Jornalismo, humanização e o racismo estrutural

“O ser humano como ponto de partida e de chegada na narrativa jornalística”

Por Jorge Kanehide Ijuim
Com a colaboração de Géssica Gabrieli Valentini

Os recentes protestos antirracistas nos Estados Unidos não estão restritos à morte de George Floyd por um policial branco, em Mineápolis. Parece ter sido uma gota d’água numa longa história de dominação sobre as populações fragilizadas – afro-americanos, latinos, pobres. A exemplo do Brasil, o continente norte-americano também estabeleceu suas bases de desenvolvimento no sistema escravocrata. Ali também, o sucesso econômico se deveu à exploração da mão de obra de negros africanos.

A abolição da escravatura foi sangrenta. Só foi oficializada quando o presidente Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação, e em 1865, com a aprovação da Décima Terceira Emenda à Constituição americana, abolindo a escravidão em todo o território dos Estados Unidos.

A luta pela conquista dos direitos civis igualmente não foi fácil. O preconceito ao que se considerava um ser inferior impôs ao afro-americano normas e leis especiais, com avanços e retrocessos, por décadas. Desde a limitação dos espaços públicos, o acesso à educação e aos postos de trabalho, até a superexposição perniciosa, como relatou o The New York Times, numa edição de reminiscências, em 2006.

Ota Benga

Wildlife Conservation Society

Em 1916, os nova-iorquinos que foram ao zoológico do Bronx tiveram uma nova atração na Casa dos Macacos. Um homem negro e pequeno compartilhava da mesma jaula dos primatas. Era Ota Benga, um pigmeu congolês, na época com 23 anos. Sim, um ser humano negro e pequeno foi exibido como atração num zoológico entre os macacos, pela negociação entre um antropólogo e o diretor daquele parque. Os jornais noticiaram a curiosidade de várias formas, do tom grotesco à situação exótica. Veja a reportagem.

Como e em que medida a imprensa contribui para a manutenção – e a amplificação – das diferenças?

Não à toa, ainda que os negros representem 13% da população norte-americana, os homens negros são encarcerados em quase seis vezes a taxa de homens brancos. A polícia continua a matar negros em números desproporcionais: são 2,5 vezes mais sujeitos a serem mortos pela polícia do que os brancos. Uma pessoa negra desarmada está cinco vezes mais sujeita a ser morta pela polícia do que uma pessoa branca desarmada.

Portanto, o assassinato de George Floyd não foi casual, é fruto do que conhecemos por racismo estrutural. Está naturalizado em grande parcela da sociedade e ainda levará tempo para ser desconstruído.


 

O Brasil não desfruta de história diferente. A colônia portuguesa da América do Sul foi construída com o suor e o sangue do negro africano. Sob o signo do parasitismo imperialista, no dizer de Abdias do Nascimento, o negro africano “plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca”.

O genocídio de afrodescendentes e de indígenas não terminou com a lei Áurea, em 1888. Libertos, foram jogados à rua sem acesso à moradia, à educação e aos postos de trabalho. Como nos lembra Renato Ortiz, uma política de migração europeia, a partir de 1850, pretendeu “branquear” a população brasileira, pois acreditava-se que os negros e os indígenas iriam desaparecer.

Conforme a classificação do IBGE, entre negros e pardos hoje são 53,63% da população brasileira. Como assevera Jessé Souza, esta extensa faixa da sociedade experimenta condições de subcidadania, uma singularidade brasileira. São a maioria pobre e marginalizada do país. Continuam com menor acesso ao ensino formal e ao mercado de trabalho, com consequências semelhantes aos irmãos norte-americanos. As políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam, via de regra, contra a população negra e pobre. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Conforme o Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil, publicado em 2015, em 2012 havia 292.242 negros presos e 175.536 brancos, ou seja, 60,8% da população prisional era negra.

A violência policial também é real e efetiva nas ruas brasileiras, em geral nas comunidades empobrecidas, de maioria negra. No Estado do Rio de Janeiro, os pretos compõem 11,1% da população, mas são 32,4% dos mortos pela polícia. Entre os brancos o quadro se inverte: são 54,5% da população e 19,7% dos mortos pela força policial. Já para os pardos, 34% da população do Rio de Janeiro, a incidência de mortes é de 21,8%, também acima da porcentagem registrada entre brancos. Em São Paulo, segundo o relatório do PNUD, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes para a população negra (pretos e pardos) é de 46,3 (1,9 vez a dos brancos). Morte por balas perdidas parecem fazer parte da rotina nas comunidades do Rio de Janeiro (pretos e pardos pela categorização do IBGE).

João Pedro Mattos Pinto

João Pedro Mattos Pinto

As operações policiais frequentes em geral sacrificam vidas de crianças negras. O garoto João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, foi uma das vítimas dessa violência policial, em maio. Numa suposta perseguição a traficantes, policiais saltaram o muro da casa em que morava e dispararam ao que estava a sua frente. Atingiram mortalmente João Pedro, que engrossa as estatísticas dos que perderam a vida em operações policiais no estado do Rio. Só em 2019, foram 5 crianças e 19 adolescentes. Assim, o genocídio do negro, como lembraria Abdias do Nascimento, continua.

