Soja e gado se criam no deserto?

Um dos cartões postais brasileiros mais famosos e motivos de atração turística internacional é o Pantanal. Muitos estrangeiros vinham até o país para visitar esse ambiente único no mundo em toda a sua potência natural. Não sei ao certo se alguém se aventura ainda a vir de fora para se deparar com esse ambiente em cinzas.

O Pantanal é considerado – ou talvez dentro em pouco não mais – um dos patrimônios naturais da humanidade, justamente por reunir em uma só região aspectos da vegetação, rios, fauna  únicas no planeta, além da beleza indescritível. Acontece que um grupo de “fazendeiros” (coloco entre aspas porque na minha concepção a denominação fazendeiro envolve conceitos muito diferentes dos que estão relacionados a esses verdadeiros genocidas ambientais) tem como meta devastar todo o bioma para colocar soja e gado na cobertura terrestre, onde ainda resta alguma vegetação exuberante.

Meu avô materno era fazendeiro. Naquela parte do Estado de Minas Gerais, onde o Cerrado era ainda um dos grande biomas brasileiros, em todo o seu esplendor, o chamado fazendeiro fazia parte de uma categoria social que somente assim era chamado por possuir alguma terra com dimensão acima do “sítio”. Não andava de camionete de tração nas quatro rodas, mas a cavalo. Nem sabia dirigir. Quando precisava ir à cidade, pegava uma “jardineira” que levava horas em um trajeto que hoje pode ser feito em minutos. No Cruzeiro edificado na parte mais alta da terra, rezavam e faziam novenas para que ninguém adoecesse e preisasse de atendimento médico com urgência e para o tempo ser generoso com a plantação.

Meu avô e seu irmão possuíam terras no Triângulo Mineiro e de acordo com os relatos da minha mãe e seus irmãos, que viveram ali até terminarem o ensino básico, a vida era bem modesta. A casa era muito simples, de madeira e terra batida, minha avó cozinhava no fogão a lenha, além de fazer praticamente sozinha todas as tarefas consideradas do quintal: cuidar da horta, das galinhas, do pomar, preparar as carnes dos animais que eram abatidos e tratar de defumá-las acima do fogão, cozinhar, fazer doces, queijos, quitandas (como são chamados, naquela região, os pães, roscas, biscoitos, bolos, no seu conjunto), lavar roupa, cuidar da casa e de sete crianças. Meu avô, por sua vez, cuidava dos animais de maior porte, das roças de arroz, milho, feijão, mandioca e café, e, no mais perfeito estilo camponês, guardava parte da colheita para a subsistência da família e outra era destinada ao mercado. O mesmo para o gado. Era uma vida dura. Uma vida simples e baseada no trabalho. Ensinou os filhos a não almejarem jamais aquilo que era do outro e que o que tinham era o suficiente para a família. O maior luxo da fazenda foi uma escola que fez construir nas suas terras – um cômodo apenas – e trazer um professor para ensinar da primeira à quarta série, a garotada da família e dos trabalhadores vizinhos. Embora nenhum dos dois, avô e avó, tivessem tido a oportunidade de estudar, consideravam os estudos muito importantes e formaram todos os filhos. E os filhos ensinaram aos filhos – e aqui me identifico – a cuidar das árvores, das plantas e dos rios, a respeitarem o ciclo da natureza, pois é dela que vem o que nos alimenta. Vem o arroz, o feijão, o milho, a mandioca, as verduras, as frutas. Alguém pensou na produção da agricultura familiar? Pois é, meu avô fazendeiro estava mais para um agricultor familiar produtor de comida do que para um fazendeirão frequentador de leilões. Nunca lhe perguntei, mas tenho comigo que se tivesse perguntado na minha inocência de dez anos, se ele desmataria a parte nativa da sua terra para plantar soja, que seria exportada para virar ração, ele provavelmente ficaria horrorizado. Homem rústico do Cerrado, criado em meio às árvoes tortuosas daquele ambiente ainda hostil naquela época, preservava a sabedoria dos que têm que conviver de forma harmônica com o seu meio, pois qualquer mudança provocada pelo ser humano poderia significar uma alteração no ciclo das chuvas, que desbalancearia a época da colheta, podeira aumentar a estiagem e secar os pés de milho antes dos grãos ficarem granados. Muito provavelmente jamais imaginaria aquelas terras suas e do tio Zeca, seu irmão, pelada, sem a mata de Cerrado com seus pés de gabiroba, de pequi (Deus me livre daqueles espinhos!), jatobá e os muitos bichinhos que ali habitavam: paca, tatu, onça pintada, lobo guará e – terror dos terrores, as cobras. Era uma vida dura, era simples, mas era sábia. Felizmente cresci na presença desse ambiente, quando visitava meus avós, e enquanto o carro atravessava o Cerrado pelas estradas esburacadas, observava aquelas árvores tortuosas, de baixa estatura, de tronco retorcido e folhas ásperas a perder de vista. Primeiro vieram as lavouras de arroz, depois as plantações de cana para alimentar a usina de álcool, e lá se iam as árvores, caindo uma após a outra, até que a paisagem mudou completamente. Fui criada familiarizada com o Cerrado, dando valor àquela região que alguns hoje acham que é uma cobertura vegetal qualquer, à espera da devastação para dar lugar à plantação de soja e do café grifado Café do Cerrado.

