Artigo | edição 4 | Janeiro-Abril de 2009 | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Crítica, cinema e história: planos de um diálogo na crítica de Jean-Claude Bernardet nos anos 60 |
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Dentre as muitas possibilidades que a produção crítica nos abre para estudo, análises e interpretações, uma delas é a do crítico enquanto leitor e produtor de conhecimento histórico elaborado através de um tipo diferenciado de documento, quais sejam as linguagens artísticas. No caso de Jean-Claude Bernardet, o cinema, e de uma narrativa específica da história, o filme.
Tomando o conjunto da produção do crítico no período de 1960/67, o que apreendemos, além de uma série de temas que povoavam o universo histórico do momento, é uma discussão e um aprofundamento do estudo sobre as representações das classes no cinema brasileiro e, em especial, as relações entre classe média, incluindo aí os cineastas, e o momento histórico em questão.
Embora a classe média tenha sido a classe social escolhida para seus estudos e tese, é possível percebermos que desde sua estréia como crítico o que está no centro de suas reflexões são as lutas sociais. Lutas sociais que se dão em vários níveis: no interior das classes, nas relações entre classes, nas relações entre classes e sistemas, no interior do próprio sistema e nas produções culturais. Lutas estas que podem ou não aparecer de maneira clara e explícitas nas produções culturais. Como cabia ao crítico desvendá-las, Jean-Claude Bernardet procurou, desde o início, mostrar como apareciam e foram tratadas estética e politicamente por seus autores, bem como a sua visão como crítico.
O fato de as lutas sociais se darem em épocas históricas e classes sociais de uma determinada maneira, notamos que em suas primeiras críticas, as classes analisadas foram a burguesia e o campesinato. A burguesia foi discutida frente ao capital internacional e nacional, quanto ao seu projeto, enquanto classe condutora de um processo e em relação ao povo. Já o campesinato foi buscado nos filmes sobre o cangaço, nas comédias de Mazzaroppi, culminando com o estudo de «Deus e o diabo na terra do sol». Também recorreu a filmes estrangeiros, não apenas como justificativa de reflexões, mas como forma do espectador ser chamado a pensar nos problemas e na realidade nacional. O povo, implícito em todas as análises, só foi abordado diretamente em «Barravento» e em «O pagador de promessas». A classe média foi, inicialmente, tratada como classe em «Bonitinha, mas ordinária». A maioria dos filmes analisados naquele período foi retomada posteriormente sob outros enfoques, ou redimensionados dentro da mesma temática.
A crítica e a leitura da história representada no cinema
Durante os anos de 1955/64, um dos temas centrais dos debates entre os teóricos da época era o da Revolução Brasileira como forma de libertação das amarras que os sistemas: colonial e neocolonial levaram a maioria das nações colonizadas ou periféricas a um atraso econômico e político no contexto do capitalismo mundial. As transformações provocadas no interior do capitalismo após o término da guerra, o desenvolvimento das forças produtivas, o progresso econômico e social dos povos de uma maneira geral fizeram com que se acreditasse que era possível a todos participar de tal progresso como nações autônomas e auto-sustentáveis. O Brasil não ficou imune àquele otimismo. Prova e exemplo da euforia foi a criação dos centros de estudos que tinham como finalidade investigar a realidade brasileira e elaborar projetos de desenvolvimento que viabilizassem tais desejos. Exemplo disso foi, entre outros fatos, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), órgão ligado ao Ministério de Educação, cuja responsabilidade era a de elaborar uma ideologia desenvolvimentista para o Brasil.
Sob esse cenário Jean-Claude Bernardet estabeleceu alguns diálogos com a história e com o temário representado no cinema. A situação da burguesia nacional no contexto das transformações do capitalismo e o projeto para o Brasil foram discutidas no filme «O pagador de promessas». Diante da industrialização e as mudanças provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo nas estruturas sociais e nas relações de classe, abordou os documentários «Arraial do Cabo», «Aruanda» e «Apelo». A estagnação econômica e social apareceu na crítica ao filme «Porto das Caixas». A sobreposição e a contaminação dos valores burgueses sobre a classe média foi delineada em «Bonitinha, mas ordinária». Em «O pagador de promessas» Bernardet debateu diretamente com a burguesia nacional e sua ambígua posição histórica. Sob o título «O pagador de compromissos», inicia suas análises em torno do filme de Anselmo Duarte e diálogos com a burguesia nacional.
Após situar «O pagador de promessas» no contexto do movimento cinematográfico brasileiro internacional e perante a crítica, expõe o que considerou significativo, ou seja, o fato de o filme de Anselmo Duarte não ter se prendido a uma temática estrangeira e o de ser muito favorável à nossa indústria cinematográfica, porque possibilitou tanto o reconhecimento internacional como dava ao povo a confiança no cinema brasileiro.
Afirmava ainda que o mais positivo em «O pagador de promessas» foi tornar possível a integração da cinematografia no fortalecimento da burguesia ligada aos interesses nacionais, no seu desenvolvimento financeiro e cultural. Que apesar da fragilidade era uma conquista para a grande camada da burguesia que estava lutando para defender seus interesses. Tais afirmações situariam o crítico no quadro de uma das correntes políticas do desenvolvimentismo, o da burguesia nacional e de sua luta contra o capital imperialista. Interessada no desenvolvimento do país e das classes, a burguesia nacional estaria próxima das lutas e do desenvolvimento do povo brasileiro. No entanto, toda sua análise recaiu sobre a ambigüidade, ou melhor, sobre as muitas ambigüidades da classe burguesa e do filme. De acordo com o crítico, no que se referia essencialmente à burguesia, dizia que a ambigüidade da burguesia nacional era própria de uma situação, de um momento de luta para se desenvolver econômica e culturalmente. Pois esta vivia a contradição de uma aparente atitude progressista, que no fundo não podia se radicalizar e promover um também desenvolvimento das massas, e nessa contradição e ambigüidade, firmava seu caráter de classe e, aos olhos dos poderes públicos, o filme e a burguesia nacional, ao favorecer um contato com a massa, servia como divulgadora de uma linha política. Contradição de uma classe que, para se realizar, precisava se aproximar da massa em discurso e na prática, construindo um projeto desenvolvimentista que promovesse mudanças sociais e, ao mesmo tempo, assegurasse a sua manutenção no poder. É nesse sentido que o crítico discutiu a ambigüidade, porque, embora o projeto fosse antiimperialista e propusesse o desenvolvimento da sociedade como um todo, ele não anulava seu caráter de classe e nem os seus conflitos.
A ambigüidade do filme foi discutida na oposição assumida ante a Igreja e o povo. De acordo com suas análises, aparentemente o filme se posicionava contra a Igreja. Apesar de ter sido entendido, na maioria das vezes dessa maneira, na verdade, não se colocava contra a Igreja, e pode até ser considerado como uma lição de humildade cristã.
A partir dessas colocações, Bernardet apresenta como se dá a ambigüidade no filme:
Pela voz do monsenhor anuncia o papel político da Igreja: num momento de distúrbios e de transformações, a Igreja deve se adaptar, se modificar: se permanecer rígida, corre o risco de se distanciar dos fiéis e do povo: enquanto que, se se moldar à situação, pode acumular seu poder.
Poder, instituição e classe que foram retomados pelo crítico e analisados em 1965, como um filme apólogo, bastando substituir a Igreja pelo governo em termos de retrato da linha política a que certos setores da esquerda vinham adotando na época de sua primeira análise (1961), na qual dizia que o governo e os dirigentes eram aceitos, e a esquerda solicita-lhes que integrem um pouco mais o povo na vida do País.
Quanto ao povo, a ambigüidade é mostrada através da personagem Zé do Burro.
Para Bernardet, o filme teria sido muito mais incisivo se, ao invés de encerrar-se como pretensa vitória, mostrasse o quão ilusória é essa vitória e tentasse colocar em questão a linha política que ela supõe.
