A distrofia muscular de Duchenne é uma doença genética que afeta humanos, quase sempre do gênero masculino. Ela ocorre devido a uma mutação cromossômica no gene responsável pela expressão de uma proteína chamada distrofina. Na ausência ou deficiência dela, a membrana sarcoplasmática fica instável e susceptível a lesões durante as contrações musculares. Algumas espécies de animais, como o cão GRMD (Golden retriever muscular dystrophy) são utilizados como modelo de estudo para a doença. A fim de encontrar uma terapia para a enfermidade, a médica veterinária Dilayla de Abreu utilizou o modelo canino para averiguar, em seu doutorado pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, se células tronco mesenquimais seriam capazes de modular a resposta inflamatória.
Apesar de ser a mais comum entre todas as distrofias, ela é bastante rara. Em laboratório, os cães são um modelo de estudo na doença em humanos devido a maior facilidade de manejo que apresentam. “Comparando-se o curso da doença, eles são mais semelhantes fisiologicamente aos humanos do que outros animais como camundongos, por exemplo”, explica a pesquisadora. Foi utilizado o Golden retriever porque, além de ser a raça a qual o canil da USP possui, o seu peso pode ser equiparado a de uma criança humana de cinco ou seis anos — que, em muitos casos, já começa a perder sua mobilidade. “A distrofia é uma doença progressiva, generalizada e fatal em idade bastante precoce, provocando a morte de paciente principalmente por complicações cardiorrespiratórias”, completa.
Consequências
A distrofia se manifesta desde o nascimento do animal. Ela causa uma destruição das fibras musculares e o processo acaba sendo generalizado. “Como coração e diafragma também são músculos, a maioria dos pacientes acabam falecendo por complicações cardiorrespiratórias”, relata Dilayla. Além disso, é uma doença crônica e progressiva, ativando duas vias do sistema imune: uma que estimula a inflamação e outra a qual tenta limitar essa inflamação, fazendo um processo de degeneração e regeneração. Isso faz com que os animais sofram processos inflamatórios constantes devido às constantes lesões.
Tendo isso em mente, a pesquisadora investigou em seu estudo como o processo de retardar a degeneração do tecido poderia ser favorecido por uma resposta imunológica. Sua intenção foi tentar averiguar se a célula tronco mesenquimal, por ter uma característica chamada de imunomoduladora, seria capaz de modular a resposta inflamatória desses cães afetados pela distrofia e, consequentemente, retardar a progressão da doença. Para tanto, coletava amostras biológicas de duas categorias de animais — daqueles do próprio canil, os quais possuíam a doença genética, e de cães saudáveis os quais seus donos dessem permissão para que houvesse a coleta — para fazer uma comparação in vitro.
Terapia com células tronco
No trabalho, foram usadas células tronco de coleta de medula óssea de fetos caninos obtidos em campanhas de castração. Essas células eram cultivadas em placas, com meio próprio. Após esperar até 48 horas, essas placas eram lavadas e apenas as células que haviam aderido a elas eram utilizadas. Novamente eram cultivadas e, ao atingir a confluência de 70%, elas eram plaqueadas. O sangue coletado dos cães pertencentes ao estudo era centrifugado para separar apenas os monócitos e os linfócitos, nuvem de células as quais eram de interesse para a médica veterinária. Ambas também eram colocadas em placas de cultivo.
Os monócitos obrigatoriamente se transformariam em macrófagos e adeririam à placa, enquanto os linfócitos ficariam em suspensão. Depois de cerca de cinco dias de espera, as células eram retiradas e separadas. Ambos eram, separadamente, colocados em cocultivo com as células tronco mesenquimais. Em seu mestrado, a pesquisadora havia relatado um aumento significativo de linfócitos T helper, responsáveis por auxiliar a resposta inflamatória, em animais com a doença. Por isso, pretendia aumentar o número dos linfócitos T reguladores, os quais ajudam no controle do processo inflamatório
Dilayla avaliava, por fim, o material sobrenadante em ambos cocultivos. “No caso dos linfócitos, utilizei duas diferentes concentrações de células tronco mesenquimais”, explica. Em ambos os casos, a pesquisadora conseguiu averiguais que as células tronco foram capazes de aumentar a quantidade de linfócitos T reguladores, principalmente no material no qual havia maior concentração delas. “Neste caso, consegui comprovar minha hipótese inicial, mas não aconteceu o mesmo com os macrófagos”, relata. O objetivo era pesquisar se havia alteração de óxido nítrico — o qual, segundo a médica veterinária, é bastante importante nos quadros da distrofia. Mesmo observando que a produção do óxido foi alterada, o resultado não foi significativo estatisticamente.
O estudo de Dilayla, mesmo que não tenha sido feito diretamente em seres vivos, pode criar um novo tratamento de sintomas clínicos, tanto para cães quanto para humanos afetados pela enfermidade. “A distrofia muscular de Duchenne é uma doença muito dolorosa. A evolução dela é bastante rápida, muitas vezes não permitindo que pessoas e animais cheguem à fase adulta”, explica. Trabalhar em laboratório com uma terapia celular que possa melhorar as condições de vida daqueles os quais possuem a mutação genética é, para a pesquisadora, recompensador e dá uma razão maior para a manutenção da vida dos cães que, na natureza, não teriam sobrevivido sem os recursos cujo Canil possui.