Jogos Olímpicos antigos e modernos: Uma (breve) análise dos significados e papéis do “esporte” em diferentes períodos históricos
Em tempos de Jogos Olímpicos, os meios de comunicação de massa costumam publicar diversas matérias sobre como eram esses jogos na Grécia Antiga, apresentando algumas curiosidades sobre as modalidades “esportivas” daquele período. Algumas dessas matérias são bem fundamentadas e interessantes; outras, infelizmente, nem tanto. Na verdade, ao invés de ampliarem o conhecimento histórico e esportivo do(a) leitor(a), contribuem para difundir mitos e equívocos. Embora os “esportes” gregos nunca tenham sido objeto das minhas pesquisas acadêmicas, como professor da disciplina de Sociologia do Esporte, li (até por obrigação profissional…) algumas obras relevantes sobre o tema, que, a meu ver, são bastante esclarecedoras. Assim, baseando-me nelas, apresento e analiso, neste texto, algumas diferenças entre o “esporte” grego e o moderno.
Antes de iniciar essa análise, destaco, no entanto, a necessidade de utilização das aspas na palavra “esporte”, quando aplicada às competições físicas que ocorriam na Grécia Antiga. Afinal, tais competições possuíam significados e papéis muito diferentes dos desempenhados pelas competições realizadas posteriormente, nas sociedades modernas (ou pós-modernas, na visão de alguns(mas) autores(as)). Certamente, interpretar os “esportes” gregos como os antecessores diretos dos atuais não passa de uma projeção do presente no passado, ou seja, não passa de uma forma de anacronismo – esse equívoco tão denunciado pelos(as) historiadores(as). Mas vamos lá: quais as principais diferenças entre o contexto “esportivo” antigo e o atual?
Primeiramente, esses contextos estão inseridos em modos de produção distintos. Hoje em dia, como sabemos, vivemos em sociedades capitalistas (com raríssimas exceções de alguns países). Logo, os esportes modernos são, diferentemente dos antigos, uma mercadoria. Isso significa que o objetivo principal de um megaevento esportivo (como os Jogos Olímpicos modernos) é garantir a acumulação de capital, ou seja, é permitir que organizações capitalistas possam extrair dele o máximo de lucro possível. Os(as) próprios(as) atletas são mercadorias, na medida em que vendem sua força de trabalho e, ainda por cima, utilizam seus corpos como instrumentos publicitários. Da mesma forma, são mercadorias as cidades que sediam esses megaeventos. Tanto que, para reforçar sua “marca” na indústria global do turismo, com muita frequência, estabelecem verdadeiros estados de exceção, adotando medidas higienistas, que expulsam as populações mais vulneráveis de seus locais de moradia e trabalho.
Enfatizar o aspecto econômico dos megaeventos esportivos não significa, é claro, que eles não tenham outros papéis, como os sociopolíticos. Entre estes, destaco a propagação da ideologia da coexistência pacífica entre as nações, que tende a ocultar os conflitos e tensões entre elas (sobretudo as injustiças e pressões exercidas pelas grandes potências econômicas sobre as demais), e o estímulo do orgulho chauvinista, que tende a aproximar classes sociais antagônicas (oprimidos e opressores), a fim de garantir a coesão das sociedades (capitalistas) e a consequente dominação e exploração de classe. Poderia, ainda, destacar as funções ideológicas desses megaeventos, como a de oferecer um conjunto, relativamente coerente, de visões, valores e ideias (como as de sacrifício e a de “jogo justo”), que podem servir para legitimar o mercado capitalista e a submissão a suas leis e regras. Digo, aqui, “podem”, porque, evidentemente, os receptores/consumidores(as) dos megaeventos esportivos não são “esponjas”, que absorvem indiscriminadamente aquilo que se passa diante deles(as), mas, sim, sujeitos ativos e potencialmente críticos.
De qualquer modo, como parte da grande indústria capitalista, o esporte moderno é um polo (extremamente) atrativo para todo tipo de publicidade, que, obviamente, almeja alcançar grandes audiências. Não à toa, ele costuma ocupar em um lugar destaque nos noticiários, sendo amplamente veiculado pela televisão, rádio, internet, revistas e jornais. Isso faz com que os Jogos Olímpicos modernos sejam, em grande medida, planejados para pessoas que estão distantes no espaço e, até mesmo, no tempo; e não que estão inseridas em um contexto de copresença. A abertura dos Jogos de Paris, por exemplo, recebeu muitas críticas por parte de seus(uas) espectadores(as) (presenciais), por, segundo o que foi noticiado pela imprensa, ter sido organizada de forma fragmentada, fazendo pouco sentido para aqueles(as) que não a acompanharam pela televisão.