Esteticamente, Bernardet, embora não tenha concordado com o academismo do filme, apresenta-o e discute-o em seus aspectos cinematográficos. Para o crítico, Anselmo Duarte havia sido bastante feliz nas soluções encontradas quanto ao cenário sóbrio da Bahia e o folclore, não insistindo em soluções complicadas. Fora feliz também na adaptação da peça de Dias Gomes, conservando a unidade de ação, tempo e lugar, dizimando o espaço. Analisa a fotografia, considerada de grande presença nos primeiros planos. Dizia que o filme, pela segurança das formas, compensava as incertezas do fundo. Era, para o crítico, um filme artesanal e bem feito. Ao analisar as personagens em sua pouca adequação ao tipo nordestino, elogiou a composição laboriosa dada ao protagonista por Leonardo Villar. No entanto e também, o personagem interpretado pelo ator, foi analisado sob o enfoque da ambigüidade. Para Bernardet, se de um lado, Zé do Burro resistiu a todos os obstáculos que a sociedade burguesa colocou diante de quem queria manter a dignidade, de quem não abdicava de suas idéias; de outro, podia servir tanto à burguesia quanto à massa.
Em «Arraial do Cabo», «Aruanda» e «Apelo», discutiu os efeitos da industrialização sobre os espaços sociais e naturais. Em «Arraial do Cabo», a fábrica é a causadora do desequilíbrio na aldeia e na vida dos pescadores. «Aruanda» mostra a vida de pessoas que viviam à margem de qualquer progresso técnico que a industrialização vinha favorecendo desde a Revolução Industrial. Em «Apelo» aponta os mecanismos do processo que geraram a devastação da natureza que, em troca do progresso desordenado e inconseqüente, queima a vegetação, empobrecendo o solo e os habitantes dos locais destruídos.
Nestes documentários, a referência à burguesia e sua política de industrialização deram-se de modo indireto, mas não menos exposto, se atentarmos para o fato de que, mesmo que o foco principal de análise tenham sido as diferentes montagens utilizadas pelos diretores para representar aspectos da realidade, a sua preocupação central era a de que, através da montagem, se mostrassem não apenas os efeitos do desenvolvimento do capitalismo sobre as regiões e agrupamentos humanos, mas também os mecanismos do sistema, e possibilitasse a percepção de uma política orientada unicamente para atender aos interesses de uma classe e do capital. Sua posição não era a de negar o desenvolvimento e nem a industrialização, uma vez que estes já estavam evidentes desde muito. O que questionava na representação cinematográfica era a simples constatação dos problemas, e propunha que se apresentassem de maneira clara os mecanismos e as engrenagens do sistema e política, para que o público pudesse chegar à consciência da realidade e sobre ela se posicionasse.
Exemplos disso podem ser apreendidos no interior de cada um dos textos. Ao criticar a montagem de «Arraial do Cabo», de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, explicava:
Em «Aruanda», discute a marginalização de regiões e comunidades diante do desenvolvimento, do progresso técnico ou social, esquecidos e à parte do mundo. Após nos situar na história narrada no documentário de Linduarte Noronha, filmado em Serra do Talhado, na Paraíba, e que conta a história de escravos brasileiros que, em meados do século passado, fugiram, pararam perto do primeiro lago que encontraram.
Sobre o documentário «Apelo», o crítico afirma que, juntamente com «Aruanda», Apelo foi o documentário que melhor representou a problemática do desenvolvimento capitalista. Apesar de o documentário ter sido feito a partir de uma tese envolvendo muitas pesquisas científicas, e estas afirmavam que a pobreza do solo advinha dos métodos primitivos empregados e não da falta de água, o que Trigueirinho Neto mostrou não foi a sua ilustração, mas os mecanismos utilizados. A tese defendia um reflorestamento cientificamente orientado, o autor mostrou o que havia de urgente e não apenas os métodos antiquados dos indígenas e suas queimadas, mas também os tratores que derrubavam as árvores. Que o autor era um homem ligado ao Brasil não havia dúvidas, afirmava o crítico e “a prova estava na violência e também amargor do seu filme. Mas, essa ligação não o levou a mostrar os sofrimentos da terra brasileira. Do Brasil não se vê nada” (BERNARDET, 1978: 58). Segundo Bernardet, Trigueirinho desnudou “os mecanismos destes sofrimentos, armado com tais abstrações, tendo a possibilidade de encontrar os mecanismos” (BERNARDET, 1978: 58). Segundo o crítico, nesse contexto de devastação e ausências, o homem nordestino aparece entregue à mesma sorte da vegetação. O documentário fala do Brasil, mas do Brasil nada nos mostra, o que «Apelo» faz é mostrar os mecanismos dos sofrimentos. Ao falar do Brasil sem mostrá-lo, fala de todos os lugares do mundo imersos nas engrenagens do capitalismo.
