Resenha | edição 8 | Julho-Dezembro de 2010
Ambiente, mídia e técnica: um passeio pelas paisagens pós-urbanas de Massimo Di Felice
 
Mariana Marchesi |
 

_____DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume, 2009.


Longe de ser um tratado sobre arquitetura, embora também invoque esta temática em diversos momentos do texto, o livro Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar”, de Massimo Di Felice, se propõe a fazer uma reflexão sobre o fim – ou a superação – da experiência urbana como a conhecemos, e a falar sobre as formas comunicativas do habitar, apontando para um caminho multidisciplinar que mescla filosofia, sociologia, cibernética, ciências exatas e comunicação, colocando a mídia num lugar privilegiado neste diálogo.

A capa traz uma pintura do século XVIII, do italiano Bernardo Belloto, que retrata as ruínas de uma igreja no coração de uma típica cidade européia. A imagem de desconstrução evidenciada na capa dá o tom da obra. A pesquisa do professor Di Felice se insere no contexto das grandes transformações da cultura contemporânea, localizadas por autores diversos num período histórico que, independentemente da terminologia – pós-modernidade, supermodernidade ou tardo-modernidade – marca a superação daquilo que se convencionou chamar modernidade.


Transformam-se também os paradigmas do conhecimento que procuram compreender e traduzir essas mutações, e o autor dedica-se a apontar as fragilidades dos velhos modelos e os novos caminhos a seguir. Di Felice propõe a ruptura de antigas dicotomias herdadas do pensamento moderno, que muitas vezes obscurecem e dificultam a apreensão dos novos contextos que se desenham diante de nossos olhos. Partindo do pressuposto da não-oposição entre as categorias de real e virtual, o autor postula a continuidade entre os territórios físicos e as arquiteturas informativas, fazendo uma associação à primeira vista inusitada entre as tecnologias comunicativas e a experiência do habitar.

Conceitos complexos como “mídia”, “ambiente” e “técnica” são discutidos, traçando linhas de continuidade com as idéias de Marshall McLuhan, Walter Benjamin, Gregory Bateson, Gianni Vattimo, Bruno Latour, e muitos outros que com eles se alinham. O conceito de habitar, sobre o qual se deposita o foco principal do texto, tem sua origem na obra do filósofo alemão Martin Heidegger, remontando à sua ontologia de um ser relacional, histórico e não-metafísico. Di Felice chama Heidegger e o seu “habitar”, nativos da metade do século XX, a enfrentarem as investigações de nossa época, demonstrando o quanto o autor e o conceito, assim como os outros que traz à baila, possuem um caráter visionário.

Não é à toa que a questão do habitar torna-se crucial para as pesquisas de Di Felice. Pelo que o livro nos conta da trajetória do autor, seja pelo prefácio do italiano Alberto Abruzzese, sociólogo da comunicação, seja pelo que ele mesmo nos revela sobre si na introdução, esta é uma questão que se faz marcante na sua própria vida e história pessoal. Afeito às experiências de novas terras e mundos, Di Felice escolheu São Paulo como o lugar para viver, pesquisar e lecionar. Mas o estabelecimento, até então, definitivo nas terras dessa metrópole, já pouco firmes porque eletrificadas e flutuantes, não o impedem de habitar sempre novos territórios e meta-territórios, tecendo redes que cada vez mais os sobrepõem uns sobre os outros. Di Felice é um ser em trânsito, filho de uma geração que nasceu e viveu em época de transformações intensas. A essa geração, “órfã de céu e terra” (1), ele dedica esse livro, que se enquadra em sua carreira como o ápice e a síntese de muitos anos de pesquisas que desenvolveu até então.

Para finalizar essa apresentação mínima do autor, temos que acrescentar que suas pesquisas em mídia e comunicação convergem para o estudo do digital e para todas as transformações que se lhe atribuem no campo da vida e do conhecimento. Partindo do pressuposto básico de uma concepção não-instrumental da técnica, expressa também no quadro teórico a que faz referência, Di Felice costuma dizer a seus alunos que pesquisar o digital é um dos maiores desafios epistemológicos de nossa época.