Outra diferença entre o “esporte” antigo e o moderno é que este último é organizado por grandes aparatos burocráticos – como o Comitê Olímpico Internacional (COI), por exemplo –, que não só o transformam em uma mercadoria adequada para ser vendida nos meios de comunicação de massa, mas que, também, garantem a universalização das regras e o controle dos recordes. Este, aliás, é outro aspecto que diferencia esses dois “esportes”. Mesmo já existindo uma tendência à comparação na Grécia Antiga, a busca pela conquista de recordes é, sem dúvida, uma novidade das sociedades modernas. Até mesmo porque essa busca depende, em parte, de um sistema sofisticado de quantificação, que só pôde ser realizado graças aos avanços da ciência moderna e ao desenvolvimento industrial, que permitiram a invenção de novos aparatos de controle do espaço e do tempo, como o cronômetro.
Também não podemos nos esquecer que a escravidão era parte constitutiva da vida grega, que as cidades-estados iam à guerra com frequência – tanto umas contra as outras como contra povos estrangeiros – e que a ordem social nessas cidades era, em grande medida, assegurada não por meio de uma força policial – como ocorre hoje em dia –, mas, sim, por meio de rixas familiares, similares à Máfia Siciliana. Por conseguinte, a vida social na Grécia Antiga e os Jogos Olímpicos daquele período abrigavam um nível de violência (física) muito maior do que os de hoje. Por exemplo, no pankration (espécie de vale-tudo do período), era permitido que os competidores pisoteassem seus oponentes, torcessem seus pés, narizes e orelhas, aplicassem gravatas, deslocassem seus dedos e até arrancassem seus olhos. Já no boxe grego, igualmente brutal, não havia qualquer tipo de categoria de peso. Aliás, os Jogos Olímpicos antigos eram muito mais baseados em uma tradição assimétrica de honra do que em uma tradição simétrica de equidade, como ocorre hoje.
Por fim, é preciso destacar que, a despeito de já ser possível localizar entre os gregos a formação de um fenômeno secular, o caráter religioso de seus jogos nunca foi colocado em dúvida. Já nos dias de hoje, o esporte é, como diria Pierre Bourdieu, um “fim em si mesmo”, ou seja, não é uma atividade que se pratica para celebrar a chegada de uma estação do ano ou honrar alguma divindade. Trata-se de uma atividade que busca (nela e por ela mesma) produzir excitação – livrando-nos, nem que momentaneamente, do tédio da vida ordinária. Tédio produzido, em grande medida, pela própria forma de organização social do trabalho capitalista, que, posteriormente, oferece suas (pseudos)soluções, que se transformam, imediatamente, em (enormes) fontes de lucro para as grandes corporações capitalistas. Nesse sentido, podemos afirmar que – muito mais do que um meio de propagação de práticas que fortaleceriam a força moral e social da humanidade, como apregoava um de seus mais famosos apologetas, o Barão Pierre de Coubertin –, os Jogos Olímpicos modernos são, na verdade, um produto das artimanhas do capital.
* Felipe Tavares Paes Lopes é professor do Curso de Educação Física da Unicamp.
Para saber mais…
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Petrópolis: Vozes, 2019.
_____. Os Jogos Olímpicos. In: BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 123-128.
BROHM, Jean-Marie. 20 tesis sobre el deporte. In: BARBERO, Jose Ignácio (Ed.). Materiales de sociología del deporte. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta, 1993, p. 47-55.
_____. Sociología política del deporte. Ciudad del México. Fondo de Cultura Económica, 1982.
DUNNING, Eric. Sociologia do esporte e os processos civilizatórios. São Paulo: Annablume, 2014.
GUTTMANN, Allen. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia University Press, 1978.
PRONI, Marcelo; LUCENA, Ricardo (Orgs). Esporte, história e sociedade. Campinas: Autores Associados, 2002.