Cobertura da Fórmula 1 jamais será a mesma, seja na Globo ou na Band
Por Sergio Quintanilha
Depois de 40 anos seguidos, o Campeonato Mundial de Fórmula 1 deixará de ser transmitido no Brasil pela TV Globo. Na temporada 2021, as provas serão exibidas ao vivo pela Band. Não é a primeira vez que a TV Bandeirantes salva o domingo dos fãs da F1 no Brasil. Em 1980, quando a equipe Copersucar-Fittipaldi estava em baixa e não havia mais esperanças de um terceiro título mundial do brasileiro Emerson Fittipaldi, a Globo virou as costas para a Fórmula 1 e a Band assumiu a cobertura.
Como os deuses do esporte não brincam em serviço, a Band se deu muito bem em 1980. Nelson Piquet fez uma temporada excepcional pela equipe Brabham e lutou pelo título mundial até a penúltima corrida do ano, tornando-se vice-campeão com três vitórias, dois segundos lugares e um terceiro. Para melhorar, durante o campeonato a Band revelou Galvão Bueno, que trouxe para as corridas da Fórmula 1 uma transmissão ainda mais empolgante do que a de Luciano do Valle nos tempos da Globo.
Em 1981, devido ao seu poder financeiro, a Globo levou tudo: a Fórmula 1 e o próprio Galvão Bueno, transmitindo o primeiro mundial de Piquet. Depois disso vieram ainda mais dois títulos de Nelson Piquet, três de Ayrton Senna e 22 vitórias de Rubens Barrichello e Felipe Massa. Durante alguns anos, a Globo não apenas transmitiu a Fórmula 1, mas também foi dona dos direitos do Grande Prêmio do Brasil.
Agora a história se repete, certo? Não, errado! É tudo diferente. A única coisa parecida é que a Globo deixa a Fórmula 1 e a Band ocupa seu lugar nas temporadas de 2021 e 2022. Nesse período, o jogo dos direitos de transmissão mudou muito. Atualmente, os direitos da F1 são da Liberty Media, uma empresa sediada nos EUA. A categoria não é mais tão popular quanto nos anos 80, porém tem uma base de fãs muito mais exigente. Com a ausência de brasileiros no grid, os aficionados pela F1 se acostumaram a torcer por pilotos estrangeiros e até pelas equipes, como ocorre na Itália, onde os tifosi torcem pelos carros da Ferrari e não pelos pilotos italianos.
A entrega que a Globo fazia da Fórmula 1, por meio do canal aberto e do Sportv (por assinatura) era muito contestada pelos fãs. Nos últimos tempos, nem sequer enviava narrador e comentarista para as corridas. Isso prejudicou muito o trabalho de Galvão Bueno e Reginaldo Leme, que ficaram dependentes de leituras de publicações estrangeiras. O jornalismo sempre perde nessas ocasiões. Apenas um repórter ia nas provas, num revezamento entre Mariana Becker e Marcelo Courrege. Além deles, somente a repórter Julianne Cerasoli estava fazendo a cobertura in loco, pela rádio Band News FM e pelo portal UOL. Uma situação muito diferente de décadas anteriores, quando havia vários jornalistas brasileiros acompanhando todas as provas do calendário da Fórmula 1.
Hoje a própria Fórmula 1 faz concorrência ao jornalismo esportivo. Por meio da F1TV, os fãs da categoria têm um pacote que entrega muitas informações que antes dependiam de um jornalista para chegar ao público. Há dois pacotes para os assinantes: um mensal por R$ 15,82 e um anual por R$ 142,83. O usuário tem acesso a mais de 650 corridas do arquivo histórico da F1, a documentários exclusivos, a todas as câmeras a bordo dos carros e a repetições da F1, F2, F3 e Porsche Supercup. Além disso, o pacote oferece acesso total a todos os recursos de cronometragem ao vivo:
- classificação dos pilotos exclusiva ao vivo;
- dados de telemetria dos carros ao vivo;
- melhores clipes de rádio das equipes;
- mapas de pilotos ao vivo;
- histórico do uso de pneus.
A mudança de paradigma desse formato é enorme para o jornalismo esportivo. Todo esse conteúdo está disponível no aplicativo F1TV, no App Fórmula 1 ou no site da categoria. O fã leva a Fórmula 1 em seu smartphone para onde quiser. Dependendo do grau de conhecimento do fã do esporte, ele não precisa mais do narrador, do comentarista e do repórter para formar a sua narrativa. Pelo contrário, ele está munido de uma série de elementos que o permitem contestar o que os jornalistas profissionais escrevem ou falam durante a cobertura.
Porém, não é só isso. Devido ao acordo com a Globo (antes) e com a Band (a partir de agora), as transmissões ao vivo ainda são feitas pela televisão. A Band deve adotar o mesmo modelo da Globo, ou seja: transmitirá os treinos oficiais e a classificação pelo canal por assinatura (BandSports) e a corrida pelo canal aberto. Se não houvesse esse acordo, a Liberty Media teria caminho livre para lançar sua plataforma de streaming no país, a F1TV Pro. Nesse caso, o fã do esporte teria acesso também à transmissão ao vivo das corridas, porém com narração e comentários em inglês.
Para além disso, a F1 se tornou bastante atuante nas redes sociais digitais. Somente no Twitter, por meio do perfil @F1, a categoria tem 5,1 milhões de seguidores, que multiplicaram suas 62 mil postagens sempre carinhosas ou curiosas sobre os pilotos e as equipes. No Instagram, são 11,9 milhões de seguidores que já curtiram quase 12 mil publicações em fotos no feed e nas stories, vídeos tipo reels e vídeos mais longos no IGTV. A F1 tem ainda 10,4 milhões de seguidores no Facebook e 4,8 milhões de inscritos em seu canal no Youtube. O vídeo “Top 10 Moments of Pit Lane Drama”, publicado em janeiro de 2019, já teve quase 19 milhões de visualizações no YouTube; o vídeo “Top 10 Moments of Schumacher Brilliance”, também de janeiro de 2019, já passou de 4 milhões de views. Isso sem contar a série “Drive to Survive”, exibida no Netflix, que aproxima os fãs dos pilotos, pois mostra o lado humano de cada um deles.
A ida da Fórmula 1 para a Band movimenta o mercado do jornalismo esportivo e abre oportunidades para bons profissionais, da mesma forma que deixa órfãos alguns especialistas formados pela própria Globo para a cobertura da F1 em seus canais. Porém, em termos de mídia, a Fórmula 1 hoje é muito mais poderosa do que era quando as disputas entre Piquet e Senna dividiam o Brasil nas manhãs de domingo.
Nas mãos da FOA (Formula One Association), regida por Bernie Ecclestone, a F1 se tornou um grande negócio. Nas mãos da Liberty Media, a F1 rompeu todas as barreiras comunicacionais. Este é o desafio que a Globo deixa para a Band: fazer uma cobertura da Fórmula 1 que não seja inferior, em termos de análises e entrevistas, ao que os próprios telespectadores terão por outros meios. Caso contrário, terá a audiência, mas junto com ela terá as críticas de quem se emancipou das transmissões pela televisão aberta.
Sergio Quintanilha é doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP e escreve sobre automobilismo desde 1989 – twitter: @QuintaSergio