Por que a morte de negros estaria naturalizada em nosso país?

Elza Soares canta a indignação dessa realidade. Ouça Elza Soares.

Elza Soares

Elza Soares

A carne mais barata do mercado é a carne negra
Só-só cego não vê
Que vai de graça pro presídioE para debaixo do plástico

E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquíatricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Dizem por aí […]

 

A pesquisadora Lélia Gonzalez reflete com humor irônico essa naturalização:

A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo, é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por quê? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha, pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados. Leia mais.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos nos ajuda a compreender esse quadro. Ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em vários artigos, destaque o direito à dignidade, este princípio está muito mais nos discursos do que na prática cotidiana. O pensador lusitano alerta que o desprezo à igualdade e à diferença tem origem no que chama de Pensamento abissal, que remonta a época das grandes navegações. Por este pensamento, a supremacia de um homem ideal – europeu, branco, burguês, ilustrado e munido de armas – tensiona com o diferente, o conquistado. Esta lógica, portanto, ao criar uma linha imaginária abissal, gera distinções entre a metrópole e a colônia, o civilizado e o selvagem, o Ocidente e o Oriente, o Norte e o Sul, o branco e o negro. A crueldade dessa linha abissal é a impossibilidade de copresença [coexistência] e, assim, promove a exclusão e a violência.

No caso da imprensa brasileira, este pensamento abissal parece estar tão encrustado em parcela significativa da população. Além do racismo encontrar porta-vozes nas redes sociais, parte significativa da imprensa brasileira e de seus jornalistas colaboram para a estruturação e a amplificação do racismo. Alguns de forma intencional, outros, por mais que tentem acertar, escorregam ao ignorar culturas diferentes. Em minhas pesquisas recentes, tenho observado que o preconceito não se restringe ao afrodescendente.

Quando um repórter menciona o termo “africano” cinco vezes numa matéria, a partir do título, para se referir a uma pessoa de Cabo Verde… ou quando o jornalista cita “haitiano” várias vezes durante a reportagem para caracterizar um suspeito de agressão… são evidências de que, no fundo da consciência, tal repórter faz uma associação infeliz: é africano, portanto negro… é haitiano, portanto negro. Veja as reportagens:

Por isso, quando Lélia Gonzales diz “Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão”, suas palavras são mais que de uma ativista, mas um olhar antropológico que escancara o quanto os meios de comunicação podem intensificar e estruturar o racismo.


 

Como indagaria o bom amigo Manuel Carlos Chaparro, onde está XIS da questão?

Tenho defendido desde 2002 a possibilidade de um jornalismo humanizado ou humanizador. Como já escrevi anteriormente,

…em sua relação com o mundo, [o jornalista] esvazia-se de preconceitos de modo a captar, ver e enxergar, ouvir e escutar, questionar e sentir. Munido de uma racionalidade criativa e da emoção solidária, assume a postura de curiosidade e descoberta, de humildade para sentir as dores do mundo (Dines), de empatia, de solidariedade às dores universais (Medina). Assim, seu trabalho respeita as diferenças de qualquer natureza e se isenta de prejulgamentos, de preconceitos e estereótipos. Sua narrativa adquire caráter emancipatório, pois, de forma humanizada, seu ato é humanizador (2002, 2012).

Por isso, entendo a potência do jornalismo para ter o ser humano como ponto de partida e de chegada. Se a imprensa pode ajudar a manter e a amplificar estigmas e preconceitos, pode também potencializar mudanças estruturais. Para a produção de narrativas humanizadas este fazer começa antes da pauta, na consciência do ser jornalista. Humanização, para Paulo Freire, exige engajamento com a realidade, cumplicidade com o outro – solidariedade. Se negar este compromisso e esta solidariedade, o jornalista – alienado dos valores universais – ignora também a complexidade dos acontecimentos que deve investigar. O XIS da questão, portanto, está na elevação da nossa consciência [nós jornalistas] para contribuir, por meio do nosso trabalho, para a elevação da consciência da sociedade. Esta ampliação e elevação da consciência podem quebrar as heranças eurocêntricas de um pensamento abissal. Podem cooperar para a desestruturação do racismo.

 

Para conhecer mais:

Alma Negra – Jornalismo Preto Livre: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/negros-e-perifericos-sao-os-mais-afetados-pelo-aumento-da-populacao-carceraria-no-brasil

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao

Human Rights Watch – Relatório Mundial 2018: https://www.hrw.org/pt/world-report/2018/country-chapters/312941

Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil 2015: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/01/Mapa_do_Encarceramento_-_Os_jovens_do_brasil.pdf

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Versão encaminhada por Jorge Kanehide Ijuim especialmente para Alterjor a partir do conteúdo disponível em seu Blog, clique aqui para ler a versão integral.