que tem pela cultura popular”.

Crédito foto: Ana Cristina GonçalvesSua vida cotidiana se mistura com a luta pelos mais necessitados, pela vida, pelo ambiente, desde a década de 70. Segundo Ecléa, seu trabalho mais intenso foi como “ecologista”, como ela se autodenomina. Sempre gostou de frutas e flores e nunca deixou de plantá-las em seu quintal, mesmo tendo que mudar de casa mais de uma vez e deixar a colheita para quem entrasse na casa depois.

Sua luta mais ferrenha pela natureza vem da época do acordo Brasil-Alemanha para a construção das usinas de energia nuclear de Angra dos Reis. “Esse trabalho me consumiu muita energia e sacrifício. Organizei um movimento em defesa da vida, contra essas usinas. Cheguei a fazer um depoimento na Assembléia Legislativa, explicando os males das usinas”, lembra.

Ela não esmorece mesmo quando a batalha não dá muitos frutos. Atualmente Ecléa luta ao lado de operários vítimas do amianto, para acabar com o uso desse composto químico. “Estive na Convenção de Genebra, quando o amianto foi condenado como nocivo à saúde, mas infelizmente o Brasil não foi signatário da convenção.”

Sua infância foi muito simples. Como ela mesma aponta, foi uma “infância de andarilha”. Aluna de um colégio no bairro de Campos Elíseos, por economia caminhava até a avenida São João, cruzava o Vale do Anhangabaú, ganhava a Praça das Bandeiras, descia a rua da Consolação inteira, entrava na avenida Rebouças e ia até o final dela, para chegar em sua casa. “Conheci muito a cidade de São Paulo através das minhas andanças. Via desde casarões até casas simples e pobres. Isso formou minha ideologia de vida de lutar contra a desigualdade social. Eu era uma criança, mas tudo entrou no meu coração e ficou até hoje.” Na época de cursinho, conheceu o futuro marido, Alfredo Bosi, hoje professor da USP e um dos maiores críticos literários do Brasil, que naquela época foi seu professor. Tiveram um casal de filhos, hoje já formados.

 
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