EM DISPUTA

Breves considerações acerca dos estudos sobre futebol e mídia

A Copa do Mundo de Futebol Masculino, como sabemos, é um megaevento esportivo, organizado de acordo com os interesses do “grande capital” e moldado pela lógica midiática. Assim, com a aproximação da Copa do Catar 2022, parece-me interessante apresentar, ainda que de forma muito breve e seletiva, a literatura científica sobre futebol e mídia. De acordo com Ronaldo Helal (2011), até a década de 1980, havia um certo descaso por parte das Ciências Sociais em relação ao futebol – o que não significa, evidentemente, que inexistissem produções sobre o tema. Ao contrário, já havia alguns instigantes ensaios, como atestam os escritos de Mario Filho, Gilberto Freyre, Vilém Flusser e outros. De qualquer modo, foi mesmo na referida década que o futebol passou a fazer parte, de forma mais sistematizada e sistemática, da agenda das Ciências Sociais.

Segundo Hugo Lovisolo (2011), até então, dominava a perspectiva crítica, baseada tanto no neomarxismo da primeira geração da Escola de Frankfurt quanto no marxismo-althusseriano. Grosso modo, o futebol era interpretado a partir de duas noções-chave: alienação e controle dos trabalhadores. Certamente, um dos principais representantes desse tipo de abordagem foi Roberto Ramos (1984). Em seu clássico “Futebol: ideologia do poder”, o autor sustenta que, junto dos meios de comunicação, o futebol é um dos mais eficazes aparelhos ideológicos de Estado no Brasil, servindo para mistificar a realidade e legitimar o capitalismo, docilizando a classe trabalhadora.

A despeito de sua fertilidade teórica, a perspectiva crítica suscitou uma série de objeções, tais como: 1 – supervalorizar as relações de dominação de classe, dando pouca atenção a outros eixos de desigualdade e subordinação presentes nas sociedades contemporâneas (de raça, gênero, idade etc.); 2 – assumir uma perspectiva de receptor passivo, como se este fosse uma espécie de esponja que absorve indiscriminadamente as mensagens veiculadas pela indústria futebolística (incluindo a imprensa esportiva) e 3 – pressupor que o espetáculo futebolístico contribui para cimentar as relações sociais, apagando as disputas e lutas que ocorrem no processo de produção, transmissão e recepção/consumo desse espetáculo. Assim, de acordo com Hugo Lovisolo (2011), ainda na década de 1980, foi ganhando corpo uma interpretação quase que oposta do futebol, desenvolvida principalmente por antropólogos e historiadores. Tal intepretação privilegiou a perspectiva dos amantes desse esporte, que passou a ser visto não mais como um espaço de alienação, mas como um local de formação de identidades, participação, pertencimento, emoção, criação e imaginação.

Segundo Ronaldo Helal (2011), quando o campo de estudos sobre futebol já era reconhecido como campo, surgiu um intenso e profícuo debate estabelecido entre Antônio Jorge Soares e aqueles que ele denominou de “novos narradores” sobre a validade de testemunho histórico da obra “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho. Mais ou menos no mesmo período, também se consolidou um campo de pesquisas sobre as torcidas organizadas de futebol. Pesquisas que, seguindo os caminhos abertos pelos antropólogos e historiadores na década de 1980, buscaram compreender o ponto de vista dos integrantes dessas torcidas, a fim de conhecer seus rituais, identidades, memórias, relações com o espaço urbano e envolvimento com a violência.

Longe de serem uma realidade natural, esses fenômenos são construções sociais, realizada por diversos agentes, como os próprios acadêmicos, autoridades públicas, dirigentes esportivos e jornalistas. Diante disso, vários deles tomaram os meios de comunicação como objeto de investigação. Meios que, de acordo com Édison Gastaldo (2011), podem ser abordados de três formas. Em primeiro lugar, por meio da perspectiva etnográfica, característica da Antropologia. Como sabemos, tal perspectiva envolve dois procedimentos básicos: a observação participante e o registro no diário de campo. Essa perspectiva, segundo o autor, demanda tempo e é cheia de ciladas. Apenas para dar um exemplo, há sempre a possibilidade de o pesquisador interpretar a sociedade que estuda a partir de modos de pensamento totalmente estranhos a ela. Inversamente, também há sempre o risco de ele estudá-la de modo acrítico, aceitando passivamente as explicações de seus informantes, como se a sociedade em que vive fosse perfeitamente transparente para eles (LAPLANTINE, 2005). Independentemente desses riscos, tal perspectiva é, certamente, muito profícua e tem sido adotada por diversos autores – como o próprio Gastaldo (2011), em seus estudos sobre a recepção televisiva de partidas de futebol em bares e restaurantes.

Em segundo lugar, os meios de comunicação podem ser abordados como fonte de dados e informações sobre acontecimentos passados, ou seja, como fonte histórica. Aqui, a despeito de, em geral, os pesquisadores reconhecerem que esses meios fornecem apenas uma versão desses acontecimentos, mediada, entre outras coisas, pelos valores, interesses e objetivos da empresa jornalística, eles servem de via acesso privilegiado para uma dada realidade. Por exemplo, folheando as páginas dos jornais de 1950, podemos saber detalhes de como foi a final da Copa do Mundo daquele ano e do que ela representou para a população brasileira (GASTALDO, 2011). Esse tipo de abordagem foi (e é) bastante utilizado tanto no debate sobre futebol, raça e identidade nacional quanto no debate sobre as torcidas organizadas. Para ficar neste último caso, o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda (2009), por exemplo, investiga a imprensa esportiva a fim de compreender o processo de formação das torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro.

Em terceiro lugar, os meios de comunicação podem ser abordados a partir da análise de discurso, ou seja, não exatamente como uma via de acesso para uma dada realidade, mas como construções simbólicas complexas, através das quais algo é expresso. Aqui, o que se busca é analisar a organização interna dessas construções: suas características estruturais, seus padrões e relações. Esse tipo de análise é, certamente, aquele predominante no campo da Comunicação, que tem se utilizado de uma ampla variedade de técnicas para examinar crônicas esportivas, notícias sobre esporte e até mesmo materiais publicitários (GASTALDO, 2011). Entre outras técnicas, destaco a análise semiótica, a análise da estrutura narrativa, a análise argumentativa e a análise da conversação. A partir dessas técnicas, é possível compreender como os referidos meios têm contribuído para construir as representações de uma série de atores e eventos.

 

Referências

 

GASTALDO, Édison. Comunicação e esporte: explorando encruzadilhas, saltando cercas. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, vol. 08, n. 21, 2011, p. 39-52.

 

HELAL, Ronaldo. Futebol e comunicação: a consolidação do campo acadêmico no Brasil. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, vol. 08, n. 21, 2011, p. 11-38.

 

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.

 

LAPLANTINE, François. Aprender a antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2005.

 

LOVISOLO, Hugo Rodolfo. Sociologia do esporte (futebol): conversações argumentativas. In: HELAL, Ronaldo; LOVISOLO, Hugo Rodolfo; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves (Orgs.). Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p. 11-32.

 

RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrópolis: Vozes, 1984.

 

* Felipe Lopes é colunista e professor universitário