Carros para ricos e 33 milhões de famintos. Eis o Brasil
Quem é brasileiro e consegue comprar um carro zero km hoje é uma pessoa financeiramente privilegiada. Não por outro motivo, as montadoras estão investindo em carros com maior valor agregado para atingir justamente o público mais endinheirado. Ou seja: carros para ricos. Mas, como seria se um brasileiro comum tentasse comprar um carro?
Vamos usar o carro mais barato do Brasil atualmente (Fiat Mobi) como parâmetro para algumas simulações. O Mobi Like custa R$ 63.390 à vista (em SP, R$ 65.411). Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a renda média do brasileiro é de R$ 2.548. “De modo geral, o valor pago por mês não deve comprometer mais de 10% dos rendimentos. Se possuir um salário de R$ 2.500, então a parcela do financiamento não deverá ultrapassar R$ 250”, explica o site da Seguro Auto.
Bem, pelo simulador de financiamento da Fiat, com uma entrada mínima, 10% do valor do veículo (R$ 6.339), dá para parcelar o restante em 36x de R$ 2.448. Sobrariam R$ 100 para o brasileiro médio comprar comida, gasolina ou etanol, pagar os custos da casa, IPVA, saúde e outras coisas. Cem reais.
Para reduzir bem a parcela seria preciso pagar uma pequena fortuna de entrada. Mesmo que o cidadão tenha um Mobi 2019 usado e pegue R$ 38.000 por ele no mercado, a parcela mínima seria de R$ 746 em 60x. Seria viável somente para quem ganha R$ 7.500/mês, porém este Mobi custaria R$ 82.760 até junho de 2027.
Acontece que, segundo o Ipea, 70% dos brasileiros ganham em média R$ 1.871 por mês. Sobram, portanto, 20% que ganham em média R$ 3.500. Bem, nesse caso, na simulação com entrada mínima (R$ 6.339), sobraria pouco mais de R$ 1.000 para o brasileiro que pagasse quase R$ 2.500 para realizar o sonho de comprar um Mobi Like zero km.
Mas, por óbvio, não são esses brasileiros que estão comprando carro, pois, além do carro, o consumidor tem que arcar com os custos de IPVA, seguro, manutenção e, principalmente, combustível, que está com preço altíssimo. Além disso, segundo a Peic (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor), 77,7% dos brasileiros estão endividados e 28,6% das famílias estão com as contas em atraso.
Quem compra carro zero no Brasil, portanto, está no topo da pirâmide social, ou seja, está entre os 5% que têm renda média de R$ 10.313. Esses, teoricamente, podem pagar uma prestação de R$ 1.000 num carro sem grandes dificuldades. O carro para essas pessoas, entretanto, certamente não é um Fiat Mobi e sim um Fiat Pulse ou algum carro dessa categoria. O Pulse vai de R$ 95.290 a R$ 126.990.
O Fiat Pulse intermediário custa R$ 110.290. Com o pack multimídia sai por R$ 111.280. Se a entrada for de apenas 10%, a prestação em 60x será de R$ 3.172. Pensemos então numa entrada de 30%, que é o sugerido pela montadora, ou seja, R$ 33.384. Nesse caso, a parcela mínima seria de R$ 2.330 em 60x. Outra opção seria pagar R$ 3.190 em 36x. É bastante.
Bem, a conclusão é que somente os brasileiros que estão no topo do topo da pirâmide, ou seja, aquele 1% da população que tem renda média R$ 28.659, segundo o Ipea, estão conseguindo comprar carros zero km. Ou seja: o Brasil tem uma população de 214,7 milhões, segundo o IBGE, e apenas 2,1 milhões de brasileiros estão conseguindo comprar carros.
O pior é que as esquinas por onde passam esses carros estão cada vez mais povoadas de brasileiros que não têm sequer o que comer. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSAM), atualmente 33,1 milhões de brasileiros não têm o que comer diariamente. Ou seja: teoricamente, o número de brasileiros que estão passando fome é quase 16x maior do que os brasileiros que estão comprando carro.
Embora não seja culpada por essa situação, as montadoras de automóveis, por meio da Anfavea (sua associação), terão que considerar esse aspecto para o futuro próximo, pois não faz sentido falar de ESG, indústria 4.0, eletrificação e outros valores da economia moderna enquanto uma em cada seis pessoas passa fome no Brasil. Há negócio viável em uma sociedade miserável? Eis a pergunta que não quer calar.