certas histórias

OS TRABALHADORES DA SÉRIE D SÃO OS VERDADEIROS CAMPEÕES

A final do Campeonato Brasileiro da Série D de 2023 é uma daquelas preciosidades históricas que somente as relações humanas são capazes de construir ao longo do tempo. A decisão acontece entre a Associação Ferroviária de Esportes (AFE), de Araraquara – SP, e o Ferroviário Atlético Clube (FAC), de Fortaleza – CE. Para além das disputas em campo, quiseram também as entidades “das coisas que só o futebol proporciona”, que a final ocorresse entre Ferroviária x Ferroviário, e essa deliciosa coincidência nos põe a refletir sobre o trabalho, os trabalhadores e o futebol.
Desde os primórdios do futebol aqui no Brasil, estabeleceu-se uma profícua relação entre esse esporte e o mundo dos trabalhadores. Naquela São Paulo da Light & Power, para além dos incentivos do Charles Müller, percebeu-se grande endosso profissional para que o futebol pudesse por aqui se desenvolver, fosse na formação dos primeiros times, fosse no financiamento dos materiais esportivos, fosse na cessão de áreas para treinos e jogos, fosse na própria participação, já que a literatura demonstra que não era raro naquele período que empresários, gerentes e trabalhadores braçais entrassem em campo para defender a sua bandeira.
Posteriormente, a partir dessa primeira fase, os trabalhadores passaram a melhor se organizar, e a popularização do esporte fez com que diversos segmentos profissionais se interessassem em participar de torneios, montando verdadeiros escretes a partir de seus negócios. Nesse âmbito, as concessões estatais foram decisivas para a organização dos primeiros campeonatos, sendo os setores energético, ferroviário e de tecelagem tidos como proeminentes, agremiando diversos trabalhadores de seus quadros funcionais para a prática desportiva. Isso foi fundamental para a interiorização do futebol, que, por conseguinte, foi responsável pelo espraiamento e pela popularização do futebol no Brasil.
Nesse contexto, diversas cidades que iam surgindo nos troncos e ramais ferroviários, viam no futebol uma atividade de lazer capaz de seduzir os trabalhadores, e foram criando times a partir das relações sociais que se desenvolviam a partir da malha férrea. Esse foi o caso do Esporte Clube Noroeste (Bauru – SP), do Grêmio Operário Ferroviário (Ponta Grossa -PR), da Associação Desportiva Ferroviária (Vitória – ES), entre outros, além dos já mencionados Ferroviário e Ferroviária.
Contudo, apesar dessa participação inicial, ao longo do século 20 os trabalhadores sindicalizados pelo segmento foram perdendo espaço na medida que o futebol foi se profissionalizando no país, sendo substituídos por atletas profissionais, também trabalhadores, mas destituídos desses aspectos mais românticos que compuseram a fase inicial da formação do futebol no país. Importante mencionar que, assim como o espaço na participação, o século 20 também foi marcado pela perda de diversos direitos que os trabalhadores haviam conquistado anteriormente.
Então quero destacar que a final da Série D neste ano é uma homenagem a essa história de beleza, de luta e de suor que fizeram desse país a casa do futebol. A decisão ocorrer entre Ferroviária e Ferroviário remete a uma brincadeira dos deuses da bola, trazendo à tona essa história, que é a nossa história.
Esse fato também serve para demonstrar que, mesmo ante tanta perda, os trabalhadores desse país estão vivos, mais vivos do que nunca, atentos, revalorizados, partícipes, construtores, decisores, vivos… e com todas as chances de serem, em campo e fora dele, os verdadeiros campeões brasileiros.
Viva o Futebol!!!
Viva os Trabalhadores!!!

* José Luiz Fernandes Cerveira é professor de sociologia na Universidade Federal do Paraná