GINGA ESPORTIVA

Racismo muito além do futebol

Nas últimas semanas, vergonhosamente, tivemos novamente a repercussão de casos e ataques racistas no futebol. Esses acontecimentos foram amplamente noticiados, principalmente após os constantes ataques sofridos pelo jogador brasileiro Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior, mais conhecido como Vini Jr.

Sendo assim, ficaria difícil não fazer uma breve reflexão sobre o racismo no âmbito esportivo, em especial no futebol. Porém, seria importante antes falar que esse problema não é uma particularidade dentro dos campos e das arquibancadas dos estádios de futebol, pois atravessa a sociedade na totalidade, inclusive nas suas estruturas. E como bem nos lembra a filosofa do feminismo negro Grada Kilomba (2019, p. 71), “o racismo é uma realidade violenta”, o que significa que o tema é bastante sensível para muitas pessoas negras que sofrem ou já sofreram atos/ataques racistas.

Então, seria importante, antes de entrar no tema em si, que se faça um parêntese para os leitores e leitoras. Com os estudos de Psicologia Social Crítica, aprendemos que antes de falar sobre determinados assuntos que envolvem grupos sociais, torna-se importante que quem aborde o tema saiba o seu lugar social e subjetivo de onde está agindo, falando, escrevendo ou até mesmo pesquisando (SCHUCMAN, 2020). Ou seja, devemos saber o nosso lugar social. Seguindo esse aprendizado, e sendo eu pesquisador, homem, branco e de classe média, é desse lugar que eu escrevo sobre esse tema sensível. Portanto, não sofro com o racismo e tenho a consciência de que não estou no lugar de uma pessoa que sofreu ou sofre com o mesmo. E, se pensarmos o racismo como parte das estruturas da sociedade brasileira e não apenas como racismo individual ou institucional, como nos apresenta Silvio Almeida (2020), eu faço parte do grupo privilegiado e dominante.

Porém, tento sempre repensar o que Cida Bento (2022) chamaria de “pacto da branquitude”, no qual a autora qualificaria esse pacto como a “isenção” de pessoas brancas em não analisarem o próprio racismo e seus privilégios contra pessoas não brancas ou racializadas. Logo, como eu pesquiso sobre o assunto e parto do pensamento decolonial, busco sempre adotar práticas antirracistas, principalmente se amparando nas ideias de autoras e autores negros, fazendo isso independentemente do assunto discutido.

Devemos, antes de qualquer coisa, sempre nos lembrar da frase icônica da escritora ativista Angela Davis: “Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, pois se uma sociedade busca avançar de maneira mais igualitária e diversa, tem como obrigação eliminar tais práticas que geraram desigualdades, relações de poder e violência, sendo esse o único caminho.

Voltando ao assunto e falando especificamente dos episódios de racismo no futebol, que de longe não são casos isolados e sua sistematicidade nos mostra isso, tanto nos campeonatos europeus quanto nos campeonatos brasileiros e latino-americanos, o tema repercutiu na “grande mídia” brasileira após os constantes ataques racistas ao jogador Vini Jr.

O jogador começou a sofrer ataques racistas após se destacar e abrilhantar com seu futebol alegre, que, após marcar gols, dançava para comemorar seus feitos, prática recorrida por outros jogadores e jogadoras de futebol em suas comemorações. Essa situação chamou a atenção, pois apenas as danças de Vini Jr. passaram a incomodar uma parte da imprensa espanhola, até o ponto de um comentarista esportivo espanhol fazer comentários racistas, que optei por não reproduzir neste texto. O jogador avisou: “Aceitem, respeitem ou surtem. Eu não vou parar de bailar”. Após esse caso, Vinicius Jr. passou a ser alvo de ataques racistas de torcidas de times rivais, se tornando frequente. Foram pelo menos 10, só nos últimos meses. E, por mais absurdo que pareça, um dos últimos ataques de racismo realizado, mas desta vez contra um amigo de Vini Jr., foi no jogo da seleção brasileira, que marcaria um protesto contra as agressões sofridas pelo jogador, onde os jogadores brasileiros usaram pela primeira vez um uniforme da cor preta.

