Os 80 anos da lei que proibiu mulheres no futebol – e que afastou Baby Barioni dos Jogos Abertos
Por Gustavo Longo
No próximo dia 14 de abril, um triste marco do esporte brasileiro vai completar 80 anos. O Decreto-Lei 3.199, promulgado por Getúlio Vargas durante o Estado Novo, em 1941, nasceu para ser o “marco legal” da prática esportiva no país. Mas trouxe consigo consequências nefastas que ainda hoje reverberam em atletas e clubes pelo país.
O principal deles diz respeito ao desenvolvimento do esporte feminino. A prática das mulheres em modalidades “incompatíveis com as condições de sua natureza” se tornou crime. O artigo 54 é sucinto:
Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompativeis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.
Ou seja, até a revogação, em 1979, as mulheres não podiam participar de competições esportivas no futebol e suas variações (salão e areia), polo aquático, rugby, beisebol, entre outros esportes. Iniciativas promissoras, como o time de futebol feminino do Araguari Atlético Clube (considerado o primeiro do país), sofreram com a perseguição moral e legal.
A luta das atletas mulheres antes, durante e depois do decreto-lei é tema de um belíssimo webinar organizado pelo Museu do Futebol. Realizado toda terça-feira, das 17h às 19h, entre 30 de março e 27 de abril, o evento “Proibidas e Insurgentes” resgata essa busca pela emancipação feminina no esporte.
Trata-se de um tema fundamental, sem dúvida, mas não é o objetivo deste texto. Não possuo lugar de fala sobre o tema e há inúmeras profissionais e pesquisadoras mais capacitadas do que eu para discorrer sobre o impacto do Decreto-lei 3.199/41 no desenvolvimento do esporte feminino. Aliás, recomendo fortemente a leitura do livro Futebol Feminista – Ensaios (2021), escrito por Lu Castro e Darcio Ricca. A obra aborda com excelência todas estas questões.
O objetivo desta crônica é trazer outra consequência desta lei no esporte nacional. O objetivo principal era criar uma estrutura política para o esporte, permitindo maior controle sobre a prática esportiva profissional e amadora. É por meio de seus artigos que se criou a estrutura que conhecemos hoje, com uma confederação nacional, federações estaduais e ligas municipais.
O problema é que essa medida tornou ilegal a existência de duas entidades esportivas que organizam a mesma modalidade em uma região. Se por um lado a ideia era criar uma estrutura única para os clubes e atletas a partir da profissionalização, por outro serviu para minar iniciativas pioneiras em locais que não contavam com a atenção dos grandes centros.
É o que ocorreu com Baby Barioni, criador dos Jogos Abertos do Interior e promotor esportivo em cidades do interior. O rigor do decreto-lei o impediu de realizar competições consideradas oficiais ao longo dos anos seguintes e foi um dos fatores que o afastou da organização do evento que ele idealizou. Depois de 1941, só participaria do Comitê Organizador dos Jogos Abertos de 1943, 1944, 1955, 1956 e 1957 sempre a pedidos da cidade-sede e não do Governo Estadual.
Amador convicto, Horácio Barioni sempre defendeu a ideia de que o atleta deveria ser livre para competir em diferentes competições por agremiações distintas. Ele também defendia o direito de clubes e atletas se mobilizarem e organizarem seus próprios eventos, mesmo sem o apoio da federação “oficial”, por assim dizer.
Em 1938, por exemplo, chegou a propor a criação da Confederação das Entidades Esportivas do Interior do Brasil, que deveria ser apresentada no Congresso de Abertura dos Jogos Abertos do Interior daquele ano, em Sorocaba. Como mostra notícia divulgada no Correio Paulistano em 9 de outubro daquele ano (grafia original da época):
Como se vê, o interior possue energias necessárias para não estar dependendo das “federações” das capitaes. A fundação de uma entidade que lhes garanta vida independente é de urgente necessidade. E Baby Barioni acaba de organizar um ante-projeto dos estatutos da entidade que irá nascer no Congresso Esportivo de Sorocaba, a qual terá vida própria e um systema interessantíssimo de organização, o que permitiria, de um modo effectivo e seguro a sua existência, ficando as associações esportivas do interior sob o abrigo de uma entidade própria.
A ideia, contudo, não foi para frente. Em 1939, no endurecimento do Estado Novo, o Governo de São Paulo assumiu a organização dos Jogos Abertos, congelando a proposta de criação de uma entidade interiorana. Dois anos depois, com a Lei 3.199, qualquer iniciativa nesse sentido caiu por terra. Ele não conseguiu criar a tão sonhada confederação como ainda entrou em rota de colisão com o governo estadual sobre a organização dos Jogos Abertos do Interior. Uma mágoa que carregou até sua morte, em 1967.
Em 1946, com a democracia de volta ao Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo de Getúlio Vargas, Baby Barioni passou a criticar abertamente o decreto-lei 3.199. Publicou colunas no Diário da Noite contra a “lei fascista”, como ele chamava, e clamando a possibilidade dos interioranos se organizarem em instituições próprias. Confira um trecho de sua coluna publicada em 13 de fevereiro de 1946:
São Paulo, através da lei fascista 3.199, foi o grande sacrificado porque, sendo o único estado da União a cumprir essa lei, acabou por matar toda a iniciativa particular e que se desdobrava em sequência extraordinária em todos os vários setores das novas classes sociais, as quais cada uma de per si, possuíam legitimamente constituídas as suas atividades esportivas em ligas, associações, etc.
Como se sabe, o decreto-lei só foi revogado em 1979, em um cenário de abertura “lenta, gradual e segura” durante a ditadura militar e doze anos após a morte de Barioni. Até o fim de sua vida, ele continuou trabalhando com esporte. Rodou o país organizando eventos esportivos totalmente amadores. Foi incentivador dos Jogos Abertos do Paraná e de Santa Catarina. Na década de 1960, se envolveu com automobilismo, sediando provas em Piracicaba. Treinou equipes de basquete, organizava tours do Harlem Globetrotters no Brasil nos anos 1950. Mas nunca conseguiu estruturar os esportistas do interior em uma mesma organização.
Difícil projetar o que seria do esporte feminino e das iniciativas particulares se o decreto-lei 3.199/41 nunca tivesse existido. Será que a participação das mulheres e a relevância do interior seriam maiores? Improvável. A presença das mulheres em competições esportivas sempre foi uma luta – Pierre de Coubertin, o idealizador do Movimento Olímpico, era contra, por exemplo. Já o desenvolvimento esportivo acompanha o poder financeiro, o que naturalmente faz as capitais darem as cartas. O fato é que esse decreto-lei impediu o surgimento de novas ideias, propostas e ações que estimulassem o espírito esportivo em sua plenitude – a ponto de 80 anos depois ainda curarmos as feridas que ele causou.
Gustavo Longo é jornalista especializado em cobertura esportiva e Mestrando no Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação na ECA/USP