O surgimento, nos primeiros anos da década de 1960, de várias frentes de debates sobre temas como: subdesenvolvimento, desenvolvimento acelerado, processos de tomada de consciência, planejamento e liberdade, estagnação econômica e dependência se avolumaram em todos os níveis e produções teórico-culturais. A superação de um Brasil arcaico e a resolução das disparidades regionais, tanto no campo econômico como no cultural, era colocado e entendido como parte de um dilema para os intelectuais que deviam estar atentos às mudanças e à situação dos chamados países periféricos.
O cinema novo não se furtou a nenhum desses debates e o tema da estagnação econômica das regiões, das cidades e das pessoas provocadas pelo desenvolvimento desigual do sistema foi apresentado por Paulo César Saraceni em seu polêmico filme «Porto das Caixas». Do silêncio estratégico ocorrido desde o lançamento e distribuição, aos embates entre críticos, políticos, argumentista e teórico em geral, «Porto das Caixas» retrata a situação de uma cidade de interior que ficou à margem de tudo, esquecida pelo progresso e pela civilização.
Como parte dessa polêmica, «Porto das Caixas» foi tomado por Bernardet, como uma continuação temática iniciada em «Arraial do Cabo»,
Essa estagnação, completa Bernardet, está presente na ação e nos personagens. Tal atmosfera retrata a vida de uma cidade do interior do Brasil que ficou à margem de tudo, esquecida pelo progresso e pela civilização, e que nem força encontra para reivindicar uma vida mais digna. Essa ausência de força a que se refere foi exemplificada pelo crítico na cena do comício:
Discussão criada, entre outras de ordem estética, pelo fato de Saraceni ter apresentado, além da estagnação econômica, a decomposição e o esmorecimento das lutas sociais exatamente num momento em que se delineava uma revolução social e uma redefinição de estratégias das esquerdas: 1963/64 – data de lançamento do filme.
Os textos apresentados não foram os únicos analisados pelo crítico, bem como os filmes não foram os únicos que trataram de temas ligados à história da época em questão. O que acompanhamos foi apenas uma pequena parte dos diálogos que o crítico travou diretamente com a história e com a cinematografia brasileira. Diálogos que Jean-Claude Bernardet estabeleceu com histórias narradas pelo cinema e que nos possibilita compreender o duplo exercício que o cinema e a crítica nos proporcionam: o conhecimento de alguns dos temários de uma época representados pelo cinema e as análises estéticas de um filme.
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BERNARDET, Jean-Claude. «Dois Documentários». “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo, 12/8/61. In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «Dois Documentários». “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo, 12/8/61. In «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «O Pagador de Compromissos». “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo, 8/9/62. In «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «O Pagador de Compromissos». “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo, 8/9/62. In «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «O Pagador de Compromissos». “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo, 8/9/62. In «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «Porto das Caixas I». Última Hora, 21/2/64. In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «Porto das Caixas II». Última Hora, 22/2/64. In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Livraria Editora Polis LTDA, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «Trajetória Crítica». São Paulo: Polis, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. «O Pagador de Compromissos». In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Polis, 1978, pp. 59-63.
BERNARDET, Jean-Claude. «Dois documentários». In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Polis, 1978, pp. 51-55.
BERNARDET, Jean-Claude. «Apelo, um documentário». In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Polis, 1978, pp. 56-59.
BERNARDET, Jean-Claude. «Porto das Caixas I e II». In: «Trajetória Crítica». São Paulo: Polis: 1978, pp. 82-84.
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