Heleno e a gana de vencer
Quando vemos o profissionalismo com que o futebol é praticado hoje em dia nos grandes times do Brasil e do mundo, cria-se um cenário nebuloso demais em nossas cabeças para que consigamos enxergar alguma relação maior de identificação de um atleta por um clube e pelo esporte que não o vínculo profissional e os ganhos financeiros, e na maior parte das vezes relacionamos o amor e devoção por um clube exclusivamente aos torcedores. O filme “Heleno” volta no tempo e mostra que na década de quarenta do século vinte, houve um jogador que fugia à essa regra contemporânea e com o qual todo torcedor sonhou em ter no seu time. Heleno de Freitas era esse jogador.
Como visto em nossas conversas neste curso sobre jornalismo esportivo, não existe derrota na cabeça da maioria dos atletas de ponta. O atleta é treinado e conduzido a já após uma derrota, iniciar seu preparo para uma próxima competição e desse jeito ignorar o grande sentimento que é amargar a derrota no esporte, talvez o mais importante sentimento que um atleta deva aprender. Heleno de Freitas sentia a derrota como ninguém. Jogando pelo Botafogo, ao errar um pênalti decisivo em uma final de campeonato contra o Fluminense, Heleno perde o controle, se pune e entra em conflito com o resto do time por não ver a indignação pela derrota que ele estava sentindo espelhada nos companheiros de equipe. Para Heleno, perder não era apenas parte do esporte, era inadmissível.
O filme mostra que tal comportamento era um conjunto de fatores que abraçavam Heleno: o estilo de vida extravagante, a postura de bad boy, o assédio das mulheres, as constantes notícias sobre ele nos jornais e o mais preponderante deles que era o narcisismo de Heleno. O filme inteiro mostra um Heleno que tinha para si que não havia no mundo jogador melhor que ele. Já no começo do filme, em uma cena de retrospecto, Heleno passa mal ao ver despontando na Copa de 58, aquele menino de 16 anos da cidade de Três Corações que viria a se tornar o atleta do século, um tal de Pelé. Heleno queria um copa, queria dar uma copa ao Brasil, queria estender seu protagonismo no Botafogo para o mundo e dizer isso não mais apenas à imprensa brasileira, mas à imprensa mundial. O ponderável nisso tudo é que Heleno de fato jogava bola, de fato resolvia em campo e sobretudo amava o que fazia e o clube em que jogava. Em certa hora do filme, Heleno discute com um companheiro de clube que questiona sua postura de jogador de futebol que deveria aceitar uma derrota e Heleno rebate de maneira convicta: “Eu não sou jogador de futebol, eu sou jogador do Botafogo!”. Para Heleno, o Botafogo era sua própria vida, como ele mesmo dissera quando da opinião do médico do clube para que Heleno ficasse um tempo afastado do futebol para tratar o que a época era uma suspeita de sífilis e que depois se confirmou e o matou aos 39 anos. Nada o faria parar, o Botafogo precisava dele e sobretudo ele precisava do Botafogo.
Quando o filme foi lançado em 2012, era comum as entrevistas e os artigos sobre o filme venderem o filme como o primeiro registro de um bad boy do futebol nacional, perfil com o qual cansamos de assistir nos noticiários esportivos e que a imprensa adora dar a palavra para que se levantem polêmicas. No entanto, vejo Heleno como uma espécie de Aquiles, alguém a quem foi dado um grande dom e vontade, que sabia aproveitar esse reconhecimento a seu favor, mas ansiava absurdamente por uma glória sem fim. Heleno queria jogar a Copa de 50. Heleno faria dela sua Guerra de Tróia e fincaria seu nome na história do futebol. Mas não foi possível, já que Heleno se recusava a se tratar da sífilis que evoluía e o deixava cada vez mais debilitado e fora de controle. Ao tentar retornar ao Botafogo após ser negociado com o Boca Juniors da Argentina e não ter se adaptado, Heleno ao ouvir do presidente do clube que o Botafogo não teria dinheiro para pagá-lo inteiramente pelo seu valor, é de novo categórico: “Presidente, vocês nunca puderam me pagar, mas aqui eu jogo até de graça.”
A maior qualidade de Heleno foi também seu maior inimigo, sua autoconfiança exacerbada o alçou ao estrelato do futebol brasileiro mas o impediu de cuidar de sua própria saúde e de viver uma vida mais dedicada ao futebol fora do campo. Heleno achava que não precisava treinar, que perto dos outros ele faria a diferença sem o mínimo esforço extracampo. Fumava e bebia muito e fazia uso de solventes inalantes. Já debilitado física e neurologicamente pela sífilis, o filme mostra um Heleno amargurado pelo seu destino e com uma difícil relação com a fama que havia construído. Ao ser pedido para dar autógrafos, parece que Heleno não sabia lidar com esse reconhecimento mas ficaria bravo se não o pedissem. Uma cena do filme parece esclarecer esse espectro em que atitudes paradoxais de Heleno se encaixavam: ao se comunicar com sua mãe, Heleno reitera que poderia ter sido bom em qualquer profissão que tivesse escolhido, teria sido uma grande médico ou advogado, mas Heleno confessa que eram aqueles gritos, aquele caos dos estádios de futebol, aquele volume aumentado na iminência do gol que o movia. Apesar de toda pretensão e nenhuma verbalização, o que vi foi que Heleno queria mesmo era dar vitórias ao invés de desfrutar delas. Seu ressentimento ao falar sobre a derrota de 50 paira como empáfia ao menosprezar os jogadores mas ilumina com a luz do sol sua lamentação por ele não estar ajudando seu país.
Heleno foi uma espécie única. No fim do filme, Heleno crava o seu lado do maior dilema da literatura mundial. Ao dizer que ele era a gana de vencer em pessoa, Heleno responde à Hamlet quando este lhe pergunta: “Ser ou não ser?”. Heleno responde: “Eu sou.”
(por Pedro Henrique Ferraz)