“A ESPERANÇA VENCEU O MEDO”, NA ESPANHA QUE ESPERAVA O VOX

Como uma manobra perigosa de Pedro Sánchez impediu a vitória do PP, evitando que a direita ganhasse o governo do país e isolando o seu rival em uma parceria com a extrema-direita

No domingo (23) de eleições gerais na Espanha, as primeiras pesquisas que saíam apontavam para uma “onda azul”, esperada desde a vitória massiva dos conservadores nas eleições locais, em 28 de maio. Estava menos claro ainda o porquê do atual presidente, o socialista Pedro Sánchez, ter adiantado o pleito nacional, originalmente previsto para o final do ano. 

Os mais apressados cravaram que a Espanha teria um novo presidente, o galego Alberto Núñez Feijóo, líder do Partido Popular (PP). Afinal, o namoro do líder da direita com a extrema-direita do Vox já acontecia desde as eleições locais, com Santiago Abascal, líder do Vox, sendo presença cativa na costas de Feijóo. A ascensão da direita era clara, ganhando pelo país governos autônomos (chamadas presidências das Comunidades Autônomas, cargo semelhante a um governador de Estado no Brasil), mesmo que em alguns casos com menos representantes do que o Partido Socialista Obrero Español (PSOE). O segredo deste sucesso do PP era justamente os pactos com Vox, que davam maioria ao partido, mesmo onde ele não as tinha. 

Dessa maneira, foi fácil ver Feijóo presidente, com o apoio crucial de Vox para uma maioria absoluta no Câmara de Deputados, que provavelmente faria do líder da extrema-direita um primeiro vice-presidente do popular galego. Por mais que tenha se vendido como um “moderado” em pontos cruciais da campanha, Feijóo lucrava com o discurso do Vox, que empoderou a direita no país. Acontece que este discurso queimava muitas pontes com outras forças políticas espanholas, especialmente as locais. 

Enfim começou a apuração, e as surpresas dos analistas que acompanhavam a contagem. O PP crescia absurdamente, mas o Vox perdia quase metade de sua representação. Notou-se um voto útil de todos os que queriam barrar a continuidade de uma administração Sánchez, condensado nos populares. Porém, conforme a apuração ia avançando, foi ficando clara a tática do próprio Sánchez. A “remontada” socialista não planejava ganhar as eleições, somente não perdê-las. 

Os socialistas não cresceram tanto quanto o PP, mas não chegaram a cair em suas cadeiras. Isso ocorreu em conjunto com a boa atuação eleitoral do recém formado Movimiento Sumar, da terceira vicepresidenta do governo Sánchez II, Yolanda Díaz, que conseguiu unir grupos de esquerda externos do PSOE, em um projeto de ser uma força relevante que estaria com Sánchez. Alguns analistas quiseram interpretar que essa candidatura era um rebranding do partido parceiro de Sánchez das eleições anteriores, o Unidas Podemos, avaliando que se tratava de uma queda de cinco cadeiras no congresso para esse grupo. Contudo, visto a quase morte do Podemos nas eleições locais em maio, é mais correto dizer que este partido sumiu, e o Sumar é hoje a quarta força política do país, tudo graças a fiabilidade eleitoral de Díaz. 

Um país que esperava um Vox potente, acabou assistindo Díaz gigante. Feijóo, por maior que tenha ficado, começava a ver que não chegaria nas 176 cadeiras que precisava para garantir sua investidura. Sua vitória foi amargando quando percebeu que caiu na armadilha de Sánchez. Com quase 80% de urnas apuradas, os especialistas já afirmavam ser matematicamente impossível que o bloco PP-Vox formasse a maioria absoluta. 

O bloco de Sánchez tinha 172 cadeiras e o de Feijóo 170. Neste caso, nenhum partido teria maioria absoluta. O líder galego do PP demorava a sair à famosa varanda da sede do seu partido, na Calle Génovaem Madri. Quando finalmente apareceu, Feijóo só pôde dizer que acreditava que o partido com maior representação no congresso deveria governar. Nesse momento, a Espanha se lembrava de como o líder do PP tinha, poucos meses antes, forçado um governo do PP-Vox na Comunidade da Extremadura, que deu a maioria dos seus votos ao PSOE. 

Antes mesmo de que Sánchez e Díaz dessem seus depoimentos, os perfis ligados ao PSOE e ao Sumar, nas redes sociais, replicavam o slogan feito famoso por Lula. La Esperanza Venció el Miedo. O líder socialista, ao chamar novas eleições, provavelmente imaginava que caso deixasse que os conservadores tivessem todo o tempo de preparo para o pleito, no final do ano, eles conseguiriam fazer o país se esquecer dos acordos que inventaram para garantir os governos autônomos, além das violências semânticas que o Vox cometeu assim que ganhou suas primeiras secretarias locais, removendo símbolos LGBTQIA+ das cidades espanholas, país que foi um dos primeiros a reconhecer a cidadania completa aos cidadãos LGBTQIA+, ainda na administração socialista de José Luis Rodríguez Zapatero (2004-2011). 