 

O habitar como prática comunicativa

“Paisagens pós-urbanas” tem a intenção expressa de investigar a relação entre sujeito, território e mídia, defendendo a tese de que esta é uma relação comunicativa. O livro encontra-se, assim, dividido em quatro partes. Na primeira, intitulada propriamente “O Habitar como prática comunicativa”, Di Felice procura investigar a gênese do conceito de ambiente na tradição do pensamento ocidental, explicitando, a seguir, de que maneira a experiência habitativa estaria intimamente ligada às alterações técnicas da percepção sensorial e, portanto, às tecnologias midiáticas, que, no decorrer das revoluções tecnológicas e comunicativas, contribuíram para colocar em cheque as próprias concepções ocidentais sobre a relação entre o sujeito e o ambiente.

Nas partes dois, três e quatro, o autor procurará desenvolver o que ele chama de uma interpretação teórica midiática e comparativa do habitar, propondo formas ou tipologias do habitar comunicativo, das quais falaremos mais adiante.

Buscaremos fazer a seguir uma breve passagem por cada um desses percursos.

De acordo com Massimo Di Felice, o pensamento filosófico ocidental, estendendo-se posteriormente às bases do pensamento científico, edificou uma concepção antropocêntrica e antropopoiética de território, idéia que se encontra no âmago do moderno habitar urbano. Tomemos como ponto de partida as etimologias das palavras “ambiente” e “urbano”: a primeira vem do latim “ambire”, andar no entorno, emprestando ao ambiente a ideia de algo que está ao redor, circundante porém externo. A palavra “urbano”, por sua vez, vem do latim “urbs”, originada da contração entre vocábulos que se referiam à demarcação dos confins da cidade e do perímetro urbano. “Desde então a experiência urbana é organizada por muros, por portas e, a cidadania, em ‘entre muros’ e no seu contrário, o estrangeiro, a ameaça, o inimigo” (DI FELICE, 2009: 53-54) O ambiente é exterior ao sujeito e, nessa concepção, o habitar agarra-se fortemente à localidade.

Partindo do antropocentrismo e logocentrismo de Sócrates e Platão, e passando por Descartes, para quem a matéria e o corpo não são nada mais que substâncias que têm extensão, essa dicotomia entre sujeito e ambiente, homem e natureza, ordem e caos, paisagem natural e paisagem urbana, perpetuou-se ao longo do tempo manifestando-se mais recentemente na sociologia urbana da Escola de Chicago e no debate antropológico sobre cultura e natureza.

Segundo o autor, a visão antropocêntrica que considera a natureza ora uma ameaça, ora um objeto passível de manipulação e dominação, “estrutura modificável, substância moldável, disponível à ação da mão e ao fazer do sujeito racional” (Ibidem, 2009: 31), está na base da iminente catástrofe ambiental diante da qual nos encontramos hoje.

Do outro lado, Di Felice identifica vozes dissonantes deste pensamento. No mundo grego, os filósofos naturalistas pré-socráticos entendiam a natureza “não mais como ‘coisa’, nem como forma de vida inferior, mas como algo de vivo, como uma entidade complexa agente e comunicativa” (Ibidem, 2009: 38). Privilegiavam uma forma de observação baseada na escuta e na interpretação da natureza como forma de entender e entender-se no mundo, reconhecendo ao ambiente uma dignidade e linguagem próprias. Essa concepção encontra ecos nas tendências animistas das místicas medievais, e prepara o terreno para uma concepção não-antropocêntrica e ecossistêmica da relação entre sujeito e ambiente, baseada não na dominação, mas na simbiose.

Será a cibernética de Gregory Bateson a postular categoricamente essa relação como uma relação sistêmica. Rompendo mesmo com a noção de controle da primeira cibernética que traçaria uma linha de fronteira no que ele próprio chama de sistema homem-ambiente, Bateson reconhece que a informação não é uma exclusividade humana, mas faz parte dos dinamismos do ambiente como um todo, cujos elementos se relacionam, como diria Di Felice, de forma comunicativa. Além disso, Bateson reintroduz o observador no sistema interagente, questionando a própria noção de objetividade.

Tomando como pressuposto essa concepção ecossistêmica e simbiótica, Di Felice passa à análise do componente midiático na relação que molda a experiência habitativa. Referenciando-se às idéias de W. Benjamin, M. McLuhan e M. Heidegger, o papel que ele atribui à mídia e à técnica talvez seja uma das contribuições mais interessantes do livro. Segundo o autor, a relação entre o ver, o perceber e o habitar é antiga, e a técnica provoca alterações na percepção sensorial e, portanto, na cognição e na cultura. Para investigar as “relações simbióticas entre conhecimento e percepção técnica, entre o habitar e o sentir” (Ibidem, 2009: 46), Di Felice faz uma nova retrospectiva, desta vez para demonstrar a intrínseca (embora por vezes ignorada) relação entre tecnologia e percepção, demonstrando as transformações na cultura e na experiência sensível a partir da introdução de novas técnicas que modificam a percepção e a representação do espaço.

A introdução da geometria e da cartografia, por exemplo, possibilitaram a construção de imagens em perspectiva e de mapas precisos que inventaram não só o espaço como também a subjetividade e o pensamento modernos. Uma compreensão mais matemática e objetiva do território gerou uma nova relação espacial com o globo, além de constituir terreno fértil para o nascimento do racionalismo. Da mesma maneira, o telescópio de Galileu entreviu um novo universo, modificando a própria posição do nosso mundo em relação a ele. “O olho mecânico de Galileu e a nova tecnologia do ver permitirão a passagem do universo monossêmico do texto bíblico para aquele tecno-matemático do método científico” (Ibidem, 2009: 48). Nessa mesma linha, fala-se também das profundas transformações sensoriais, precocemente detectadas por Benjamin, ocasionadas pela câmera fotográfica e pelo cinema. O elemento técnico transforma a relação do sistema sujeito-mídia-território, modificando inevitavelmente a experiência do habitar.

Esta retrospectiva focada principalmente nas “tecnologias do ver” pode induzir o pensamento de que a dimensão técnica apenas recentemente foi introduzida no habitar. Trata-se de uma falsa impressão, como o próprio prosseguimento do livro demonstrará; a técnica sempre esteve presente na relação entre o sujeito e o ambiente, desde a oralidade e a escrita, que são, assim como o cinema ou as redes digitais, tecnologias comunicativas e, portanto, geradoras de diferentes experiências habitativas.

É nesse sentido que Di Felice organizará a tipologia das formas comunicativas do habitar. Tendo como linha-guia a história das revoluções comunicativas – a escrita, a gutemberguiana, a elétrica e eletrônica e finalmente a digital, ele procura “(...) individuar algumas etapas importantes das formas habitativas, ou seja, das formas tecnológico-comunicativas que regularam e hibridizaram, de formas diversas, ao seu modo, a relação comunicativa entre sujeito e ambiente” (Ibidem, 2009: 65).

Essas formas comunicativas do habitar – que o autor nos alerta mais de uma vez para não as entendermos numa perspectiva evolutiva – são três, brevemente explicadas a seguir: o habitar empático, o habitar exotópico e o habitar atópico.

Ao habitar empático corresponde a predominância da tecnologia comunicativa da escrita. Nesse contexto, “(...) O ambiente, por meio de sua representação escrita, deixou de ser experiência para se tornar texto – realidade conceitual e imaginada” (Ibidem, 2009: 28). O termo “empático” é de inspiração bahktiniana e caracteriza a projeção do eu sobre as coisas, como do homem sobre o ambiente. As páginas dedicadas ao habitar empático são recheadas de imagens e exemplos de cidades edificadas com base em textos (como os mosteiros, cuja edificação e funcionamento eram regulados pelos ditames da Ordem), bem como das cidades ideais descritas por Platão, Santo Agostinho e Tommaso Campanella, além de tratados de arquitetura. A cidade e o ambiente, aqui, apresentam-se como projeto, seja de Deus, seja do sujeito racional.

