TEM CANGURU VIRANDO BRASILEIRO
A Estação Primeira de Mangueira, uma das escolas de samba mais populares do Brasil, causou grande mobilização quando anunciou que seu enredo, em 1994, homenagearia os doces bárbaros, famoso quarteto baiano formado por Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa. O samba-enredo “Atrás da Verde e Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu” se tornou um hino atemporal do carnaval e, naquela época, foi, provavelmente, uma das músicas mais tocadas em todos os cantos do Brasil. Apesar da expectativa gerada e perspectiva de título, o grito de “é campeã” não se concretizou para a Mangueira naquele ano. Diversos erros ao longo do percurso na Marquês de Sapucaí fizeram com que a escola de Cartola ficasse apenas no 12º lugar.
Naquele mesmo ano, a seleção feminina de basquete brasileiro tinha à frente mais uma disputa de campeonato mundial. Se a tradicional verde e rosa era uma das favoritas ao título do carnaval carioca, não se podia dizer o mesmo do conjunto brasileiro de bola ao cesto. Mas existia algo que unia a Mangueira ao time de Paula e Hortência: a melodia do samba-enredo mais popular de 1994, que serviu como base para a música que embalou o time brasileiro rumo ao seu primeiro e único título mundial até agora.
O mundial de basquete feminino de 1994 foi disputado no mês de junho, na Austrália. Era a 12ª edição de um torneio que, até então, só tinha duas equipes com títulos de campeãs: a antiga União Soviética com seis conquistas e os Estados Unidos com cinco. Imagino que o senso comum acreditava que os EUA levariam o título e que as donas da casa ou a China poderiam surpreender, já que a Rússia não estaria presente. Já pelas bandas de cá, o Brasil vivia um momento mágico no basquete feminino. A conquista no Panamericano de Cuba, em 1991, trouxe à seleção uma notoriedade que talvez nunca tivesse tido antes. O reconhecimento de Fidel Castro da superioridade brasileira no ato da entrega das medalhas foi um marco na história da nossa seleção. Não é difícil imaginar que muitas pessoas se tornaram fãs da seleção a partir desta conquista transformando a dupla Paula e Hortência em novos ídolos nacionais.
O Brasil, que contava com uma comissão técnica nova e um treinador estreante em competições adultas, fez seu ciclo de preparação para o mundial em algumas cidades do nordeste e, durante o retorno para o Rio de janeiro, o assessor de imprensa Sérgio Barros criou uma versão em cima do samba-enredo da Mangueira para o grupo que iria à Austrália.
Houve pouca cobertura da mídia, os jogos eram de madrugada e era também o período próximo do início de Copa do Mundo de Futebol. Relatos citam que apenas dois jornalistas tinham ido para a Austrália, mas as transmissões da TV Bandeirantes foram um alento para aqueles que não queriam perder nenhuma partida. Mesmo sem quase nenhuma tradição em mundiais e tendo participado pela primeira vez de uma olimpíada em Barcelona, ficando na sétima colocação entre oito participantes, os apaixonados pelo time brasileiro sentiam que o Brasil poderia fazer história. Se você não acompanhou o basquete feminino brasileiro na década de 90 e no começo dos anos 2000, talvez não vá entender o fascínio que a seleção exercia para quem a acompanhava.
