Jornaleca

Ensaio com base na peça teatral “A Vida Passou Por Aqui”

TEATRO

A peça e a diversidade

A visita de um amigo de anos à casa de repouso em que vive Silvia é o ponto alto de sua rotina. Rir e recordar momentos que passaram juntos faz a senhora que se recupera de um AVC sentir-se viva novamente. Assim, inicia-se a renomada peça “A Vida Passou Por Aqui”, dirigida por Alice Borges.

Durante o mês de julho, as apresentações ocorrem no Teatro J. Safra, em São Paulo, após 6 anos em cartaz no Rio de Janeiro. O espetáculo conquistou o prêmio APTR de melhor texto, além de ter sido indicado para o prêmio Cesgranrio de Teatro e APTR na categoria de melhor atriz.

Claudia Mauro, no papel de Silvia, impressiona o espectador ao transformar-se, em poucos segundos, de uma idosa que apenas detém movimentos de metade do corpo à uma jovem agitada e dançante. A atuação sensível advém de uma relação íntima com a trama. Em entrevista, Mauro revela que o texto, além de ser de autoria própria, é baseado na história de vida de sua mãe.

“Floriano, por exemplo, existiu mesmo”, relata Claudia Mauro em entrevista após o espetáculo [Imagem: Arquivo Pessoal/Marina Giannini]

Interpretado por Édio Nunes, Floriano é o amigo de Silvia e único personagem em cena além dela. Morador do morro e apaixonado pelo samba de gafieira, o carioca é um otimista nato e está sempre bem humorado. Os personagens, todavia, apresentam-se aos poucos durante a peça. Silvia, professora e artista plástica residente da parte nobre do Rio, conheceu o amigo na Secretaria de Educação, onde ele trabalhava como faxineiro. Começa, então, uma amizade baseada em sinceridade, ajuda, risadas e muita dança.

Ao intercalar cenas na casa de repouso ao cotidiano vivido, a peça flui entre presente e passado. Este não se apresenta de maneira saudosista, mas em sua complexidade, fazendo o espectador acompanhar desde momentos alegres da dupla, até as tristezas de um casamento em crise. Assim, Flo – como apelidado pela amiga – busca recuperar parte da memória perdida de Silvia e fazê-la enxergar a velhice com ânimo.

A peça conta apenas com três cenários fixos que, de acordo com a iluminação, ora estão isolados, ora se complementam [Imagem: Arquivo Pessoal/Sofia Zizza]

Um banco, uma mesa e uma prateleira se transformam em sala de estar do apartamento no Leblon, jardim da casa de repouso, pista de dança, sítio em Passa Três e até escritório, a depender do momento do enredo. O jogo de luz e a sutil mudança nos figurinos – como retirar um chapéu ou um lenço – auxiliam na percepção de um novo tempo e espaço, mesmo contando com apenas dois atores.

O enredo da peça é repleto de musicalidade, guiando o espectador até os anos 70, em quase cinco décadas de amizade. A trilha sonora é composta, em sua maioria, por sambas brasileiros e se faz presente principalmente nas mudanças de cena, ao marcar a passagem do tempo. Há também diversas passagens coreografadas em que os dois atores fazem um verdadeiro espetáculo de dança. A música, em especial a gafieira, atua como um refúgio para os dois personagens, proporcionando momentos de alívio e escape da realidade.

Ainda que a diversidade não seja o eixo central da trama, a amizade entre Silvia e Floriano é exemplo de sua prática. Uma mulher branca da burguesia carioca se tornar amiga do faxineiro, um homem negro do morro, é uma atitude que mesmo sem intencionalidade opõe-se à luta de classes e à estrutura racista da sociedade brasileira. O mais interessante é notar como cada um cresce com a relação; enquanto Flo auxilia Silvia a passar por momentos de depressão, ela oferece uma bolsa para o amigo fazer cursinho e seguir seu sonho de tornar-se escritor.

A partir de estudos decoloniais, Gislene Aparecida dos Santos, coordenadora do grupo de pesquisa nPeriferias do IEA-USP, elucida o conceito de racismo estrutural. A pesquisadora explica que os estados modernos só existem da maneira como conhecemos hoje devido ao processo de colonização que foi pautado na subalternização de pessoas negras. Uma vez que a lógica econômica constituiu-se a partir dessa violência institucionalizada, não seria mera coincidência Floriano – personagem que existiu para além das cortinas do teatro – não ter conseguido acessar o ensino superior.

Relação com os conceitos da comunicação 

Em relação aos gêneros jornalísticos, é possível compreender “A Vida Passou Por Aqui” como a encenação de um texto que poderia certamente ser uma crônica. Apesar de não se tratar de um evento informativo específico, o espetáculo permeia diversos temas cotidianos, em formato de narrativa, apresentando acontecimentos capazes de informar aqueles que assistem. Assim como uma crônica, a peça explora os aspectos comuns da vida, a partir de uma linguagem simples, com espaço e personagens reduzidos.

Além disso, há muitas vezes o contraste de opinião dos dois personagens a cerca de uma ocasião ou fato, constituindo um gênero opinativo. Para comprovar um ponto de vista sobre determinada situação, ambos argumentam a partir de suas experiências de vida.

No âmbito da comunicação, a peça pode ser considerada um grande diálogo entre os dois personagens. De acordo com os diálogos de Platão sobre Sócrates, a conversa seria a principal forma de obtenção de conhecimento. Sócrates afirmava tal premissa porquanto em um diálogo os interlocutores podem expressar seus pontos de vista e fazer questionamentos sem uma hierarquia entre emissor e receptor e sem a persuasão de uma ideia sobre a outra. 

No entanto, durante as cenas observa-se uma dinâmica um pouco diferente da colocada pelo filósofo. Mesmo dentro de um diálogo constante, com a presença de indagações e argumentos, percebe-se que há um objetivo de persuasão de Floriano para com Silvia. Entretanto, diferente da persuasão negativa e limitadora entendida por Sócrates, Floriano tem boas intenções ao apresentar outra perspectiva à Silvia. Isso pois, ele procura fazê-la enxergar a vida com mais alegria e leveza, sem a intencionalidade de opressão ou alienação daquele que escuta.

Por Marina Marques de Azevedo Giannini e Sofia Croisfelt Zizza de Camargo

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