O habitar exotópico apresenta uma forma habitativa engendrada pela eletricidade e pelas mídias de massa, correspondendo de modo geral à experiência das metrópoles modernas. Eletrificado e animado pelas imagens do cinema, o território de torna múltiplo, e mais ainda, autônomo. No entanto, permanece ainda separado do sujeito, que continua a se relacionar com ele de maneira opositiva e externa. Numa tentativa de fazer o leitor vivenciar a exotopia eletrônica por meio das palavras do texto, o autor assume um estilo mais ensaístico, e fragmenta o texto com imagens e relatos pessoais, procurando dar vida aos trânsitos eletrônicos e às paisagens flutuantes de que fala.

Por sua vez, o habitar atópico se relaciona com a tecnologia das redes digitais e os mundos virtuais com ela construídos. Este tipo de habitar somente é possível por meio de interações com interfaces, constituindo ecossistemas informativos e “(...) ambientes atravessáveis somente mediante formas de interações técnicas” (Ibidem, 2009: 20). A atopia como prática comunicativa do habitar pressupõe a superação das fronteiras entre sujeito e território, passando de uma relação opositiva para uma relação em rede. O termo atópico poderia levar à compreensão equivocada de negação do lugar, ou de não-lugar, como coloca Marc Augè. Trata-se, no entanto, da superação do sentido único do lugar, que passa a ter, segundo Di Felice, um genius loci tecnológico e múltiplo, fruto da continuidade e inseparabilidade entre os sujeitos, as mídias e os circuitos informativos, e os territórios.

Não pretendemos fazer aqui uma descrição exaustiva destas tipologias, cuja riqueza de forma e conteúdo só é acessível por meio da leitura integral do texto. Usaremos as linhas que nos restam para ressaltar a importância da obra para a compreensão dos fenômenos culturais contemporâneos.

Além de explicitar e questionar as bases sobre as quais se desenvolveram boa parte dos paradigmas em Ciências Humanas, paradigmas estes que, segundo o autor, não são mais adequados para compreender os nossos dias, Massimo Di Felice representa um ponto de conexão entre o pensamento de diversos autores de ontem e de hoje, fundamentais para o estudo da comunicação, mas em geral ainda pouco conhecidos e explorados no Brasil. Sua capacidade de articular teorias oriundas de diferentes áreas do conhecimento faz também com que sua obra se torne uma referência não só para as Humanidades, mas também para as correntes do ambientalismo, movimento recente que surgiu em reação aos rumos que o pensamento ocidental tem dado ao planeta, mas que muitas vezes continua agindo dentro dos mesmos pressupostos. Uma mudança de base filosófica se faz necessária, e Di Felice aponta os caminhos para que isso aconteça.

Para finalizar, resta-nos apenas uma questão não respondida acerca do livro: se Di Felice deseja questionar profundamente as bases do racionalismo ocidental, por que insiste durante todo o texto em manter uma das terminologias que mais fielmente servem a esse pensamento – o sujeito? A resposta, ou pelo menos uma pista, talvez possa vir de Michel Serres, filósofo francês relacionado na bibliografia de Paisagens pós-urbanas. Serres considera que o conhecimento tem dois focos: um, brilhante, da racionalidade científica, e o outro, obscuro, da cultura, enraizada no problema do mal, do trágico e do sofrimento. O sujeito, para ele, reside não no primeiro foco, mas no segundo: o indivíduo está sobre a terra e sofre; é sujeito porque está sujeito a este sofrimento. Inverte-se assim o conceito moderno e cartesiano de sujeito – é sujeito não só aquele que pensa, mas aquele que sente.

Para além da questão do sofrimento, é um sentir que se coloca na raiz da experiência do habitar. Um sentir, não nos esqueçamos, sempre tecnológico e transorgânico, porque cunhado em simbiose com a técnica. Parece-nos que este sujeito que sente traz em seu âmago a síntese de uma relação inevitavelmente ecossistêmica e simbiótica com o ambiente.

 
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(1) Retirado da própria dedicatória do livro.

(2) SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

 
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