Entre o trabalho de historiadores e jornalistas há semelhanças, mas possivelmente mais diferenças. Analisar as fontes de informação, entrevistar pessoas que sabem mais a fundo da questão, trabalhar dados para chegar ao mais fiel retrato dos fatos, estas são as semelhanças. Contudo, a perspectiva do tempo, o ambiente e o contexto de produção do relato, a vivência e convivência com as consequências da publicação de tais informações, são somente alguns dos pontos que “dificultam” o trabalho do jornalista, em relação àquele que estuda o mesmo fato anos depois, como historiador.
Dizer isso não isenta o jornalista de erro e nem diminui a necessidade do trabalho do historiador, porém a falta de consciência sobre tais diferenças às vezes pode promover erros de interpretação ao justamente se tentar entender os jornalistas do passado. Para não deixar de falar de História, vamos a um exemplo “de ontem”, que posteriormente o leitor decide como interpretá-lo para os estudos “de hoje”:
Dos jornais brasileiros, já se estudou e relatou muito bem como estes lidaram com o Regime Militar, dentre de suas possibilidades. Pode-se escolher entre os bons relatos contados por Daniel Aarão Reis, Carlos Chagas, Elio Gaspari ou Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling. Não se esquecer também dos brilhantes trabalhos sobre imprensa deixados por Bernardo Kucinski e Beatriz Kushnir.
Portanto, estendo a minha contribuição a este estudo falando de mídia internacional, tomando mais uma vez o exemplo do New York Times. Lembrando que os relatos do NYT afetaram muito mais a opinião pública sobre a ditadura brasileira fora do país, do que dentro. O que não significa que não se mereça a lembrança e a análise. A notícia do Golpe de 1964 chegou às páginas novaiorquinas no próprio dia 1º de abril daquele ano, na primeira página. Ali se informava que a Região Militar de Juiz de Fora se rebelara contra o governo de Goulart.
No dia seguinte, ainda na primeira página, se informava que os “rebeldes” diziam-se vitoriosos contra Jango, que já teria deixado Brasília. O povo comemorava, segundo relato, na praia de Copacabana. A notícia não menciona que Goulart seguia no país, nem comentava se outras regiões mais remotas do Brasil também “comemoravam” tal ocorrido. Um historiador que conhece o trabalho dos jornalistas precisa ter claro que essa ausência de tais informações não é somente esperada, como natural a este relato. Todo cuidado é pouco para não esperar que um jornalista publique uma informação que ele simplesmente não teria como acessar no momento em que se encontra.
A localização do deposto presidente brasileiro não era informação acessível, apesar disso uma maior apuração de como distintas regiões do país sentiam o Golpe era possível de ser feita. Todavia, há de se perguntar, era mesmo viável? Num contexto de “tanques pela rua” e urgência para noticiar, quais eram as reais opções para expandir esta pequena nota de informação mandada a Nova Iorque? Lembrando que se está falando de numa época em que uma notícia precisava sair via Telex. As notícias estão na primeira página, mas não por “apoio”, mais provavelmente porque são os fatos mais “quentes” daquele dia.
Ao longo de 1964, notas sobre o Brasil seguiam aparecendo pelo NYT, com as defesas de Jango saindo na página 10 da edição de 6 de abril, e as acusações de Brizola sobre o apoio dos EUA ao Golpe na página 33 da edição de 10 de maio. Por que tais notícias não foram capa do jornal novaiorquino? O motivo é político? Muito provavelmente o motivo é apenas jornalístico, não são “breaking news” chocantes como eram as notas do dia do Golpe.
Quando Castello Branco começou a “exagerar” nas depurações dos “comunistas”, previstas pela “boa Revolução” que teria promovido no Brasil, o NYT apontou essa política “retrógrada”, na página 44 da edição de 10 de junho.
Naturalmente, posteriormente vieram as análises com alto teor opinativo, o famoso “comentário” jornalístico. Em 1965, Herbert L. Matthews elogiou a “Revolução” brasileira na página 30 da edição de 15 de março. Aqui se interpreta que “o jornal” apoiava a “Revolução”? Não exatamente. Pode-se chegar a esta conclusão porque nesta mesma época o correspondente Juan de Onís já mandava notícias a Nova Iorque com críticas às autocracias que já ocorriam no país. O próprio Matthews não se atreveu a terminar seu comentário sem deixar ao menos no ar que a “Revolução” poderia descambar para lados ruins, segundo ele, se ela caminhasse para qualquer um dos “extremos”.
Em 1967, na página 46 da edição de 5 de abril, James Reston também teceu um comentário positivo em nome do que ocorria no Brasil, usando como base o simples “medo do comunismo”, comum naquela época. Afinal, na Guerra Fria a pauta era esta e estes senhores eram estadunidenses, é justo esperar algo diferente?
Então por que se pôde observar algo distinto na cobertura de Juan de Onís, na mesma época? Ele também era estadunidense, embora vale ressaltar que era filho de Federico de Onís, um acadêmico republicano espanhol exilado nos Estados Unidos. Com o saber do que foi a Segunda República Espanhola, já se pode inferir que a vivência que este repórter tinha em sua vida pessoal era outra e afetava claramente sua visão de mundo, mesmo num contexto de Guerra Fria. Há um mais importante fator a se destacar: Onís estava vivendo no Brasil, ocupando a chefia da sucursal carioca do Times naquele momento. Ao ser um jornalista que valia seus grãos de sal, não estaria redigindo suas matérias todas do “gabinete”. Somente por sair pelas ruas do Brasil, não poderia tecer visões tão cegas e/ou ideológicas de como a “Revolução” realmente era.
Não de se estranhar, o homem que publicou pela primeira vez, na página 7 da edição de 17 de dezembro de 1968 do NYT, que o Regime brasileiro era uma autêntica ditadura militar, foi Juan de Onís, mesmo que não mais ocupava seu cargo no Rio de Janeiro à época. A notícia não foi capa, porque a capa já havia vindo no dia anterior, quando se noticiara a instituição do AI-5. Onís neste caso foi mais analista que repórter, afinal nem estava no país (e a censura já havia chegado ao escritório carioca do Times neste momento). No entanto, sua vivência e conhecimento o fizeram mais apto para explicar ao público estadunidense o que estava ocorrendo no Brasil.
E assim o fez, desde a Cidade do México, onde agora chefiava a filial local do NYT. Esta informação também é relevante, especialmente por entender que o ambiente ao redor da construção deste relato provavelmente não seria viável dentro do Brasil. Mesmo sendo um “gringo”, o que supostamente faria a ditadura pensar duas vezes antes de o prender (merece o destaque que as primeiras notas sobre tortura no Brasil chegaram aos EUA justamente porque clérigos estadunidenses foram presos no país), é difícil concluir que um jornalista conseguiria escrever o artigo referenciado do Rio de Janeiro, ao lado de um oficial do exército que agora “vigiava” a máquina de Telex que as empresas de mídia internacionais dividiam na capital carioca.
O correspondente do Times na época mais “dura” do terrorismo de Estado do Regime, Joseph Novitski, relatou em entrevista ao autor desta coluna o óbvio para quem conhece a vida de repórter: os jornalistas brasileiros não se arriscavam a enfrentar a censura, porque conviviam com aquela realidade, tinham que pensar nas suas carreiras e até mesmo nas suas vidas e integridades físicas. Estas informações não podem ser sonegadas ao se avaliar os papeis de cada jornal na luta contra o regime. Novitski mesmo pesava as informações que mandaria ou não a Nova Iorque, pensando nas consequências que ocorreriam no Brasil, já que uma notícia poderia custar a vida de um preso político. Nestes casos, melhor que não fosse publicada, assim explicou Novitski.
Com este breve compilado de informações, pode-se concluir se o NYT apoiou ou não o Regime Militar? Me arriscaria a dizer que se esta é a questão que fica ao leitor, não entendeu o ponto deste artigo. A melhor pergunta a se fazer é: como o historiador deve tratar o trabalho do repórter, feito há tantos anos no passado? É preciso compreender o ambiente em que o trabalho jornalístico foi realizado, as circunstâncias, a perspectiva da época, o contexto, assim se constrói um relato histórico o mais fiável possível com a realidade da época. Repito, isso não quer dizer que todas as decisões jornalísticas estão corretas, somente que é necessário que se interprete elas levando em consideração todos os pormenores, também para que assim, quando se aponte um “desvio”, não exista equívoco. A perspectiva do tempo sempre ajuda em tais análises, mas jornalistas não têm o luxo da paciência.
Desta forma, pode-se entender melhor aonde os erros foram dos jornalistas e aonde foram dos historiadores. É interessante saber de todos, para justamente se prosseguir no trabalho de construção da História, deixando os nossos relatos do passado o mais próximos do realmente ocorrido, algo que se teria enorme dificuldade para fazer sem os jornalistas.
* Daniel Azevedo Muñoz é jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidade Autônoma de Madri (Espanha) e faz estágio doutoral no PPGCOM- ECA/USP.