Em que horas vocês amam

O ano era 1966 e o filme era A Grande Cidade, de Cacá Diegues. Durante um breve monólogo Antônio Pitanga indaga os perambulantes na rua: “Que horas você acordou?”, “Que horas vai dormir?” “Vocês vão ao cinema?”, e a grande indagação: “Em que horas vocês amam?”

A partir dessa pergunta novas outras surgem, por exemplo, somos donos do nosso tempo?

Aqueles que compram nosso tempo detém parte de nossa vida? Se o amor é a dedicação que temos a outra pessoa, as formas de relacionamento – independente de como forem elas – são mais e menos intensas devido o modo de produção e seu caráter selvagem e depreciativo? Ao fim de nossas vidas teremos amado pouco e produzido muito? Sobre aspectos urbanísticos – perante a aceleração das grandes capitais –  como dirá Criolo em sua crítica canção Não existe amor em SP ?

Nota-se a existência de certas perspectivas sociais, ou parâmetros de sociabilidade. A lógica capitalista desde sempre trabalhou com o conceito de tempo, nunca o descartou. Durante o século XIX, em certas passagens do livro um do Capital de Marx, presenciamos ali duros relatos de forma expositiva: trabalhadores reféns de uma carga horária de até dezoito horas, insalubridade, trabalho infantil logo a mortalidade, fruto do desgaste do dia a dia e da má relação trabalho-saúde. Quais são as perspectivas sociais para essa classe em questão, a classe daqueles que sobrevivem graças ao trabalho? Qual o horizonte possível? Notem, amar? Viver uma relação minimamente sadia? Mas em que horas?

As perspectivas sociais para a classe trabalhadora sempre foram as mesmas: pouco tempo para a sua vida e um desempenho gritante para o capital alheio. Essas perspectivas se alteraram mesmo que a passos lentos conforme as lutas operárias tomaram frente. Após a revolução bolchevique em outubro de 1917, por exemplo, parte do proletariado mundial passa a crer que aqueles que trabalhavam também mereciam viver com qualidade, ou seja, a ótica relacionada apenas a sobrevivência se altera para tomar forma uma outra visão: a de que o futuro pertencia aos proletariados, e não aos que apenas detiam às devidas propriedades privadas dos meios de produção.

Essa palavra crítica se atenta aqui até então  a relação de sobrevivência da classe trabalhadora e suas questões afetivas, após o próximo ponto mudo minha ótica.

Quantas vezes amamos um dia todo nossos pais? Nossos filhos? Nós, os que trabalham. Temos tempo para gerir nossos ciclos de amizades?

Não é coincidência quando ouvimos relatos de relacionamentos que se deram dentro dos ambientes de trabalho, afinal, a grande parcela passa mais tempo nesses ambientes do que em algum “lindo lago do amor”, como o citado por Gonzaguinha em sua célebre canção de mesmo nome.

Os resultados práticos da jornada de 44 horas semanais são esses: a maior parcela do tempo de sua vida não é sua, é de quem paga por ela. Introduzo o tema dos afetos pois sinto que parte daquilo que é negado para aqueles que vivem perante a sua mão de obra, a compra dela por aquele que necessita e pode pagar – grande parcela essa paga de forma baixa, com baixos salários – é negado por ser humano, por haver em seu âmago  características humanas sobre o tema.

Outros exemplos vem a tona como o distanciamento da saúde mental. É iminente que estamos diante de uma classe nova, com novas demandas. O acesso ao cuidado psíquico desde sempre nunca foi um dos fatores motivacionais para a antigas indústrias, quem dirá as big techs.

Devemos impor um olhar crítico ao desenrolar cronológico de nossa classe, me refiro como nossa por justamente pertencer a parcela trabalhadora. A política institucionalizada de esquerda, que se tornou institucionalizada graças ao advento do partido dos trabalhadores ao governo federal com a primeira das três vitórias de Lula, pode propiciar de forma material, novos elementos que não estavam inseridos na realidade dos que apenas trabalham. Alguns fatos históricos fizeram com que a direita nacional destilasse todo o seu ódio de classes, inclusive, como exemplo, quando começam a notar que cada vez mais empregadas domésticas estavam simplesmente viajando de avião, usando as vias áreas para locomoções que antes eram frequentemente usadas pela classe média ou pelos mais ricos.

Reflitam, não apenas foram as empregadas que puderam ter acesso a isso, mas casais oriundos do mundo das más remunerações trabalhistas. Houve um choque social ali, um conflito de classes, quando uns e outros notaram que o pobre também queria e podia, de certa forma e com ressalvas, passar sua lua de mel no nordeste, e não na Praia Grande – local esse muitas vezes diminuído por algumas pessoas – .

Há uma lacuna que distancia as relações sadias daquelas que de fato não são. O poder aquisitivo denota se haverá um número X de experiências maior ou menor entre as pessoas em uma relação. Se conhecerão novos lugares, culturas distintas, culinárias que serão provadas de maneira conjunta, aventuras, descansos, lazeres, logo ócios que retiram um relacionamento de uma ótica escassa e o colocam para um mundo de novidades e perceptivas que poderá enriquecer a convivência de ambas as partes através do descobrimento, daquilo que é novo, de agregamentos culturais.

Quando nos aprofundamos no quesito tempo vemos algo que pode ser conferido na prática, que sobressai esses textos. A depender da classe haverá mais ou menos tempo para as coisas que estão no entorno do viver. Me atento a classe trabalhadora brasileira pois sinto que não há objeto de estudo mais aflorado desigualmente do que essa classe em específico.

Sobre quesitos étnicos,  atento-me a população negra também. Essa grande parcela que teve seu presente forjado pela mão de obra roubada, não remunerada, os negros e negras estão a descobrir a importância do lazer a muito pouco tempo. As condições não estão dadas simplesmente, mas sim foram engendradas logo estruturadas por mais de trezentos anos.

Um homem negro – me refiro a esse fenótipo pois me coloco como próprio objeto de estudo –  quando adentra os espaços de lazer cultivados pelas classes médias e altas sente estranheza pois seu próprio existir está emaranhado a labuta, as vezes só e somente a ela.

Há espaços comuns para nós, espaços esses que estão ligados ao trabalho e ao sustento diário, não ao lazer. Quando se cresce em um lar interracial, ou seja, seus pais possuem etnias distintas, é comum que a diferença se evidencie sem medir esforços. Os brancos de um lado aproveitam a cerimônia, o festejo de um casório familiar por exemplo, enquanto a parcela negra ocupa o espaço do servir, da servidão.

Parte dessa dinâmica se dá pois não fomos nem reparados historicamente nem devidamente aceitos no mercado de trabalho moderno, a compra de nossa mão de obra através dos salários mais baixos é uma perspectiva real.

No meio das raízes das árvores genealógicas dos negros e negras desse país há correntes, ciclos de descaso, que quando quebrados, por meio da luta de classes, conduzem ao surgimento de afloramentos, isso é emancipação étnica.

A CLT deu-se ante um golpe:

No dia 1 de Maio de 1943 o trabalhismo de Vargas atinge seu mais alto populismo, são consolidadas as leis do trabalho dentro das reivindicações brasileiras. Leis essas que até hoje não foram minimamente revistas tendo como plano de fundo o nosso século XXI junto de seus avanços tecnológicos. Na época o congresso encontrava-se de portas fechadas, vivíamos um golpe de estado, a ditadura varguista, hoje o que nos resta? A que pé está a extrema direita? Conseguimos frear a ótica neoliberal?

Defendo aqui que possamos consolidar nossa jovem democracia a partir do rompimento de tudo aquilo que é arcaico, que dificulta a vida e suas sadias sociabilidades. Vejam, em algum momento todos nós partiremos, isso sim contém objetividade.

O trabalho é inerente a humanidade, segundo Marx. Para que haja sobrevivência é necessário que haja trabalho. Mas a bandeira pela saúde em relação a vida, ao viver, essa sim me parece a melhor bandeira possível. Por isso declaro, meu partido é a vida e tudo aquilo que não a deprecia, ampla defesa aquelas coisas todas que a enriquecem.

* Renan Freire é músico e estudante de história na Universidade Estadual do Norte do Paraná.