Navalha na Carne, peça de Plínio Marcos que completou 50 anos ano passado, é tida como um clássico do “teatro marginal”, a cena que fazia ver a “escória da sociedade”. Figuram nela três personagens, Neusa Sueli, Vado e Veludo, uma prostituta, um cafetão e um camareiro gay – que fazem parte de um “subproletariado”, nas palavras de Décio de Almeida Prado: “uma escória que não alcançara sequer os degraus mais ínfimos da hierarquia capitalista”.
Embora considerada “datada” sob certos aspectos, Navalha na Carne é aqui friccionada contra a própria pele negra – a pesquisa, a realidade e experiências de uma atriz, dois atores e um diretor pretos, cujas trajetórias vêm se construindo através de uma proposta estética que articula a presença preta na cena e na sociedade de hoje: José Fernando Peixoto de Azevedo, dramaturgo, diretor teatral e professor da EAD/USP, fundador do Teatro de Narradores (1997-2017) e colaborador do grupo Os Crespos, além de dramaturgo no recente Isto é um Negro?; Lucelia Sergio, da Cia Os Crespos (SP); Raphael Garcia, do Coletivo Negro (SP); e Rodrigo dos Santos, da Cia dos Comuns (RJ), grupos com extensa pesquisa teatral sobre o tema.
DO CORPO NEGRO. A problemática do corpo preto e seus históricos processos de marginalização social são o mote central da montagem, que pretende lançar luzes sobre questões relativas à hierarquização social hoje vigente. As questões atravessam o texto de Plínio Marcos e reverberam na própria produção teatral hegemônica de nosso país. Quem são os “marginais” de Plínio Marcos hoje? Onde se encontram? Como lidam com seus desejos e necessidades? Qual sua expectativa de vida? Eles se reconhecem como parte dessa “escória”? O que esperam da sociedade – se é que ainda esperam alguma coisa?
Do corpo-mercadoria – a redução perversa da imagem do corpo preto produzida pela história da escravidão – à mercadoria-corpo que é a prostituta Neusa Sueli, estancando sua fome com um sanduíche de mortadela; da sexualidade excessiva da “bicha” Veludo à sexualização do corpo negro, corpo-objeto ao qual não se concede o direito ao desejo; e mesmo a fantasmagoria viril chamada Vado, cuja expressão é imitação de uma violência cuja gramática é uma gestualidade macaqueada da violência, naturalizada na figura nacional do macho.
DO EXCESSO E DA EXCEÇÃO. Excessos de vida e de morte, de potência e impotência, de grandeza e insignificância. Vestígios de uma história marcada no corpo preto, feita de gritos e de silêncios. Imaginar um futuro implica, para os criadores, lançar o olhar às cicatrizes e se permitir a escuta de uma potência inaudita – a voz de um anseio oprimido que jamais desistiu da vida.
Nesta Navalha na Carne Negra, as figuras em jogo não são apenas vítimas ou imagens de uma destituição absoluta. São sobretudo figuras em luta: em cena como na vida, a luta revela o quão portadoras de vida ainda são. Na resiliência de corpos adoecidos de sua negação, revela-se uma intuição silenciosa de que os atravessamentos produzem diferença, permitem que saibam ainda o que são; como qualquer corpo doente, são corpos que imaginam cura.
DA CENA. A cena se constitui como um dispositivo-estúdio em que imagens são captadas e transmitidas ao vivo. A câmera, dispositivo de olhar e enquadramento presente o tempo todo em cena, adere o tempo todo a Neusa Sueli e força uma construção. O espectador vê o jogo em cena e compara com o que assiste na tela. Os monitores revelam a dimensão do corte, emoldurando o jogo e sua teatralidade. É preciso atravessar a saturação da imagem, do corte, do enquadramento, para conferir a suposta totalidade da cena, já saturada de presenças, transitando entre o jogo ficcional do texto e o jogo estrutural da captação de imagem. A luta entre as personagens é duplicada pela tensão gerada pelo trabalho de captura da imagem.
O olhar dessa puta – essa Neusa Sueli preta, mulher, corpo-mercadoria – contempla (porque precisa contemplar) a imagem de um futuro. Ela se mantém atenta, examinando a miséria, o desespero e a desesperança, em busca de uma pista – o mais sutil laivo de vida. Seu olhar há de nos indicar a direção do grande salto.
Direção Geral e Dispositivo Cênico: José Fernando Peixoto de Azevedo Atores: Lucelia Sergio, Raphael Garcia, Rodrigo dos Santos Vídeo: Isabel Praxedes, Flávio Moraes Iluminação: Denilson Marques Direção de Arte: Criação Coletiva Assessoria para Trabalho Corporal: Tarina Quelho Programação Visual: Rodrigo Kenan Produção: corpo rastreado Fotos: Isabel Praxedes
NAVALHA NA CARNE NEGRA | 19 de julho a 12 de agosto | quinta a sábado, 21h; domingos, 19h
16 anos | 50 min. | R$ 20,00 inteira e R$ 10,00 meia | a bilheteria abre 2h antes do início da sessão
Teatro da Universidade de São Paulo | Centro Universitário Maria Antonia – Sala Multiúso
R. Maria Antônia, 294 | V. Buarque | Próximo aos metrôs República e Higienópolis-Mackenzie
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