Para ler quando a pandemia terminar (EM 2021)
Por Marcelo Cardoso
Há cerca de um ano, durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, em 2020, eu ouvia a todo instante, nos noticiários, que o planeta não seria mais o mesmo após as medidas adotadas pela população e pelos governos para minimizar a velocidade de contaminação imposta pelo vírus. Em entrevistas, depoimentos e análises de cientistas, sociólogos, psicólogos, entre outros especialistas em “vida humana”, cada qual com sua expertise, anunciava um novo paradigma de comportamento de uma sociedade que se transformaria. Estariam eles certos? Em qual nível ocorreram as mudanças e até que ponto teriam vindo para ficar?
Por ora, o que me parece correto afirmar, é que houve um incremento de práticas e de comportamentos há tempos identificados por pesquisadores que estudam os efeitos da utilização dos aparatos tecnológicos em ambientes digitais. Há uma constante reconfiguração humana em função das práticas associadas à tecnologia e aos ambientes por ela permeados. Significa dizer que já estávamos mudando o nosso jeito de agir, de pensar, de nos relacionar, de sentir, de professar a nossa fé ou o amor, ou seja, a nossa cultura sempre esteve em transformação, mas pode ter recebido um empurrão após a passagem da Covid-19 pelo planeta.
No período de quarentena (que ultrapassou de longe os 40 dias) houve incremento das relações sociais a distância, notadamente por meio de softwares de videoconferências ou similares que se tornaram mais populares ainda. Assim, as relações interpessoais, por esta perspectiva, não eram novidade para parte da população: adolescentes em seus quartos, executivos durante videoconferências, professores do sistema de ensino a distância ou o trabalhador que atua no regime home-office, todos já enxergavam o mundo a partir de um outro ponto de vista.
Durante a crise do coronavírus, porém, cresceu o número de pessoas que, quase privadas de liberdade, começaram a conhecer e a utilizar mais as ferramentas de comunicação a distância. Foi, sem dúvida, um bom negócio para as empresas proprietárias do Facebook, Google Hangouts, Instagram, Messenger, Microsoft Teams, Skype, WhatsApp, Zoom, só para citar os aplicativos que se tornaram os novos queridinhos, principalmente da classe média brasileira.
Para trabalhar ou enfrentar o tédio, a solidão e a saudade, entraram em campo a boa vontade e a criatividade. Valia marcar uma live entre casais para jantar juntos uma pizza e com direito a vinho ou cerveja, mesmo que cada par estivesse em lados extremos da cidade. O popular “namoro virtual” – que já não era uma novidade – foi o possível para muita gente em tempos de quarentena. E até baladas eram realizadas pelas telas dos smartphones, todas repletas de rostos jovens, cada qual tentando conquistar a atenção do seu “crusch” que poderia estar do lado, em cima ou abaixo, dependendo da posição na tela.
Artistas, músicos, esportistas, jornalistas, produtores, entre outros, promoveram eventos que oscilaram entre o marketing pessoal e atos com resultados verdadeiramente solidários como o One World: Together At Home, transmitido por emissoras de TV em escala mundial, organizado pelo Global Citizen e pela Organização Mundial da Saúde com a curadoria da cantora e compositora pop norte-americana, Lady Gaga.
O “One World” arrecadou quase US$ 130 milhões (cerca de R$ 650 milhões (afinal, o dólar nunca mais ficou abaixo dos R$ 5)). O dinheiro obtido com doações foi repassado a trabalhadores da área de saúde, que atuaram no combate à pandemia, e a outros fundos cujas funções eram humanitárias. Durante os “pocket shows in door” as personalidades midiáticas fizeram a alegria de milhões (ou seriam bilhões?) de espectadores.
E, simbolicamente, de uma hora para outra, não havia tantas diferenças entre o real e o virtual – como gostaria o filósofo e antropólogo Pierre Lévy – pelo fato de os metros terem sido substituídos, em certa medida, pelos bits que auxiliaram na construção de complexas redes de comunicação. O que se viu foi a intensificação da fusão entre o ser humano e a tecnologia, resultando na atribuição de um novo sentido à quarentena.
Ao menos durante o período da pandemia de 2020/2021 os críticos dos males que a tecnologia pode causar tiveram de reconhecer que, desta vez, ela nos fez sentir humanos, aqueles de carne e osso, do “olho no olho”, mesmo que por meio de encontros midiatizados a quilômetros de distância.
São Paulo, 21 de março de 2021.
Marcelo Cardoso atua e trabalha há mais de 30 anos como jornalista; é professor e pesquisador em Comunicação, Áudio e Jornalismo Esportivo, além de sócio-fundador das empresas LM Comunicação e Ensino e MS Produção Sonora.