A beleza negra: entre o descobrimento do ser e a sociedade brasileira pós-escravismo

Afinal, quando nós negros e negras do Brasil nos deparamos com nossa etnia de fato? Quais foram os processos que nos levaram a crer que estamos longe da consideração social em relação a beleza e aquilo que é tido como belo “aos olhos de todos”? Quem foram os mentores do projeto político que excluiu nossos traços durante tantos séculos? Qual é a herança psicossocial que o modelo escravista perdurado por mais de trezentos anos incutiu na mentalidade do ser negro?

Após Maio de 1888, a população negra deste país não lidou com a questão de sua identidade pois não havia tempo, ao fim “formal” da escravatura nosso horizonte foi outro, os questionamentos foram outros: “o que faremos agora?”, ao oposto, “devemos fazer algo?”, “para onde vamos?”, “permaneceremos nas senzalas ou ocupamos os morros que tanto crescem?”, ou seja, a gama de dúvidas que norteavam as decisões futuras das vidas dessas pessoas era fruto histórico da mesma conjuntura, daquele processo, de sua própria materialidade, pois aquilo que a sociedade negra do século XXI pensa e reflete sobre sua identidade e logo, suas particularidades, não reflete de fato aos anseios do período em questão, da escravatura, pois a sociedade “caucasiana” e escravocrata do século XVI até o século XIX cumpriu seu papel: animalizou os traços e características do homem e da mulher negra, demonizou as suas crenças, os extinguiu de toda e qualquer opinião pública que tratasse do ser, da identidade como valor social, da valoração dos cuidados pessoais, portanto não só os “atrasou” para a ascensão ao mercado formal de trabalho, ao acesso a educação básica, a habitação digna, a inserção dentro de nossas universidades e a ocupação de cargos de renome, mas fez com que o entendimento acerca de sua própria etnia e suas características dentro da beleza humana, algo que trato aqui como o ser negro, fosse um objeto de estudo social de nossa contemporaneidade.

Atento as condições e problemas daquela época pois esses problemas eram de fato distintos. Mesmo que haja um consenso entre nós historiadores que a problemática socioeconômica dos negros e negras não tenha progredido para um estágio de devida tranquilidade financeira podemos observar que sim, aqueles que pertencem a ascendência dos povos que aqui foram escravizados  buscam hoje  entender-se como pessoas negras – por mais que esse entendimento passe pelo “filtro” da opinião branca, em outras palavras, pelo racismo.

Da animalização a sátira dos traços

Quando mais jovem sempre me auto questionava: porque tenho os fios  cacheados e não lisos como os  dos outros colegas? Certa vez até tentei alisar  escondido de meus pais, “zerava” o meu cabelo sempre que podia, alguns anos depois me vi de barba, a comparação de minha barba com o bombril, a palha de aço que tanto ficou conhecida pelas  suas mil e uma utilidades ( inclusive, infelizmente, também por associações racistas) se alastrou rapidamente por minha sala. A juventude dos negros no Brasil se dá pela negação de seus traços, fora a própria complexidade das fases de nossas vidas, como por exemplo a adolescência junto da puberdade e suas questões biológicas, lidamos com o não entendimento de nossa identidade como seres humanos. Engana-se quem acredita que apenas o estado brasileiro deve algo para o povo negro; uma indenização devido aos 388 anos de escravatura por exemplo, há uma dívida de caráter social pelos feitos da sociedade durante esses séculos, pela construção do ideário racista.

A animalização foi o primeiro processo, quando os negros e negras eram vistos ambiguamente como mercadoria e como um animal. Insiro o termo animalização para justamente caracterizar a violência da época e seu entorno, pois para que haja a violência de outro ser como se deu durante a escravatura primeiramente você o animaliza, ou seja, descarta seu caráter humano e o atomiza a condição de um animal, depois impõe a violência de fato.

Bem a frente veremos a sátira dos traços como um elemento moderno de descaracterização de nossa identidade. O homem negro será retratado pelas novelas, tramas e comédias  como um bêbado, descompromissado, cheio de “vergonhas econômicas” , distante de qualquer intelectualidade, quando não mero símbolo sexual. A  mulher sempre nas cozinhas,  hipersexualizada ou como uma mera faxineira, distante dos papéis principais. Reflitam: o que a juventude negra pensava ao assistir isso tudo? Melhor, por uma ótica analítica, como isso reflete para a busca atual do ser negro?

Leiam, como diria Jorge Ben Jor:

Negro é lindo!

Porém, devido a tais processos históricos, nós, negros e negras desse país, demoramos muito tempo para notarmos nossa beleza, para aceitarmos nossos traços. Nos descobrimos como negros através dos primeiros racismos. O negro descobre sua etnia através do racismo, seja ele velado ou não. Depois, devido a um longo período de reflexões por aquilo que as pessoas não-racistas nos dizem de forma espontânea, pelos afetos, amores, amizades e relações familiares nos vemos dignos de sermos considerados belos. Nos vemos como pessoas belas através daquilo que é dito pelos outros, e por aquilo que é associado por nós mesmos, digo por mim, anteriormente ao momento em que alguém me classificou positivamente em relação a beleza no máximo me via como alguém esforçado para as áreas artísticas e humanas, logo me associava aos estudos, não a beleza. Se esse momento não tivesse acontecido não teria refletido sobre, e posteriormente seguiria negativo perante minha autoestima.

Malcom X certa vez em um de seus incríveis discursos, disse:

Quem te ensinou a odiar a textura de seu cabelo?

Quem te ensinou a odiar a cor de sua pele?

Quem te ensinou a odiar o formato de seu nariz? O formato de seus lábios?

Pondero por outra reflexão do filósofo francês Jean Paul Sartre:

“Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com que fizeram de mim”

E caso o pensamento crítico se der como uma solução prática para  que os negros e negras entendam aquilo que fizeram conosco, com a negatividade de nossa identidade, então sejamos altamente críticos da crítica crítica – para não dizer que  não citei Marx.

* Renan Freire é músico e estudante de história na Universidade Estadual do Norte do Paraná.