Crônicas

O privilégio de assistir

Faltava menos de meia hora pro início do jogo e eu ainda a caminho, indo assistir à partida contra o México na casa de uma amiga. Dentro do carro, estava com a minha namorada, ambos caracterizados com as cores brasileiras e munidos de meia dúzia de acessórios. Nas ruas do interior paulista, um considerável fluxo de pessoas verde-amarelo-azuis vagueava de um lado para o outro, provavelmente se deslocando para ver, em algum local, o Brasil em campo.

“Será que em todo lugar é assim?”, indagou Fernanda, referindo-se à mobilização em massa em prol da torcida para a Seleção. A pergunta despertou em meus pensamentos algumas perspectivas. ‘Que outro evento, se é que existe, tem o poder de união como uma Copa do Mundo? Como será que ficam as ruas nos 90 minutos de bola rolando?’

Só que aquele questionamento pairou na minha cabeça por outro motivo. Não fiquei refletindo acerca da situação de outros países ou em como a Copa do Mundo transcende a experiência de torcer. Me centrava na nossa realidade. Independente de sexo, raça, idade, gênero, ideologia, clube do coração ou opinião sobre a Argentina, a grande maioria dos brasileiros se reúne para torcer e assistir aos certames do Brasil no Mundial.

Mas será que realmente é assim?

Com todas a pluralidades da nossa população, assumir que toda a torcida do Brasil partilha de um mesmo proceder em dia de jogo não seria uma simplória tentativa de simplificação? Uma generalização que se abdica de considerar, dentre tantos aspectos, uma variedade de circunstâncias e de condições factuais.

Como deve ser, para alguém apaixonado pela Seleção, não assistir à uma partida do Brasil no torneio?

Ao mesmo tempo em que o país “para” nessas ocasiões, ele continua em “movimento” para muitos. Certos serviços não podem se dar ao luxo de interromperem seus funcionamentos, seja durante todo o dia, período ou mesmo somente nos horários de jogos.

Além disto, a conciliação entre as diversas responsabilidades é também uma questão relevante nessa linha de raciocínio. Não são todos que são liberados ou que podem deixar o que estão fazendo para assistir Neymar e companhia atuando na Rússia.

São os dois lados de uma mesma moeda: a “coroa” simboliza as pessoas reunidas, seja as que estão em casa ou nos espaços públicos, aparecendo nas transmissões de televisão; enquanto “cara” diz respeito à quem continua no cotidiano normal. Estes, podendo ter ou não o “privilégio’ de um monitor para conseguir acompanhar a exibição da Seleção juntamente com a realização de suas incumbências.

Enquanto no trajeto, devo ter visto gente nas duas situações, se encaminhando tanto para assistir ao espetáculo quanto para realizar as ações costumeiras do dia a dia. O interessante é que, para ambos os destinos, a vestimenta “auriverdeceleste” representativa das cores brasileiras era praticamente unânime, quase como uma marca registrada ostentada pelos torcedores.

Lembrei-me dos jogos que assisti em São Paulo e do perfil do Metrô naqueles dias. No semblante da multidão de usuários , nunca tinha visto tantos pontos amarelos, azuis e verdes sobressaindo tanto antes. Este episódio singular se manifestava tanto antes como depois do horário das partidas, sempre com a paramentação de peças nas cores características, e independente da pessoa poder ou não assistir o Brasil em ação.

Durante o jogo, pude torcer, vibrar, sofrer e sentir toda a emoção dos lances. Pude estar reunido e comemorar os gols do Neymar e o do Firmino, este já no apagar das luzes da partida. Eu pude assistir a vitória e a classificação da Seleção.

Mas e quem não pôde?

Quem, pela razão que for, esteve impossibilitado de exercer a sua torcida e de ter o prestígio de ver o Brasil jogar. E que, mesmo sendo um evento que acontece somente de quatro em quatro anos, teve obrigações a serem cumpridas bem no horário da partida.

Estes fazem parte do conjunto de torcedores tácitos. Não são os que aparecem, jogo a jogo, nas conglomerações de torcedores exibidas pelas emissoras, e sim aqueles que acabam sendo preteridos e segregados da “festa”. Estagnados, não só de participar e de assistir, como também de sentir.

Nesta sexta, enquanto uns terão uma antecipação do final de semana, muitos continuarão com seus afazeres ordinários, fadados a acompanhar indiretamente a disputa contra a Bélgica. Destinados a só saberem dos lances pelo intermédio de algum meio ou de outra pessoa. A diferença se dá justamente no privilégio da experiência.

Se (e quando) o Brasil avançar na competição, o mesmo se repetirá. Eu, como integrante do primeiro grupo, notei que nunca havia pensado nisso antes.

São em momentos como este que se tem a dimensão de que nunca se é “apenas” futebol.

André Martins Gonçalves

Pesquisador PROCAD USP-UFMS-UFRN em Iniciação Científica

Título: Crônicas Esportivas - A Seleção Brasileira na Copa do Mundo da Rússia 2018