O contínuo, o locutor de rádio e o campeão brasileiro
Por Marcelo Cardoso
Nos anos 1980, em Santos, cidade no litoral de São Paulo, um adolescente, com idade entre 13 e 14 anos trabalhava como contínuo (office-boy) em um escritório de advocacia. O rapaz consumia vorazmente, nas horas vagas, leitura sobre futebol com gosto especial pela revista Placar, a publicação esportiva mais famosa da época.
Em casa, após tomar banho e jantar, ouvia os jogos da rodada pelo seu “radinho de pilha”. Eram disputas do Paulistão ou das Taças de Ouro e de Prata, correspondentes aos atuais Campeonatos Brasileiros das séries A e B. As notícias sobre o seu time do coração vinham, quase sempre, por meio de rápidas intervenções do jornalista que anunciava os gols e o placar da rodada, afinal, a equipe era de outro município.
Aos domingos o programa era o mesmo: de tarde ouvia os jogos pelo radinho à pilha, muitas vezes fazendo a “lição de casa”. As atenções eram para um time do interior, o que destoava dos demais membros da família, do bairro, da escola, enfim, da cidade. Em Santos era normal torcer pelo alvinegro praiano, pelo rubro-negro carioca, recém campeão mundial, ou pelos consagrados times da capital: Corinthians, Palmeiras ou São Paulo.
O jovem, porém, remava contra a maré e pagava caro pela ousadia ao ouvir zombarias: “afinal, por qual motivo ele torce para um time de Campinas?” A cidade está a 170 quilômetros de distância da sua terra natal. O fato é que o guri começou a gostar de futebol em 1978, ano em que o Guarani Futebol Clube montou um time que dava gosto de ver. Com Neneca, que ficou quase 800 minutos sem levar gols, e um contra-ataque que contava com Zenon, Renato, Capitão, Careca e Bozó, sob a condução de Carlos Alberto Silva, o Bugre venceu o Campeonato Brasileiro, o mais importante do País, algo inédito para uma equipe do interior.
Quando o Guarani jogava contra equipes grandes, era uma festa e o adolescente sintonizava a Rádio Bandeirantes, 840 AM, de São Paulo. Era o máximo ouvir o seu locutor predileto com os seus bordões fantásticos: “Céu carrancudo em São Paulo, torcida brasileira”, “Estamos no crepúsculo do jogo”, “Balão subindo, balão descendo”.
Fiori Gigliotti, “aquele moço de Barra Bonita (SP)” (como ele poderia se autodefinir), nasceu em 1928 e fez carreira brilhante no rádio em emissoras como as Rádios Bandeirantes, Jovem Pan, Record e Capital. Sem dúvida foi um dos grandes expoentes da narração esportiva radiofônica e inspiração para importantes locutores. A sua narração parecia a pintura sonora de um quadro, uma composição poética verbalizada. Fiori misturava emoção e paixão, talvez, por isso, o sucesso lhe bateu à porta de forma tão graciosa.
E foi ouvindo o locutor da torcida brasileira que o adolescente de Santos cresceu e foi para São Paulo onde se formou jornalista. Já nos primeiros anos da década de 1990 o, então, jovem jornalista, trabalhou na Rádio Bandeirantes. E foi em uma tarde de domingo, não tão carrancuda, que surgiu a oportunidade: “Vá até o estádio do Morumbi para cobrir a torcida, o trânsito e o policiamento no jogo do São Paulo”, mandou o seu chefe de reportagem. O adversário era o time do coração, o Guarani.
Antes do jogo a jornada esportiva já estava a todo vapor e Fiori, esse mesmo, o Gigliotti, abriu o microfone e chamou o jovem repórter que, pela primeira vez, estava frente a frente com o seu ídolo. Sim, o momento fez disparar um filme na mente daquele, outrora, um adolescente, mas que estava ali, na frente do estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi, na zona sul da cidade.
Microfone aberto e Fiori pronuncia o seu nome. O jovem jornalista engole seco, toma coragem e dispara o seu boletim informativo. Pronto! Missão cumprida. Agora, orgulhoso, já poderia regressar para casa e colecionar mentalmente o momento mágico que, quase 30 anos depois, o fez escrever uma crônica.
*Marcelo Cardoso é jornalista e professor do Curso de Especialização em Jornalismo Esportivo e Multimídias da Universidade Anhembi-Morumbi.