Farpas de Paris

No frio de Paris uma placa em bronze me lembra a data do armistício da Primeira Guerra Mundial que já me esqueci e outra rememora as crianças judias extraditadas para Auschwitz que não podem ser esquecidas e na rua Saint-Honoré um grupo imenso espera apesar da chuva a sua vez para entrar na loja de Christian Louboutin e na Gare du Nord um pianista solitário interpreta Aquarela do Brasil como se estivesse em uma Copacabana congelada e em frente à Ópera um japonês improvisa passos enquanto dedilha em um violão de aço canções do Coldplay sendo aplaudido com entusiasmo pelo público que espera pela abertura da Lindt e por toda a cidade se vê pessoas carregando malas e tenho certeza de que em nenhuma outra cidade do mundo tantas pessoas arrastam suas malas pelas ruas e na Passagem de Brady o cheiro de curry fica impregnado nas roupas indianas penduradas em longas araras de alumínio e me encantam as rosas vermelhas que por mágica estão sempre floridas nas sacadas da rua de Lyon e um bombeiro se lança com roupa de mergulho nas águas turvas do rio Sena sob aplausos de um grupo de escoteiros e um casal oferece comida para o morador de rua que vive em uma barraca em frente à Gare L’est e constantemente ofende os policias postos na esquina que olham para ele com desdém e toquei desconfiado nas paredes de Versalhes para ter certeza de que não eram cenários de papelão e uma senhora passeava tranquilamente namorando as vitrines do Faubourg Saint Martin vestindo um casaco de pele e chinelos sem meias e babás negras acariciam os rostos rosados de crianças brancas ensacadas em seus carrinhos de bebê no Jardin Villemin e nos corredores do Louvre entre quadros e turistas uma lagartixa escala as imensas paredes brancas incólumes e me mostra a sua língua e nas casas hermeticamente fechadas durante o inverno o calor dos corpos abrigados em seu interior deixa os vidros embaçados e no domingo os sinos das igrejas de Paris me devolvem à Idade Média e na lavanderia um pequeno rato me lembra que posso estar exposto à peste negra enquanto lavo minhas meias encardidas e na Galeria Lafayette uma faxineira da Ilha da Madeira me diz que odeia Paris e que somente em Madeira ela é realmente feliz enquanto os consumidores entronizados olham para os vitrais adorando um outro tipo de religião e velhos usando jeans jogam Péla em uma quadra de areia e trazem um lenço para segurar a pequena bola de aço gélida e um cordão com um imã na ponta para retirá-la do chão e luvas de infinitas cores seguram o corrimão da escada rolante na Gare d’Austerlitz totalmente lotada ao final do dia e ratos do tamanho de castores se fartam com os restos de McDonald’s deixados pelos turistas ao redor da Torre Eiffel e me lembro da minha infância ao sentir o cheiro do amendoim doce vendido em saquinhos da papel nas escadarias da Sacré Coeur e em frente ao apartamento em que viveu Auguste Comte penso na frase “ordem e progresso” e sou tomado por uma cólera desenfreada e assusto com um forte assovio três corvos gordos do parapeito de uma livraria e na rua Odeon tenho certeza que vi Ernest Hemingway dirigindo um jipe do exército americano e compro os doces árabes mais maravilhosos do mundo e em uma loja de artigos para caça peço ao vendedor uma faca de pão e ele me responde rindo que este sem dúvida foi um gesto surrealista e me pergunta se sou artista e no mercado de Saint-Quentin corpos de coelhos são expostos nos açougues com precisão anatômica e um grupo de senhoras em tristonhos sobretudos discutem dentro de um ônibus sobre manter ou não as janelas abertas e um jovem passa de patins sendo puxado por um pastor alemão e em frente ao Collège de France uma fila de doutos senhores com boinas e cabelos grisalhos e óculos embaçados se protegem como podem da névoa gelada e uma mulher passa por mim conversando calorosamente com sua baguete e em Cluny vi uma borboleta azul pousar em uma inscrição latina e na fila da Disney um homem assoa o próprio nariz em sua camiseta onde se lê a frase “The rebelion is the new normal” e compro um bolo lindo e salgado que me intoxica e uma jovem de olhos amendoados se veste toda de branco revelando o véu islâmico e uma boina pink e turistas aguerridos disputam as poucas cadeiras de metal ainda desocupadas nos Jardins de Luxemburgo e em uma Mercedez conversível o motorista e seu cão usam lenços no pescoço com a mesma estampa e na rua de Rivoli uma cigana romena canta uma canção triste enquanto pede com as mãos abertas uma pièce e lhe ofereço um euro e ela me retribui com um sorrido perfeito e eu sei que foi nesta mesma rua que Maria Antonieta foi execrada em público antes de ser guilhotinada.

* Marcelo Lapuente Mahl é Doutor em História do Brasil (Unesp/Assis) e docente da Universidade Federal de Uberlândia, atuando nos cursos de Jornalismo e História, além de desenvolver projetos de escrita poética e literatura infantil.