A beleza do automobilismo
Por Sergio Quintanilha
Muitos vêem as corridas de carro como um desfile de egos. Outros vêem como um desafio à morte. Discordo de ambos. Vejo as corridas de carro como um desafio à capacidade humana de identificar, reconhecer e respeitar limites. Um desafio que exige ao mesmo tempo ousadia e prudência, arrojo e cautela, ambição e assossego, autoconfiança e confiança na equipe. Guiar um carro de corrida numa competição exige diferentes doses desses ingredientes a cada metro percorrido.
Guiar um carro de corrida é um exercício constante de autoconfiança e humildade, poder e respeito. A cada aceleração, a cada aproximação de curva, a cada freada, a cada contorno de curva, a cada reaceleração e a cada saída de curva é preciso ter a dose exata de controle do cérebro, dos pés e das mãos para tirar todo o potencial do carro. Para ser um campeão das corridas, é preciso repetir tudo isso centenas de vezes numa corrida, milhares de vezes ao longo do tempo. Os mais longevos são os que mantêm esse padrão por anos a fio.
Em primeiro lugar, é preciso respeitar o carro. Mas o piloto não pode ser submisso a ele. Quem tem a força é o carro, mas o poder é de quem o conduz. Carros são obedientes aos pés e às mãos dos motoristas, mas nem todos são domados com facilidade. Carros muito dóceis costumam ser lentos. Carros ariscos, nervosos, costumam ser rápidos, mas somente quando um piloto tem a capacidade de domá-los e levá-los ao limite. Há três limites que precisam ser identificados e respeitados numa corrida. Primeiro, o limite do carro. Segundo, o limite da pista. Terceiro, o limite do piloto.
O limite do carro está relacionado com a potência e o torque do motor, a relação de marchas do câmbio, os ajustes de suspensão, molas e barras estabilizadoras, os ângulos das rodas, a pressão, largura e tipo dos pneus, a capacidade dos freios, o tamanho e formato do escapamento e, finalmente, com a aerodinâmica. E isso muda a cada pista ou mesmo dentro de cada pista, conforme as condições meteorológicas do momento. O piloto deve respeitar o limite de giros do motor e deve ser gentil com o câmbio, freios e pneus. O piloto deve respeitar o momento em que alguns componentes do carro estão saturados ou próximos da saturação; deve evitar o superaquecimento de peças e líquidos. O piloto deve permitir que seu carro “respire” de tempos em tempos. O piloto deve ter como regra número 1 a “saúde” de seu carro até o momento da bandeirada. Deve manter o desgaste natural dos pneus, evitando “fritá-los” com freadas bruscas ou danificá-los em áreas irregulares ou sujas. Mas, ao fim da corrida, o piloto sábio sempre procura as superfícies sujas da pista para que os pneus acumulem pequenos detritos e aumentem o peso do carro, reduzindo as chances de uma desclassificação por peso mínimo.
O limite da pista tem a ver com o traçado (se é rápido ou sinuoso), com a largura da pista, com a qualidade do piso, com o raio das curvas, com o ângulo de inclinação das curvas e com as condições meteorológicas. O limite da pista não tem a ver com segurança. A segurança tem mais a ver com o que está além do traçado. Há pistas extremamente rápidas que são seguras; há pistas extremamente lentas que são inseguras. Uma vez que o piloto aceita as condições de segurança de uma pista, ele só conseguirá ser competitivo se pensar apenas no traçado e não nos aspectos de segurança do circuito.
Os limites do piloto têm a ver com confiança no próximo, autoconfiança e humildade. Quando senta ao volante, o piloto deve confiar total e cegamente no trabalho da equipe. O piloto não pode ter dúvidas de que as rodas estão bem apertadas, de que os freios estão com o fluido em dia. O piloto deve confiar em seus mecânicos para não ter outro pensamento, quando acelera na reta, a não ser continuar acelerando até o ponto mais próximo possível da curva. O piloto precisa dosar o arrojo e a prudência, o ímpeto e a humildade a cada aproximação de curva, a cada frenagem, a cada contorno de curva, a cada retomada de velocidade. O piloto precisa saber que a corrida se ganha nas curvas, contornando-as da forma mais rápida possível. Deve saber que derrapar e andar de lado pode até ser bonito para o público, mas é perda de tempo na pista, pois o movimento correto do carro é sempre para frente. Deve saber a hora de fincar o pé no freio, mas também deve saber que o freio não é um descansa-pé, portanto é preciso liberar o pedal imediatamente antes de iniciar a curva. Deve ter paciência para contornar metade da curva sem acelerar. Deve controlar seu ímpeto para não reacelerar antes da hora, caso contrário pode fazer o carro rodar na saída da curva. E ao fazê-lo, a partir da metade da curva, deve ser respeitando os limites de grip dos pneus, para não escapar e comprometer a retomada de velocidade. A cada curva o piloto deve praticar o exercício da humildade perante os limites do carro, os limites da pista e seus próprios limites.
O automobilismo ensina a arte da paciência. Se existe algum problema mecânico, ainda que seja urgente, não se deve ficar pressionando a equipe para fazer o serviço rapidamente. Todos os mecânicos têm pressa, estão igualmente comprometidos com o tempo, portanto a única coisa a fazer é aguardar. O automobilismo ensina a arte do controle do próprio tempo. Nenhum piloto ganha uma corrida na largada, mas muitos a perdem logo na confusão da partida. O automobilismo entrega ao piloto pequenas lições de ousadia, prudência, respeito, companheirismo, hierarquia, bom senso, orgulho, preconceito, ética, meritocracia e oportunidades em todas as corridas para um piloto que queira usar esse aprendizado em sua casa, em seu trabalho, em sua vida. O automobilismo parece um esporte individual, mas não é. Não existe um único piloto campeão que desconheça o valor de sua equipe de engenheiros, preparadores e mecânicos.
Por tudo isso eu amo as corridas de carro. Por tudo isso eu amo o jornalismo especializado em automobilismo. O contorno de uma curva por um carro de corrida é de uma plasticidade eterna. A curva perfeita é a união de tudo isso e mais o desafio das leis da física. É a força centrífuga empurrando o carro para fora e o motor empurrando o carro para frente. O piloto está ali para ajudar o carro a vencer as forças naturais que o empurram para fora da pista. Um carro de corrida desafia não apenas a física, mas também o conceito de espaço e tempo. Poucos esportes, como o automobilismo, redefiniram tão bem a junção de espaço e tempo. Nas corridas com um ponto de partida e um ponto de chegada, os pilotos e os carros aceleram o tempo para reduzir o espaço. Nas corridas em circuitos, o tempo deixa de fluir naturalmente e passa a ser cronometrado. O espaço então adquire a forma simbólica do contorno de um relógio. Numa corrida em circuito, os carros correm contra o tempo para chegar a lugar nenhum.
Agora, multiplique tudo isso por 10, 20, 30 carros e você terá uma corrida. Todos buscando a perfeição da condução num espetáculo de cores, sons e cheiros. As cores dos carros, dos capacetes, das bandeiras de sinalização. O ronco dos motores, os gritos dos pneus. Os cheiros de óleo, borracha e gasolina impondo-se ao cheiro dos perfumes, do suor dos mecânicos e das guloseimas que alimentam pilotos, equipes, mídia, fiscais e o público em geral. Por isso o automobilismo tem uma bandeira própria, que vale para todas as nações. A bandeira quadriculada, aquela que é dada primeiro a quem sabe manejar o próprio talento e tirar o melhor de seu equipamento, mas sem deixar de respeitar os limites do carro, os limites da pista e os limites do motorista.
Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio