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Humberto
rosa |
E
tudo começou porque tinha uma porta no meio do caminho. Francisco
Rebolo, recém-saído do futebol profissional, foi o
primeiro a chegar ao Palacete Santa Helena. Em 1934, ele instalava
na sala 231 o seu escritório de pintura e ornato de paredes.
Pouco depois veio o empreiteiro e decorador Mário Zanini,
que fixou-se ao lado, na 232, ligada à primeira por uma porta
interna. A amizade veio daí e foi também nesse momento
que outros como Manoel Martins, Fulvio Pennacchi, Humberto Rosa
e Alfredo Volpi passam a chegar ao prédio da Praça
da Sé para formar uma pequena comunidade de pintores. Ligados
menos por tendências estéticas que por semelhanças
sociais e afinidades culturais, o grupo Santa Helena, como ficaria
conhecido, era formado por artistas com uma característica
muito marcante: imigrantes ou filhos de imigrantes, como esses,
eles precisavam trabalhar para viver. Eram artesãos, ferreiros,
torneiros-mecânicos. Para contar a história desses
“artistas proletários”, como eram chamados por
Mário de Andrade, o Museu de Arte Contemporânea (MAC)
da USP acaba de lançar o livro Operários na Paulista
– MAC USP e artistas artesãos, uma série de
reflexões e ensaios críticos sobre a mostra de mesmo
nome que até o último dia 19 ocupou a galeria do Sesi.
Com textos das curadoras da exposição, Elza Ajzenberg
e Daisy Peccini, e de pesquisadoras do museu, uma série de
ensaios escritos por Mário Schenberg – o célebre
físico da USP e crítico de arte, já falecido
– e também fotografias e imagens das obras e dos artistas,
o livro é o primeiro volume da Coleção MAC
USP. “Essa edição cumpre um duplo objetivo:
além de acompanhar a exposição, ela abre uma
coleção de documentos e trabalhos, resultado das pesquisas
realizadas pelo museu”, conta Elza, diretora do MAC e organizadora
de Operários na Paulista.
A
pintura pela pintura
Sem
idéias preconcebidas, o grupo não se via como uma
nova corrente ou um movimento artístico. “Éramos
meia dúzia de amigos cujo traço comum era não
gostar dos acadêmicos e querer a pintura verdadeira, que não
fosse anedótica ou narrativa, a pintura pela pintura”
– assim Rebolo definiu, em 1945, de que forma eles se caracterizavam.
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A
Praça da Sé em 1939: palco de atuação
dos "artistas proletários" |
Por
trabalharem durante o dia, reuniam-se à noite para sessões
conjuntas de desenho de modelo vivo e nos fins de semana partiam
para o subúrbio e cidades próximas, aonde iam pintar
campos e marinhas. Com sua postura, o Santa Helena acabaria por
abrir um caminho bastante diverso daquele trilhado pela parcela
mais intelectualizada, ligada à Semana de 1922. A maioria
era autodidata, à exceção de Bonadei e Penacchi,
que estudaram Belas Artes na Europa e, ao contrário dos modernistas,
filiados à Escola de Paris, pouco conheciam das vanguardas
internacionais. Todos, até pela ascendência italiana,
teriam sua mais forte influência na arte do século
novecento, a grande tradição da pintura de Giotto.
O diálogo que estabelecem é, portanto, com um momento
anterior ao Modernismo, com tendências pós-impressionistas
e pós-expressionistas. “Do ponto de vista estético,
é possível observar em suas obras releituras espontâneas
ou indiretas do Impressionismo, das formas construídas de
Cézanne ou traços incisivos de Van Gogh”, observa
Elza.
No
entanto, cabe ressaltar que é do domínio da técnica,
essencial à profissão que exerciam, e não de
um conhecimento da história da arte, que nasceu a sua concepção
estética. “Ao debruçar-se na pintura como exercício
de um ofício, os artistas artesãos, como dizia Mário
de Andrade, contribuem para um projeto dedicado ao honesto, humilde
proceder do métier, e trazem para o campo da pintura visualidades
novas locais, temas populares, paisagens urbanas, suburbanas, rurais,
cinzas foscos, a manifestação de uma sensibilidade
nova que Mário de Andrade atribuía a um refinamento
de espírito”, explica Daysi Peccini.
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Clóvis
Graciano |
O local
comum de trabalho teria sido o laço mais forte entre esses
artistas. Além disso, o contato com o proletariado os marcaria
de maneira definitiva e deixaria sempre traços, tanto nas
figuras humanas que construíam quanto nas paisagens que gostavam
de pintar, representativas do interior. Os ambientes simples, os
campos suburbanos, as naturezas-mortas. As periferias distantes,
as casas solitárias, os descampados, os restos de verde que
margeiam a cidade que ganha chaminés, fábricas e arranha-céus.
“Mesmo pintando Itanhaém ou uma natureza-morta, esses
artistas tudo enxergam através da miragem de subúrbio
paulistano”, diria sobre eles Sérgio Milliet.
Através dessas obras é possível ainda vislumbrar
um painel da realidade paulistana das décadas de 30 e 40,
os novos problemas que advinham com a industrialização
crescente e desordenada. São Paulo passara rapidamente de
uma cidade com ares provincianos a maior centro industrial da América
Latina. Em suas telas, esses artistas captaram como se deu esse
momento de transformação social e urbana intensa.
As cenas da incipiente metrópole são fisgadas por
olhos atentos de repórteres-pintores, capta-se o ritmo que
impõe-se aos habitantes da cidade, apreende-se uma São
Paulo onde tudo e todos parecem estar sempre em movimento.
O
sabor comum
Com
o tempo esses artistas, unidos pelo desejo de escapar do academicismo
e que dividiram o mesmo espaço de trabalho, acabaram por
se diferenciar. Cada um, aos poucos, foi construindo uma trajetória
com características pessoais. “Contudo, todos conservam
pontos de contato, que continuam sempre a distingui-los de outros
artistas”, ressalta Mário Schenberg, num dos ensaios
publicados em Operários na Paulista. Para ele, esses pontos,
ainda que tênues, estão sempre presentes, e são
implacáveis. “Têm todos o sabor inconfundível
e a pureza comovedora de primitivos autênticos, mesmo quando
se aproximam das correntes de vanguarda.” Ao contar e analisar
detidamente a trajetória de cada artista através de
artigos de diferentes autores, o livro acaba por abrir a possibilidade
não só do entendimento dos caminhos pessoais, mas
também desse elo que os une, desse sabor comum. “Os
autores são pesquisadores que conhecem profundamente tanto
o Santa Helena quanto o período em que ele atua, as décadas
de 1930 e 1940”, diz Elza Ajzenberg.
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Aldo
Bonadei |
Rebolo,
uma das figuras exponenciais do grupo, para quem a paisagem foi
sempre o eixo central da criação, é objeto
de análise de Schenberg. Através de pinceladas simples,
de telas feitas sempre em meios-tons, o pintor buscava uma reaproximação
do homem com o mundo que o cerca. “Toda a obra de Rebolo gira
em torno desse encontro do Homem com a natureza, na vivência
e fruição espontânea das coisas mais simples
da vida e do mundo”, escreve Schenberg, que mais adiante irá
aproximá-lo do santelenista Manoel Martins.
Martins
era também ele um apaixonado pela questão paisagística
e, ainda mais que Rebolo e Aldo Bonadei, dedicou-se à paisagem
urbana. “O grande encanto das paisagens de Manoel Martins
resulta da sua capacidade de ter desenvolvido a sua arte sem haver
perdido uma pureza de visão primitivista, que conservou mais
do que os seus companheiros do Santa Helena, mesmo Rebolo. Na sua
pintura vemos a transformação radical da paisagem
paulistana, captada sempre pela mesma visão da década
de 30. Há assim na paisagem de Martins um sutilíssimo
efeito de coexistência do momento atual com uma visão
subjetiva de outra época.” Em suas telas, Martins problematiza
a questão da vivência do tempo, e talvez seja esse
o seu aspecto mais original. O agora mistura-se ao que o artista
evoca do seu passado. Nas paisagens que pintava, misturava o presente
da metrópole com cenas recordadas da sua infância no
Brás. Em meio às suas pinceladas traços de
tristeza ressoam, uma espécie de desencanto com a desumanizada
paisagem urbana.
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São
Paulo nos anos 30: a cidade ganha ares de metrópole
|
Muitos
caminhos
Nessa
teia de artigos, em que cada um dos santelenistas foi alvo da reflexão
de um autor, o leitor tem desde um panorama geral, onde são
apresentadas as condições de produção
e o cenário histórico, até as motivações
e traços individuais, o que permite entender o movimento
em sua complexidade. Uma identidade é garantida ao grupo
sem que cada artista se dilua no coletivo. Entre essas reflexões
é possível destacar algumas. Lisbeth Rebollo Gonçalves
recupera o abstracionismo de Aldo Bonadei, Alice Brill conta os
anos de formação de Mario Zanini. Elza Ajzenberg reflete
detidamente sobre Rebolo, explicando o seu desejo de “comunicação
da realidade interior com a realidade exterior”, de união
com a compreensão profunda da natureza. “O mundo não
é um espetáculo para ser simplesmente contemplado
ou exaltado, senão uma experiência, e a pintura é
um modo de vivê-la. A natureza para Rebolo não é
objeto e sim motivo, estímulo para a criatividade”,
escreve ela.
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Alfredo
Volpi e Mário Zanini |
Outro
destaque é o artigo “Volpi, a sabedoria da pintura”,
de Kátia Canton. Em seu texto, Kátia recupera uma
breve biografia do artista que nasceu na Itália e veio para
o Brasil com dois anos. Como filho de imigrantes pobres,Volpi logo
teve que trabalhar e aprendeu o ofício de pintor de paredes.
Aos 15 anos de idade, vivendo em condições de escassez,
ele já impressionava pela precisão de seus desenhos
e pinturas, mas seria no seu encontro com Rebolo, Bonadei, Zanini
e Clóvis Graciano no Santa Helena, onde compartilhavam as
discussões sobre arte e sessões de modelo vivo, que
ele sistematizaria a sua produção artística.
Através de cenas rurais e de urbanização inicial,
Volpi constrói, como os companheiros do grupo, uma pintura
plena de pureza, calcada no simples. O artista se dispôs a
ver as pessoas invisíveis ao mundo moderno, a fé do
povo em seus santos, mulheres que passam a vida debruçadas
em janelas, crianças e suas brincadeiras que o mundo moderno
iria tragar. Com as bandeirinhas e as fachadas caiadas de casinhas
que pintou, ele atribuiu harmonia a um mundo desordenado. “Em
sua simplicidade, Volpi chegou muito longe”, escreve Kátia.
“E hoje fala muito perto aos olhos e ao coração
de cada um de nós. Eis a plena sabedoria dessa pintura.
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Alfredo
Volpi |
MAC
comemora 40 anos
Criado
quando Ciccillo Matarazzo resolveu doar parte do acervo do
Museu de Arte Moderna (MAM) para a USP, o MAC celebra em 2003
os seus 40 anos. Primeira coleção especializada
em arte do século 20 da América Latina e com
um acervo de mais de 8 mil obras, entre óleos, gravuras,
esculturas e trabalhos conceituais, o museu pretende neste
ano organizar uma extensa programação cultural
comemorativa. “Pretendemos fazer uma síntese
da trajetória do MAC durante esses anos e também
homenagear artistas e personalidades que fizeram parte da
sua história”, diz Elza Ajzenberg, diretora do
museu.
Segundo
Elza, essa programação deve incluir exposições
do acervo, mostras temporárias, nacionais e internacionais,
seminários e workshops com a participação
de artistas, museológos, críticos de arte e
antigos diretores do MAC, além do lançamento
do site MAC Virtual. Um outro destaque deve ser a retomada
da área expositiva da sede do museu no Pavilhão
Ciccillo Matarazzo, no Ibirapuera. O museu, que hoje já
é o segundo mais visitado do Estado, quer crescer ainda
mais. “Tivemos no ano passado um aumento de 20% do número
de visitantes. Pretendemos alcançar uma visibilidade
maior e também ir ao encontro do público”,
conta a diretora.
Duas
publicações também estão previstas,
o Livro comemorativo sobre os 40 anos do MAC USP, que trará
uma coletânea de textos reflexivos sobre a trajetória
do museu, e o Catálogo geral do MAC USP, em que será
feito um levantamento completo das obras do acervo. A seguir,
algumas exposições previstas para os próximos
meses, com data ainda não determinada:
“Exposição
Permanente do Acervo MAC USP” – Mostra
representativa sobre a trajetória histórica
do museu, destacando contribuições dos ex-diretores,
artistas, especialistas da Universidade e da comunidade, em
comemoração aos 40 anos de fundação.
Essa iniciativa será acompanhada de seminário
e seção de homenagem às personalidades
envolvidas com a história da instituição.
“Diálogos
de Arte Contemporânea” – Exposição
de artistas que em seu percurso artístico representam
pontos importantes no acervo do museu. A proposta é
convidar cada artista para que intervenha no espaço
do museu, proporcionando ao público a observação
de seu processo criativo.
“Nave
dos Insensatos” – A temática da
exposição está ligada à tela Nave
dos Insensatos, de Hieronymus Bosch, expressando a idéia
de que somos todos navegantes em busca de um lugar seguro
e as contradições do mundo provocam dúvidas
e equívocos. Artistas: Amílcar de Castro, Antônio
Henrique Amaral, Arcângelo Ianelli, Caciporé
Torres, Carlos Vergara, Cláudio Tozzi, Ivald Granato,
José Roberto Aguilar, Baravelli, Maria Bonomi, Siron
Franco, Sonia von Brusky, Tomie Ohtake, Tomoshige Kusuno e
Wesley Duke Lee.
“To
see in the dark” – Exposição
de fotografias da artista italiana Benedetta Bonichi, inserida
em uma tendência contemporânea que expande os
limites restritos da linguagem fotográfica pura. As
imagens resultam de experiências com técnicas
diversas, como o raio X, e abordam questões ligadas
ao corpo e seus vestígios. Em paralelo, a curadora
Helouise Costa, do MAC, reunirá fotógrafos brasileiros
contemporâneos, propondo um diálogo visual.
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