Brasil e o erro do “bom senso” de John F. Kennedy

Políticas externas, assim como pactos sociais, funcionam em bases que compartilham regras escritas e “não escritas”. Codifica-se o que se imagina que é necessário e assume-se que o que é base compartilhada de valores se pode deixar à naturalidade do convívio, às luzes do que supostamente deveria ser óbvio. Assim foi também na política famosa do martirizado presidente estadunidense, John F. Kennedy, a Alliance for Progress.
Desde a leitura da carta do democrata, em Punta del Este, seus entusiastas assumiam que seu sucesso caminharia junto a valores que esta carta nunca explicitamente ditou, mas que faziam parte do discurso, ainda que seminal, de Kennedy. Traga progresso aos latino-americanos, com as aids do Norte, e naturalmente estes países vão se desenvolver em democracias saudáveis, com mais acesso econômico a suas classes subalternizadas, assim “apagando” o discurso vermelho do continente.
A base de tal ideal utiliza-se da assumida superioridade moral do padrão civilizatório ocidental, oferecido aos países do Sul, em comparação com a alternativa de Castro e de Moscou. No concerto internacional, a ideia de padrões civilizatórios vem da Escola Inglesa de Relações Internacionais, calcada no seu eurocentrismo e no conceito de que estes países, “berços da civilização” contemporânea, poderiam ditar o que definia uma nação como “civilizada” ou não.
Quando o mundo se desenhou inteiro em linhas de nação, aos moldes de Westfália, as ideias de fatores civilizatórios foram supostamente superadas. Com o fim da Guerra Fria, a segunda geração da Escola Inglesa recuperou tais “estândares”, adaptados à nova realidade do mundo. A determinação de que países são civilizados (ou em que “nível” de civilização estão) viria através de três fatores: estarem abertos ao livre mercado, serem democráticos e respeitarem os direitos humanos.
Oficialmente estes valores só foram determinados depois que a URSS acabou e a nova ordem teria se iniciado, supostamente deixando o mundo da Guerra Fria para trás. Porém, desde a bem intencionada política de Kennedy, se vê o princípio do que viriam a se tornar estes novos padrões. Contudo, com o resumo perfeito já realizado por Jerome Levinson e Juan de Onís, a política do democrata foi um “erro”, e entre os países que “comprovaram” este erro está o Brasil, especificamente o seu Regime Militar.
Kennedy determinou que para que sua Alliance oferecesse ajudas aos países, haveria de se respeitar o livre mercado. Desta forma, o governo de Goulart, que ainda contava com múltiplas figuras do PTB (e o próprio Jango) enaltecendo os valores de Kennedy e usando do martirizado democrata como símbolo, viu o “substituto” Lyndon Johnson fechar a porta de muitas propostas de financiamento.
Onde entram aqui o respeito aos direitos humanos e à democracia? Nos valores “não ditos” da Alliance, que se podem observar nos aflitos jornalistas estadunidenses que apoiavam os ideais e fatalmente não viam estes valores serem respeitados. Na prática, Johnson só fez valer o que estava “escrito”, não se preocupou tanto com o “bom senso” de Kennedy. Goulart não desrespeitava os direitos humanos e estava democraticamente ocupando sua posição, mesmo que as paranoias da Guerra Fria assombrassem seu governo, pelo medo do comunismo causado por figuras como Leonel Brizola e Darcy Ribeiro.
Jango não estava disposto a “liberalizar” toda a economia brasileira (em um contexto em que nem que quisera isso fora possível). Mantinha a lembrança da tragédia que era a avaliação popular de JK, em grande parte devido aos problemas que o “livre mercado” trouxera à organização econômica de um Estado de difícil manejo, que era o Brasil dos anos 50.
Por isso, e por outros fatores, Jango “tinha que sair”. É verdade que a “intervenção militar” foi cogitada como possível e passível de apoio tanto por Kennedy, antes de sua morte, como por Johnson. É verdade também que este modelo era o menos desejado pelos estadunidenses, que queriam algo muito mais “constitucional” e civil, dentro dos valores ocidentais. Contudo, a história impôs a eles que a única saída que se apareceu viável foi o Golpe de 64.
Assim o foi, com o golpe saia o representante do “velho mundo” da terceira via latino-americana e entrava um “moderado” general que iria “arrumar a casa” para as eleições de 65. Ao final, estas eleições não ocorreram, Castello Branco deixou de ser “herói revolucionário” para se tornar “criador de partido oficial” nas páginas do New York Times. Costa e Silva terminou de rasgar o pacto do morto democrata. Juan de Onís, na época correspondente do NYT, carimbou o Regime brasileiro como “Military Dictatorship” quando o AI-5 foi decretado.
Os mais liberais (no sentido estadunidense da palavra) do Partido Democrata tiveram que assistir em horror os direitos humanos e a democracia, valores “não escritos” do plano que tanto gostavam, serem pisoteados pelo militarismo brasileiro, que serviu de exemplo para mais cruéis regimes que nasceram pelo continente depois, especialmente na Argentina e no Chile, os mais notoriamente violentos.
Onís não teve saída a anunciar que a Alliance se perdeu. Tais valores só conseguiram ser recuperados na política externa estadunidense quando o “distinto” Jimmy Carter entrou na Casa Branca, para sair derrotado depois de um só mandato pelo ícone conservador Ronald Reagan. Com o fim da Guerra Fria, estes valores civilizatórios finalmente conseguiram se assentar, hoje defendidos inclusive pela enorme maioria de partidos de esquerda da América Latina e da Europa. Os direitos humanos e a democracia se tornaram tardiamente valores que todos decidiram colocar como “base” da política interna e externa dos países. No meio do caminho, o único valor escrito foi justamente aquele que teve de ser abandonado por muitos países, quando as esquerdas ascenderam ao poder: o liberalismo econômico.
Os jornalistas americanos nunca aceitaram que o erro estava na ideia de Kennedy, dizendo que o problema eram os militares latino-americanos. Assim pode ter sido, talvez então a falta de compreensão vinha do fato de que o militarismo da época era igualmente antiliberal, como era anticomunista.

  • Daniel Azevedo Muñoz é jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri (Espanha)