A fabulosa arte de narrar o comum
Por Gustavo Longo
“Putaqueopariu, o que estou fazendo aqui?”.
No maior momento da minha vida profissional, essa era a única coisa que conseguia pensar. Lá estava eu, a poucos degraus da entrada do Estádio Olímpico de PyeongChang, na Coreia do Sul, prestes a acompanhar a Cerimônia de Abertura dos Jogos de Inverno in loco e não conseguia pensar em nada além do enorme frio que sentia no momento.
A temperatura marcava -16ºC nos termômetros espalhados no local, mas o forte vendo que cortava a arquibancada pelo noroeste certamente derrubou a sensação térmica. Não foi por falta de agasalhos, de tempo ou de planejamento. Era algo que me preparei durante anos e, ainda assim, fui surpreendido pela natureza.
Foram 19 dias de cobertura olímpica de inverno em fevereiro de 2018 e, no fim das contas, a realização de um sonho, o ponto alto (ou baixo, de acordo com o termômetro) de uma trajetória iniciada em 2010, ainda nas salas de aula de jornalismo na UNESP, em Bauru. Enquanto o jornalismo esportivo dedicava atenção às conquistas e recordes, eu pensava justamente no caminho inverso. Ao focar meu Trabalho de Conclusão de Curso nos atletas olímpicos de inverno do Brasil, queria mostrar que o esporte também é feito pelos comuns, cujas histórias também precisam ser narradas.
Grandes eventos esportivos naturalmente produzem grandes proezas – e é inegável que uma das graças do esporte está no limite sobre-humano dos principais atletas. Mas para cada Usain Bolt, Michael Phelps ou Pelé, há milhões de competidores que também contribuem para o desenvolvimento de uma modalidade. Não se trata apenas daqueles que participam de Jogos Olímpicos ou Campeonatos Mundiais. Estes são uma pequena parcela que representa quem chegou lá. Atrás deles há várias histórias de superação, companheirismo e dedicação que podem ser igualmente inspiradoras.
Jornalistas esportivos se acostumaram a tratar vitórias como indescritíveis. “Faltam palavras” é a expressão que mais se ouve nas transmissões ou se lê nas crônicas. É um erro. Sobram palavras que descrevem conquistas, lendas e heróis. O difícil é achar a melhor descrição para atletas que sabem que não atingirão a glória, mas que ainda assim persistem e seguem na luta. Transformar isso em um acontecimento noticioso é o principal desafio para quem trabalha na área.
É preciso estar no dia a dia para compreender o papel que o esporte exerce na vida dessas pessoas e o processo que as levam a dedicarem várias horas do dia a uma atividade que, no fim, não vai garantir nem retorno financeiro e nem simbólico. Tal qual Joseph Mitchell com Joe Gould, é preciso entrar na vida do personagem para identificar feitos incomuns de pessoas comuns.
Não me arrependo das escolhas que me levaram a sentir o pior frio da minha vida no Estádio Olímpico de PyeongChang. Eu estava lá porque nos seis anos anteriores acompanhei cada passo e cada resultado dos atletas brasileiros que desafiam o clima para competirem em esportes de inverno. Na Coreia do Sul, pude testemunhar, por exemplo, a 17ª colocação de Isadora Williams no programa curto da patinação artística no gelo. Um resultado que para o padrão do jornalismo esportivo não representa nada demais, mas, vejam só, foi o melhor desempenho de uma latino-americana na história da modalidade. Viram? Feito incomum para uma pessoa comum.
Hoje, em 2020, me vejo novamente nesta situação ao desenvolver minha pesquisa de mestrado. O objetivo inicial no projeto era promover uma discussão sobre os Jogos Olímpicos, mas foi alterado para debater os Jogos Abertos do Interior, competição poliesportiva que acontece anualmente no estado de São Paulo desde 1936. Percebo que minha ideia inicial seria apenas mais um trabalho sobre olimpíadas entre tantos outros. Já os Jogos Abertos, ainda que mobilize mais de dez mil competidores todos os anos, é um tema pouco conhecido na academia à espera de um aprofundamento.
O evento é a perfeita representação do quanto o esporte é feito pelos comuns. Sim, há grandes atletas presentes nos Jogos Abertos do Interior, incluindo campeões olímpicos do quilate de Arthur Zanetti na ginástica. Mas não são eles que fazem a competição ser o que é atualmente. A alma dos Jogos Abertos são os milhares de anônimos que representam suas cidades em busca de vitrine, de melhores oportunidades ou de iniciar uma política pública esportiva. A professora e pesquisadora Kátia Rubio, da EEFE-USP, já comentou em entrevista a mim: “os atletas também são os guardiões da cidade”. São histórias que se perdem, mas que merecem ser eternizadas.
No esporte, a pressão pelo resultado faz com que apenas um saia vitorioso. A ele, ofereço as batatas. Se a comunicação é a ciência do comum, como ensina o pesquisador Muniz Sodré, é dever do jornalista esportivo partilhar não só as histórias sobre-humanas dos grandes campeões, mas principalmente as aventuras humanas dos anônimos, esses fabulosos acontecimentos incomuns feitos por gente comum. Nem que para isso seja necessário encarar um frio congelante de -16ºC novamente.
Gustavo Longo é jornalista especializado em cobertura esportiva e Mestrando no Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação na ECA/USP