Sem maiorias, como funciona o sistema espanhol? 

Para se ter um presidente na Espanha, uma investidura de governo deve ser formada pelos partidos na Cámara Baja (Câmara de Deputados) do país, indicando que eles têm a maioria da representação, com 176 cadeiras do parlamento. Logo após a redemocratização, com a morte do general Francisco Franco e o fim de sua ditadura fascista, o país fez sua nova Constituição, nomeou Juan Carlos I (Bourbon) como Chefe de Estado e se tornou uma monarquia parlamentarista. 

Então veio um primeiro governo de Adolfo Suárez, da Unión de Centro Democrático (UCD), que juntava as forças de direita do país. Os socialistas do PSOE já figuravam em segundo lugar nesta eleição, seguidos pelo Partido Comunista Espanhol. Com a saída de Suárez e a vitória de Felipe González (1982-1996), o primeiro socialista a governar a Espanha depois da ditadura, o bipartidarismo se tornou a nova ordem do país. 

Desde então, a Espanha teve múltiplos governos de investiduras de partidos únicos, do PP e do PSOE. Governaram assim González, José Maria Aznar (1996-2004), Zapatero e Mariano Rajoy (2011-2018). Todos esses governos se dividiram entre formar maiorias absolutas, ou governar com minorias, mas sem o veto das outras forças políticas do país. 

O veto significa votar contra a formação de um governo, já que esse governo só pode se formar se contar com o apoio de pelo menos metade da Câmara de Deputados. Ou seja, um presidente precisa que a soma de seus votos favoráveis e “isentos” chegue nas 176 cadeiras. Outro mecanismo previsto na Constituição espanhola é a moção de censura, que pode acontecer quando a oposição pede que o parlamento vote sobre a continuidade de um governo. Caso nessa “checagem” se perceba que o governo não consegue mais juntar as 176 cadeiras, ele cai. Foi por meio de uma dessas que Sánchez chegou à presidência do país, quebrando o mandato de Rajoy, em 2018. 

A partir desse momento, Sánchez foi presidente com a maioria “não absoluta” no parlamento, até as eleições de 2019, que aconteceram duas vezes. Na primeira eleição do ano, em abril, Sánchez não conseguiu alcançar essa maioria. O mecanismo que se aciona neste caso é o chamamento de novas eleições. Em novembro, Sánchez se fez presidente, pela segunda vez e pela primeira vez com eleições, e com mais uma novidade: era a primeira vez que a Espanha formava uma investidura de governo de coalizão de partidos. Sánchez não governava sozinho, mas com o pacto firmado com o Podemos. Desde então, essa parece ser a nova regra da democracia espanhola, com os tradicionais partidos fazendo coalizões com as novas forças políticas. 

Então Sánchez segue presidente? 

Possivelmente. Entre as possibilidades estão a de uma investidura minoritária do PSOE-Sumar fazer com que Sánchez chegue ao seu terceiro mandato, ou o chamamento de novas eleições, para daqui a seis meses. Entre os dois blocos que não formaram maioria há partidos neutros, que ainda podem bloquear a investidura. Agora serão feitas negociações com eles.

Feijóo, mesmo com mais cadeiras para o PP, enfrenta um cenário inviável, segundo os analistas, porque foi colado à imagem de Abascal, numa tática de campanha de Sánchez. Dessa forma, está junto do Vox, para o bem e para o mal. Contudo, não forma maioria com o Vox, e escuta de todos os outros partidos que não aceitarão fazê-lo presidente se estiver ao lado de Abascal. A única esperança de Feijóo seria convencer o Vox a não bloqueá-lo, sem oferecer nada em troca, o que não é do interesse da extrema-direita. Abascal sabe que seu partido perdeu relevância, muito por causa do próprio PP sifonando seus votos.  

Os outros partidos rechaçam esse pacto de direita, por causa do discurso do próprio Vox, que trouxe ecos do franquismo de volta à vida. Estes partidos são regionais, nacionalistas de suas comunidades, as mesmas que são atacadas pela força “unificadora” do discurso da extrema-direita. Mesmo os partidos conservadores do independentismo catalão e basco não aceitarão um governo que poderia criminalizá-los. 

O que não significa que todos morram de amores por Sánchez, já que o socialista também era presidente quando Madri rechaçou o plebiscito ilegal realizado na Catalunha em 2017, por sua independência. Os herdeiros políticos do presidente catalão que chamou essa votação, Carles Puigdemonte, são o partido Junts per Catalunya, os únicos que ainda precisam não bloquear Sánchez para que ele comece seu terceiro mandato. 

Como estão as coisas, Sánchez tem os votos (e os não-vetos) do PSOE, Sumar, Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), Euskal Herria Bildu (EH Bildu), Partido Nacionalista Vasco (EAJ-PNV) e Bloque Nacionalista Galego (BNG). Só lhe faltaria a “isenção” do Junts. 

