Identidade X: Uma peça, acima de tudo, sobre amor
Aqui a expertise artística é colocada em prática para criar um profundo romance urbano contemporâneo
TEATRO
Eva, uma garota de programa, encontra Max, uma pessoa em situação de rua, em frente ao seu prédio, em São Paulo. Ela convida Max para dentro de seu apartamento, para tomar um banho, trocar de roupa, comer algo… O que iniciou como um ato de empatia, se desenrolou como uma bonita e complexa história de amor. A peça “Identidade X”, que esteve em cartaz no teatro Itália Bandeirantes durante o primeiro semestre de 2023, se dispõe a sair do convencional e criar um romance que explora os fenômenos sociais na cidade grande e as questões mais internas de identificação pessoal. Em entrevista para o Jornaleca, os participantes do elenco e da produção da peça, Marcelo Gomes, Ellen Bueno e Arthur Chermont contam sobre a sua participação e os desafios que superaram.
Comove e reflete
Eva (Ellen Bueno) leva uma vida noturna ativa e mantém a sua renda por meio da prostituição. Ao encontrar Max (Marcelo Gomes), um amor desperta, o grande motor da peça. Ambos os personagens são produtos do sistema urbano moderno: Eva vê como sua opção tradicional de trabalho a mais prática e capaz de suprimir as suas necessidades, mas se cega para ver o como isso afeta o seu corpo e o seu psicológico; Max, dito como uma pessoa culta e apaixonada, enxerga nas ruas a sua possibilidade de liberdade e autoconhecimento sobre suas questões de gênero. Junto com eles, Didi (Arthur Chermont), um ator que faz papel de drag queen, auxilia o desenvolvimento dos personagens.
No decorrer da obra, Max concorda em contribuir financeiramente com Eva em alguns trabalhos como modelo fotográfico. Eva acaba invadindo a privacidade de Max, que decide fugir da relação por um tempo. Quando retorna, revela ser uma pessoa de gênero fluido, e que isso influenciou o seu exílio para as ruas paulistas.
A abordagem da obra segue um caminho distópico, onde os problemas vivenciados pelas personagens são evidenciados fortemente. As situações como as questões do trabalho precarizado e a insegurança social que as garotas de programa e as pessoas em situação de rua passam, bem como os conflitos morais trabalhados, são constantemente retomados e forjam a narrativa da peça.
Técnicas dramáticas
A peça possui certas peculiaridades em relação ao estilo dramático tradicional. Certos objetos são projetados para possuírem um valor teatral específico que não o seu conceito cotidiano. Por opção dos diretores, os atores se mantiveram o tempo todo em cena: nenhum momento eles saíram do palco, o que não significa que estavam, de fato, participando fisicamente do momento atuado.
Uma das construções utilizadas foi o uso de cadeiras para simbolizar a evasão do ambiente. Quando um ator se senta em uma das quatro cadeiras dispostas no palco, significa que aquele personagem saiu do ambiente. A elevação desta técnica está na ideia de que, com o passar do tempo, o espectador consegue saber exatamente onde cada personagem está sem haver mudança no cenário ou a saída física dos atores do palco. Para acompanhar esse movimento, o uso das luzes apresenta um efeito semelhante, já que os destacados pelos holofotes são o centro do ato.
No palco, dois microfones são dispostos, um ao centro e outro ao canto, fora do campo principal da visão. Eles servem como um filtro de realidade: tudo aquilo comunicado pelos personagens nos microfones são falas direcionadas ao público, geralmente com a intenção de corrigir visões problemáticas denunciadas pela peça ou passar testemunhos e falas de pessoas reais que estiveram em situações semelhantes. Essa construção possibilitou cenas de grande representação simbólica para a peça, como a quebra da quarta parede para a discussão sobre expressividade de gênero e as cenas musicais protagonizadas pela personagem Didi.
Identidade X: um marco para os direitos humanos
A peça faz parte de um projeto de uma tríade artística composta pela obra teatral, uma exposição fotográfica e uma série de encontros de pessoas das comunidades abordadas nos personagens. A premissa polissêmica, partindo do campo dialético, contribuiu para a construção de Max, Eva e Didi pela busca de pessoas reais, com uma variedade de discursos e experiências que complementam fortemente a obra. Dessa forma, as lutas e as histórias citadas em Identidade X são pautadas no cotidiano de dezenas de pessoas que representam comunidades inteiras.
Segundo Marcelo, o projeto da peça data de cerca de 15 anos. Durante esse tempo, a narrativa tomou diversos rumos diferentes. Inicialmente, Max foi escrito como um personagem pertencente da comunidade Trans; com o passar dos anos, o tópico da não binaridade entrou em voga, e foi decidido emplacar Max como uma personagem de gênero fluido. Essa passagem se relaciona com os princípios de Otto Groth, já que, semelhante ao trabalho jornalístico, a construção da narrativa se adaptou com o avanço das discussões sociais e de gênero (Atualidade), sempre buscando se atualizar sobre as temáticas (Periodicidade), de maneira plural e ampla (Universalidade) e de forma didática e de fácil apreensão do público (Difusão coletiva).
A performática das drag queens também foi abordada na obra, incorporada pela personagem Didi. Segundo Júlia Valeri, em seu texto para o Jornal da USP na coluna Diversidades, “ao contrário do que muitos acreditam, a arte drag não está diretamente relacionada à identidade de gênero ou orientação sexual. Qualquer pessoa pode ser uma drag queen”. Porém, com o tempo, a personalidade da drag queen se tornou um símbolo de respeito a comunidade LGBTQIAPN+, visão política essa trabalhada na obra. Confira mais trechos da nossa entrevista aqui.
Por João Chahad e Diogo Spinelli