O início do torneio não teve muita surpresa. O Brasil iniciou a primeira fase com duas vitórias e uma derrota, conseguindo avançar em segundo lugar para a fase seguinte. A seleção iniciou a segunda fase do torneio vencendo Cuba e perdeu o jogo seguinte para a China. Era necessário vencer a Espanha para chegar à chave semifinal do torneio. 09 de junho de 1994, o dia em que um dos jogos mais tensos, mais disputados e mais emocionantes aconteceu na história do basquete feminino mundial. Com uma defesa bem fraca, o time brasileiro passou todo o primeiro tempo sofrendo com o ataque preciso das espanholas. A primeira metade do jogo se encaminhava para o final, com o Brasil perdendo de 11 pontos quando Paula acertou uma bola de 3 pontos quase do meio da quadra no estouro do cronômetro. Foi um suspiro de esperança para quem estava acompanhando o jogo incrédulo e muitos se agarraram na possibilidade de que aquele lance fosse o prenúncio de uma virada de jogo no segundo tempo. E foi. Cesta a cesta, o time brasileiro foi diminuindo a vantagem. O desalento por ver distante a possibilidade de se chegar à semifinal deu lugar a ansiedade da espera por saber em qual minuto o Brasil tomaria a dianteira no placar. Mas este momento demorou uma eternidade e ainda teve requintes de crueldade. Faltavam 57 segundos para o final da partida, a Espanha liderava o placar por três pontos e tinha um lance livre. Caso fosse convertido, teria direito a um segundo lance. Uma vantagem de cinco pontos seria praticamente impossível de ser revertida com o pouco tempo restante. Mas a espanhola errou e, a partir daí não fez mais nenhum ponto na partida. Foi apenas faltando 19 segundos para o encerramento do jogo que o Brasil passou a Espanha no placar. Janeth ditou o ritmo nos segundos finais dentro de quadra e fora dela, um outro ritmo começava a surgir nos bastidores do torneio.
A música criada pelo assessor de imprensa passou a ser cantada com mais frequência, os versos que cita “…Aplausos ao time inteiro, tem canguru, virando brasileiro. Me leva que eu vou seleção, tô indo pra Austrália quero voltar campeão…” deixava de ser apenas um trecho para motivar um time e se tornava uma profecia. Nem o poderoso time americano, acostumado a vencer os mais importantes campeonatos, foi capaz de parar a seleção brasileira. O Brasil demonstrava uma concentração e uma maturidade durante a semifinal que surpreendeu o mais descrente dos americanos. Em nenhum momento o time comandando por Miguel Ângelo da Luz deu sinais de que iria perder o jogo e seguiu assim, determinado e destemido até a final contra a poderosa seleção chinesa. Mesmo tendo a MVP do torneio, uma pivô de 2,04 m, a China foi uma presa relativamente fácil para o Brasil na vitória por nove pontos de vantagem.
Pela primeira vez uma seleção, que não os EUA ou a União Soviética ostentava o título de campeã mundial de basquete feminino. E lá se vão 30 anos desta conquista. A seleção ainda teve fôlego para ganhar uma medalha de prata nas Olimpiadas de Atlanta em 1996 e uma de bronze em Sydney 2000. Para a posteridade e documentos históricos, os jogos contra os EUA e China talvez sejam considerados os mais importantes daquela conquista, mas quem acompanhou jogo a jogo durante as madrugadas de junho de 1994 talvez considere o jogo contra a Espanha o dia em que o canguru virou brasileiro.
O SAMBA DA SELEÇÃO
Miguel da Luz e Sergio Maroneze
Vão cortando um dobrado,
Pra que o Brito não se enfeze
Me diga quem?
Raimundo Nonato
Levando essas feras para o campeonato
Marisia, Hermes,\”Doutora Marli\”,
Zé da Banheira e o grande professor Waldir (OBA)
Helen, Roseli, Leila,
Ruth, Simone, Adriana e Dalila (Bis)
Lá vem Tuiú!
Alessandra e Cíntia, ô !
Os nossos coqueiros vão brilhar
Vai Janeth, disparando, pronta pra marcar
A rainha mais audaz, é sensação
Show de graça e precisão
Hortência explode coração !
Encanto e magia, chegou !
Faz a finta, arremessa, ponto!
Cada assistência um brilho de esplendor,
Seu nome é Paula (Aplausos)
Aplausos, ao time inteiro,
Tem canguru
Virando brasileiro
(Me leva) Me leva que eu vou, seleção
Tô indo pra Austrália quero voltar campeão (Bis)
* Emiliana Ramos é publicitária e escritora