Feijóo conseguiria um máximo de 170 cadeiras, com os votos (e os não-vetos) do PP, Vox, Coalición Canaria (CC) e Unión del Pueblo Navarro (UPN). Estes dois últimos partidos regionalistas, que somados têm dois deputados, querem condicionar seu apoio a uma saída de Vox da investidura do PP, o que diminuiria o apoio de Feijóo ainda mais, para 168 cadeiras. 

O que vai querer o Junts para não bloquear Sánchez? 

A princípio, o partido catalão pediu o que Sánchez não pode entregar: que possam realizar um plebiscito pela independência da Catalunha. Não somente o socialista não faria isso, por ser um suicídio político frente ao restante do país, como nem sequer poderia. A Constituição espanhola proíbe uma consulta deste tipo. 

Reuniões entre as lideranças do PSOE e do Sumar com os líderes do Junts já foram marcadas, para que se possa chegar a um acordo com os catalães. Díaz afirmou que o Junts não deve chegar ao diálogo com “linhas vermelhas” no chão, de exigências sob as quais seriam irredutíveis. Enquanto isso, representantes do PSOE garantem em Madri que os socialistas não negociarão nada inconstitucional com a direita nacionalista catalã. 

A partir daí, Sánchez volta a falar nas suas redes de seus compromissos como presidente, fazendo coro ao “sucesso econômico” do país, apontado recentemente pelas previsões do FMI. Díaz se movimenta em dar entrevistas e falar com a mídia, explicando os caminhos que a coalizão seguirá para tentar ganhar seu governo. As lideranças do Sumar cravam que não há mais governo do PP possível na Espanha, com estes resultados, e que agora cabe a eles formarem essa nova investidura, não importando o que diga Feijóo. 

O PP não esconde sua frustração de que Sánchez tem um caminho mais realista para manter-se no Palácio da Moncloa do que eles têm de ascender de novo ao governo espanhol. Feijóo passou a “afagar” os socialistas, chamando-os de “partido de Estado”, em conjunto com seu próprio partido. O plano seria tentar vender a ideia de que somente o PP e o PSOE seriam partidos sérios, tentando assim convencer a população (e os socialistas) de que deveria governar numa investidura solo do PP, que não fosse bloqueada por mais ninguém. 

Este plano é uma ilusão, o que faz com que os analistas (e até os memes) comecem a tratar Feijóo como um que “morreu, mas ainda não sabe”. Em meio a esta inesperada derrota, o PP se apressou inclusive para fechar acordos locais com o Vox em governos autônomos que ainda não tinham se consolidado desde maio, em Aragão e Murcia. 

No País Basco, o EH Bildu aponta que deve permitir o novo governo de Sánchez, “sem colocar preços e ‘linhas vermelhas’”. O EAJ-PNV, por mais que tenha que lidar com os intentos do PP, deve também preferir ir para o lado dos socialistas, como tem feito nos pleitos mais recentes. A província ainda tem marcada a lembrança dos ataques que o PP fez aos bascos durante todo o governo Sánchez, acusando o presidente socialista de ter se “misturado a terroristas” por ter feito um acordo com EH Bildu para ganhar a investidura de 2019. Analistas apontam que se Sánchez se mantiver no poder, será mais uma vez graças a estes partidos de cunho nacionalista regional. 

Enquanto isso, na Catalunha, o Junts pode decidir dobrar sua aposta e deixar os sonhos dos socialistas caírem. Contudo, vale lembrar que o grande vencedor nessa Comunidade Autônoma foi o próprio PSOE, sendo o partido com maior representação entre deputados catalães. Se o Junts “trucar” Sánchez, pode derrubá-lo hoje e assinar seu testamento amanhã, sendo punido nas próximas eleições e perdendo mais cadeiras no parlamento. 

A data final para que os deputados espanhóis decidam o futuro da investidura é 17 de agosto. Até lá, os socialistas correm para conseguir assegurar sua manutenção na Moncloa. O truque de Sánchez funcionou perfeitamente para frear Feijóo, que dificilmente conseguirá manter-se sequer líder dos populares depois dessa derrota. O galego é um “morto vivo” e o partido não tardará para buscar um novo “anti-Sánchez” nas suas fileiras. Se o grupo catalão resolver vetar que o PSOE e o Sumar governem, as novas eleições podem ser piores também para a esquerda, por isso a importância de resolver isso nas próximas semanas 

Sánchez não ganhou as eleições, mas teve sucesso na sua ideia de “perder menos”. Nesse sentido, diante de poucas previsões de que o seu malabarismo de chamar eleições tinha sido uma boa ideia, pode entrar para a história como aquele que conseguiu o bloqueio que impediu que a extrema-direita participasse de um governo democrático espanhol. Independentemente do futuro, as consequências do Vox quase ter ascendido a um posto no governo nacional, seriam grandes para o país e para a União Europeia. Por isso, não se pode questionar o êxito de Pedro Sánchez. Em agosto ele possivelmente seguirá presidente da nova Espanha de governos de coalizão, ou pelo menos terá, daqui a seis meses, uma nova chance de frear a direita do país.

 

Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.