Hoje presencio as manchetes escancarando notícias sobre um “fazendeiro”, que pode contratar um avião, sobrevoar centenas e centenas de hectáres do Pantanal e pulverizar um produto químico semelhante ao Napalm que foi jogado sobre o Vietnã durante a Segunda Guerra e devastar tudo lá embaixo, plantas, bichos, rios. Simples assim. Porque tomar posse de algo tão grandioso que não lhe pertence significa fazer a coisa completa, não deixar testemunha de pelo, de pena, de couro. Transformar o que era naquilo que já não se assemelha. Assim, sem testemunha de vida, parece que ninguém vai notar. Dar falta do que já não existe?

 Têm nome e sobrenome

Bicho não fala, não denuncia, morre em silêncio na sua dor e na sua surpresa, no seu desentendimento: por quê?? Mas se homem devasta, outro testemunha e registra, porque em tempos de negacionismo, palavra muito em voga, tem que haver registro de imagem para que creiam, sim, o Pantanal, o Cerrado, a Amazônia estão ardendo e desaparecendo, e alguns registram em nome da natureza silenciosa o sofrimento e a mortandade pelo fogo. Registram também para mostrar aos netos, bisnetos – não sei se haverá tataranetos – desses “fazendeiros” o que seus antepassados lhes legaram.

Voltando ao meu avô, ele era de um tempo em que nem tanto valor assim tinha uma assinatura no papel, mesmo porque naqueles confins lá pelos lados de Cachoeira Dourada, eram poucos os que podiam botar seu nome por escrito em algum documento. E aí entrava o valor da palavra: ai daquele que descumprisse uma palavra dada, uma promessa feita! Ou mesmo ver seu nome envolvido com coisas da lei, por ter praticado coisa suja, coisa feia! O seu nome estaria jogado para sempre no lodoçal do mangueirão dos porcos. Vergonha suprema! Tempos outros, aquele, em que ter o nome estampado para todos verem – nos jornais, no rádio, em bocas de Candinha, poderia significar a morte. Tempos outros, esse, em que um “fazendeiro”, com nome e sobrenome para todos na mídia saberem, atira de avião desfolhantes químicos, assassinando tudo abaixo; em que “fazendeiros”, combinados por um grupo de whatsapp, marcam de incendiar milhares de hectáres de floresta amazônica, no chamado Dia do Fogo; “fazendeiros” esses que, em nome da terra árida que deixarão para seus netos, devastam o patrimônio que hoje é de todos nós. São esses “fazendeiros”, que são públicos o nome, sobrenome e endereço, que se abrigam tranquilamente sob um Direito permissivo, que é incapaz de lhes imputar uma pena que seja. Embora muitos desses sejam bastante conhecidos e estejam cobertos de multas ambientais milionárias, passeiam tranquilamente pelos corredores do poder aproveitando a sua invencibilidade e confiantes que conseguirão cultivar soja e criar gado no deserto.

* Andréia Terzariol Couto é pós-doutora pela ECA-USP