Quem é Cristo perante a sociedade brasileira após o golpe parlamentar de 2016 e a ascensão bolsonarista em nossas urnas?
Essa é uma questão um tanto quanto sublime, haja vista que os problemas do âmbito social de nossa atualidade são ainda mais amplos e expõem uma complexidade vasta se comparada a uma análise que visa decifrar um Cristo, ou mais de um, ou o que quer que ele represente de fato entre as classes brasileiras. Partiremos, então, dos problemas em si, de suas edificações históricas, do engendramento.
O desenvolvimento econômico de nosso capitalismo periférico nos demonstra que por mais frágil que seja nossa dita “democracia” – e notem, uso as aspas para enfatizar aqui o termo democracia, pois entendo que não vivenciamos um sistema democrático que se sistematiza até mesmo para nossas mazelas das classes, como os chamados empobrecidos. Trata-se de um modelo de estado em que vez ou outra em nossa história republicana, os governos progressistas da também dita “social-democracia” (e sim, me refiro aqui aos governos petistas), puderam desafogar as mazelas do social através de planos governamentais que simplesmente olharam para uma pessoa pobre como sujeitos sociais dignos de algo, como alguém, com dignidade, com humanidade. Talvez tenham dado o mínimo – que para uma grande parcela é muito – e caso isso são seja um papel cristão, mesmo que de forma indireta, ou que anacronicamente seria “respeitado” por Cristo, e até mesmo por aqueles que o seguiram durante as ditas passagens bíblicas. Sinceramente, não sei do que se trata.
Os governos petistas não são a imagem e semelhança de Cristo. Como um sujeito de esquerda que sou, pasmem, não farei aqui essa afirmação. Porém, também não levarei a intolerância e a mesmice adiante dentro dos diálogos políticos atuais. Por essas reafirmo, ou melhor, trago à tona que sim, os governos petistas, em seus primórdios, realizaram um papel cristão de fato (vejam, isso é uma análise de um cético, de um humanista).
A fome como ótica nos leva a crer que um mundo possível, um mundo “justo”, mais igualitário (com o perdão do adjetivo), estará para sempre distante, não é viável, pois quem tem fome simplesmente busca incansavelmente algo: sanar a fome. Para aqueles que padecem de fome, sobreviver até o dia seguinte já é muito, já é lucro – e não me refiro aqui ao lucro fruto de nossas dinâmicas de produção. A pobreza é uma ferramenta de limitação, é um instrumento de estado. Por isso, introduzi acima o termo empobrecimento, logo que aqueles que estão em situação de pobreza extrema hoje, nas vielas desta nação, são frutos de um resultado histórico em que até o prezado momento, não visou a emancipação dos mesmos por completos, mas sim os tornou mais pobres ainda em prol do subdesenvolvimento agrário, filho do processo escravista, fruto do processo industrial precário, sem abertura ao desenvolvimentismo econômico. Este aí que nem Conceição Tavares, muito menos Furtado, puderam presenciar. A pobreza nos arrasta para um cenário em que os bem afortunados desse país sequer imaginam, em que dias soam como semanas, meses, pois a fome sem perspectiva de fim é mais longa do que parece, o pobre é aquele que diz “o pouco com Deus é muito”, e se sente satisfeito com as migalhas que restam, antes mesmo que o armário se dê por esvaziado. Já a burguesia nacional – notem, com b de bilhões – é quem usa da imagem de Cristo quando convém, quando precisa defender seu patrimônio de narrativas criadas por eles mesmos para se imporem ao movimento crítico da esquerda – não me atento aqui a qual esquerda, logo, generalizo todas elas sem piedade – ou seja, usam da imagem de Cristo, se tornam cristões quando podem, quando denotam necessidade. Por isso afirmo que sim, há dois Cristos em jogo, o Cristo como imagem de salvação para os pobres e o Cristo, ou narrativa cristã, usada como instrumento bélico pela extrema direita nacional, por sua bancada, que tanto cresce no congresso. Abrange também, por via de regra, a burguesia nacional, que na maioria das vezes sequer mora em nossa nação, pois apenas possuem seus meios de produção localizados em solo brasileiro e não vivenciam o dia a dia da sociabilidade brasileira, da violência das capitais ou municípios, da inflação, dos mandos e desmandos do banco central e sua independência que respinga nos pobres, os afetam, dos juros extraordinários, do endividamento da classe média e dos empobrecidos, da simples sorte caso expostos à “saúde pública”.
A burguesia nacional não clama pelo Cristo da salvação, ou seja, que cumprirá o papel de salvar, pois ela já está salva. Para essa parcela, Cristo é um instrumento, assim como a violência é um instrumento de estado para Foucault. Quando sentem qualquer avanço de análise crítica da esquerda “geral” se alastrando entre o debate público, colocam seu instrumento no “jogo”, sua peça no tabuleiro, mais a frente, e eliminam todo e qualquer teor que houvera um homem, imigrante inclusive, que amou os esquecidos, lutou politicamente por aqueles que nada tinham e, segundo os textos, morreu pela própria visão.
Concluo que a questão “Cristo”, ou “cristã”, esvaziou-se graças as vias políticas atuais, pelas proposições nacionais. Cristo nunca esteve longe de ser um instrumento dos estados nacionais, inúmeras foram as violências cometidas em nome dele. A história nos relata isso, mesmo que esse sujeito apenas tenha pregado a compaixão, receio que essas formas muitas vezes impostas pelas guerras cristãs, pelas cruzadas, bulas papais, imposições aos estados, ou a inquisição tenham sido superadas, hoje, em nosso país. O peso do “como vota deputado?” ao final conclui-se como uma pregação, com o uso da ferramenta em prol da narrativa.
* Renan Freire é músico e estudante de história na Universidade Estadual do Norte do Paraná.