Vale lembrar que no mesmo período, tivemos vários casos de racismo na competição Libertadores, nos quais foram flagrados atos racistas por parte de torcedores nos jogos River Plate e Fortaleza, Boca Juniors e Corinthians, Estudiantes de La Plata e Red Bull Bragantino, Emelec e Palmeiras , e pela Universidade Católica e Flamengo. Todos os casos foram proferidos contra torcedores e jogadores brasileiros, casos que, de certa maneira, não tiveram a mesma repercussão que os ataques sofridos por Vini Jr. É importante ressaltar também os casos de homofobia pela torcida do Corinthians. Esses casos são amplamente monitorados e denunciados pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que realiza relatórios anuais sobre o racismo no futebol e outros esportes, pois o racismo não se restringe apenas ao futebol no âmbito esportivo.

Para compreendermos os casos de racismo no futebol, em especial contra Vini Jr., podemos partir de autores como Silvio Almeida (2020) e Dennis de Oliveira (2021) que entendem o racismo como parte da nossa sociedade, e não seria um ato somente individual ou institucional, ou seja, realizado por um determinado indivíduo, grupo ou instituição. Frantz Fanon (2021, p. 77), um dos maiores estudiosos sobre o racismo, fala que “o hábito de considerar o racismo como uma disposição de espírito, uma tara psicológica, deve ser abandonado”. Então, podemos entender que o racismo está impregnado nas estruturas da sociedade, sendo expresso na sua concretude através das desigualdades sociais, políticas, tristes, jurídicas, etc. E quando um jogador, como o Vini Jr., denuncia suas agressões, todo um aparato social tenta se movimentar para silenciar o caso, e para isso basta observarmos as ações tomadas pela La Liga, que só agiu após grande repercussão negativa e pressão por diversos setores, inclusive do governo brasileiro. Assim, podemos fortemente considerar o que Almeida (2020, p. 47) fala sobre o racismo estrutural que age nas reproduções racistas individuais ou institucionais: “são racistas porque a sociedade é racista”.

Basta pararmos e pensarmos: quantos técnicos de futebol, dirigentes de clubes, jornalistas esportivos, comentaristas esportivos, narradores esportivos, etc., são pessoas negras? São poucos. E se pensarmos isso a partir de outros empregos de destaque? Muito provavelmente, a resposta seria a mesma. Assim, não bastaria eliminar o racismo apenas no futebol, seja no campo ou nas arquibancadas, pois ele, de alguma forma, acabaria retornando, principalmente porque essa tecnologia da dominação é mutável e sempre se reinventa.

Nesse texto de hoje, tentei trazer brevemente alguns pontos importantes para se debater sobre o racismo. O primeiro foi que sempre devemos nos atentar à posição social que ocupamos e pensar a partir disso, principalmente se é uma posição privilegiada – por exemplo, a branquitude – e a partir disso tentar mudar certos padrões impregnados em nós mesmos. A segunda é que, por mais importante que se debata sobre o racismo individual e quão prejudicial é para as pessoas negras que sofrem – e obviamente devem ser punidos, pois se trata de um crime –, torna-se mais do que urgente discutirmos as outras formas de racismo apresentadas, principalmente o racismo estrutural. Pois, por mais importante que seja punir um ato racista realizado por um/uma agressor/agressora, já foi provado que somente isso se mostrou ineficaz para eliminar tal prática, por isso a importância de mais ações políticas, como, por exemplo, a decisão da FIFA em colocar Vinicius Jr. como líder da comissão antirracista, o que confere poder ao jogador nas tomadas de decisões contra o racismo no futebol.

E, para finalizar, ainda posso citar uma afirmação de que Fanon (2021, p.75) faz sobre o racismo: “Hoje em dia se diz que o racismo é uma chaga da humanidade. Mas não se deve ficar satisfeito com essa frase”. O que esse autor quer dizer com essa frase é que o racismo não deve apenas ser repudiado ou denunciado, deve ser duramente combatido para ser extinto em todos os níveis (individual, institucional, estrutural, cotidiano, etc.), e isso não se deve restringir apenas ao futebol e ao esporte, mas à nossa sociedade. Por isso, devemos adotar todos os dias práticas antirracistas, sejam jogadores, técnicos, torcedores, dirigentes, jornalistas etc.

 

Conheça mais:

Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Disponível em: https://observatorioracialfutebol.com.br/observatorio/relatorios-anuais-da-discriminacao/

 

Referências 

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.

BENTO, Cida. Pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

FANON, Frantz. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

OLIVEIRA, Dennis de. Racismo Estrutural: uma perpectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. 2a. ed. –  São Paulo: Veneta, 2020.

 

*Murilo Aranha Guimarães Marcello é Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba.