Sete de março de 1808. Quando D. João foi entrando devagar na Baía da Guanabara com a sua nau, Príncipe Real, de 67 metros de comprimento, ficou perplexo. Sol escaldante, céu azul e o mar sinuoso. Ele ali, soberbo, com a rainha Maria I e mais de mil tripulantes. Cem dias de viagem e o príncipe-regente e sua Corte, como mandava o figurino,

Autor: jean Baptiste Debret

trajados de roupas pesadas de veludo, sapatos de fivelas, perucas... A paisagem era muito diferente da cidade da epidemia de dengue, da violência, das favelas, da alegria do Flamengo, das garotas de Ipanema.

D. João se deparou com uma capital colonial semelhante a uma vila africana com outros problemas e epidemias. Como lembra Jurandir Malerba, professor da Unesp e autor do livro A Corte no exílio, era uma cidade destituída de qualquer conforto para recepcionar a monarquia, sem recolhimento de dejetos e com a metade da população constituída por escravos ou escravos libertos. Um povo com o hábito de mascar e cuspir tabaco para anular os efeitos da falta de urbanização. Porém, ficou impressionado diante da baía deslumbrante, diferente de tudo que tinha visto em Portugal, a mesma que até hoje atrai turistas do mundo inteiro.

Para lembrar os 200 anos de D. João e sua Corte, a TV USP reapresenta nesta terça-feira, dia 15, o programa A Corte no Brasil, dentro da série Olhar da USP. A equipe da emissora entrevistou especialistas na tentativa de debater os mitos e verdades sobre os 13 anos do rei no Brasil. “Até que ponto a vinda da família real influenciou a independência brasileira? Ou criou uma identidade nacional?”, questiona Ana Paula Chinelli, diretora da programação. “A nossa

equipe procurou trazer diversos pontos de vista, analisando as curiosidades da instalação da Corte e o impacto das mudanças implantadas por D. João na nossa história.” O programa estreou no dia 3 e vem sendo reapresentado em diferentes horários ao longo das duas últimas semanas.

Para ampliar o debate, o Jornal da USP também conversou com historiadores sobre os 200 anos da vinda da Corte portuguesa. Uma celebração que, em vez de elucidar os fatos, vem, segundo os especialistas, aumentando os mitos. Na pressa de cumprir a pauta das efemérides, a mídia, segundo os especialistas, aumentam os equívocos da história.

Revisão da história – “Vejo toda e qualquer efeméride como um bom pretexto para uma revisão da história, divulgação e reflexão”, observa João Paulo Garrido Pimenta, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Humanas (FFLCH) da USP. “No caso de 1808, não vejo de modo diferente. Embora alguns acontecimentos do passado possam e devam ser comemorados, não é este o caso.  Não que se trate de algo negativo, mas simplesmente porque o que ocorreu em 1808 é importantíssimo por si só. É essa importância que deve ser compreendida. Trata-se de uma profunda ruptura na história do império português, da qual a do Brasil fazia parte, e que começou a criar as condições para a independência de 1822.”

O professor lamenta a falta de capacidade dos envolvidos com a celebração dos 200 anos de divulgar um conhecimento de qualidade. “O papel da mídia nesse momento é medíocre. Fala muito do acontecimento, mas veiculando mitos, distorções, tornando tudo banal e, evidentemente, tratando fatos importantes da nossa história com superficialidade. Da parte dos historiadores, pouca coisa realmente nova tem aparecido. Assim, esses 200 anos, infelizmente, apresentam-se, no meu entender, como um modismo pouco produtivo, uma oportunidade desperdiçada.”

Autor: Geoff Hunt
Chegada das embarcações trazendo a família real ao Brasil, em 1808

Jurandir Malerba também protesta contra o contexto em que vivemos, que torna a história uma mercadoria nas prateleiras ao acesso do grande público. “A celebração atual de acontecimentos históricos seminais no sentido da construção da memória sempre existiu. Porém, a maneira como é feita em nossos dias começou a ser praticada e teorizada a partir da década de 1980 pela historiografia francesa da geração do bicentenário da Revolução Francesa. Para essa historiografia fortemente conservadora, muito incensada pelos historiadores brasileiros até hoje, importa menos a história do que a comemoração. De modo que essa perspectiva se fez conveniente tanto para os police makers como para a grande mídia, que incorporou as efemérides em seu calendário.”

Monarca típico – Importante lembrar, no entanto, que a mídia se baseia nas pesquisas dos historiadores, que, por sua vez, reclamam que as suas opiniões são distorcidas e fragmentadas. Mas como é a figura real de D. João? “O único soberano europeu a colocar os pés em terras americanas em mais de quatro séculos e foi quem transformou uma colônia em um país independente”, escreve o jornalista Laurentino Gomes no livro 1808. Ou, como aponta Malerba, uma figura importante na trajetória do país. Pois era o mandatário do império português nesse quadrante fundamental da história mundial do império português que se estendia pela América, África e Extremo Oriente. “No entanto, devemos ser ponderados nesse juízo”, alerta o professor. “Para ficar na estrita esfera do estado e das relações diplomáticas, D. João não teria feito sozinho o que fez. Havia um aparato do estado e uma cultura política dentro da qual se movia. Mas não fosse ele, não tivesse morrido seu irmão D. José, não tivesse incapacitada sua mãe, a rainha D. Maria, como agiria outro mandatário? Não se pode desprezar a força das circunstâncias.”


A Corte de D. João VI no Brasil: família real trouxe benefícios reais para a antiga colônia

Para Garrido Pimenta, é um equívoco considerar D. João um benfeitor do Brasil, pois nisso ele não pensava. “Também é uma barbaridade considerá-lo um estadista soberbo, especialmente talentoso, bem como seu extremo oposto: um bonachão panaca que era traído por sua mulher. Era um estadista comum, típico, só que atuando em um contexto especialmente dramático.”

Laurentino Gomes descreve D. João como um príncipe medroso, mas que passou para a história “relativamente bem-sucedido, especialmente quando comparado aos seus pares da época, todos destronados, exilados, presos ou mesmo executados pela onda revolucionária francesa. Príncipe regente e, depois de 1816, rei do Brasil e de Portugal, ele tinha medo de siris, caranguejos e trovoadas. Durante as freqüentes tempestades tropicais, refugiava-se em seus aposentos na companhia do roupeiro predileto, Matias Antonio Lobato. Ali, com uma vela acesa, ambos faziam orações a Santa Bárbara e São Jerônimo até que cessassem os trovões”.

Garrido Pimenta cita D. João como um monarca nem mais nem menos preparado do que a média dos demais monarcas portugueses e europeus de sua época. “Seu grande diferencial é que, por força das circunstâncias, teve que enfrentar um desafio incomum: garantir a manutenção da monarquia portuguesa e da unidade do império em meio ao mais sério desafio de sua história, oferecido pelo avanço napoleônico sobre a Península Ibérica. A curto prazo, reagiu muito bem, só que ele não agiu sozinho. Foi amparado por um conselho de ministros.”


Com a chegada da família real portuguesa e sua corte, mudavam-se os costumes no Rio de Janeiro

A idéia de transferir a Corte para o Brasil, segundo Garrido Pimenta, não era nova. Foi pensada em outros momentos de dificuldades. “Importante destacar também que as melhorias tomadas por D. João e sua equipe no Rio de Janeiro, a partir de 1808, são pensadas como melhoria para o império português e não para o Brasil. Portanto, é um tremendo equívoco avaliar esse governo em termos de benfeitorias para o Brasil.”

O professor lembra que os fatos são pouco favoráveis às homenagens atuais à vinda do rei. “Pouco se fala do aumento brutal da importação de escravos africanos ocorrida em 1808, do massacre de povos indígenas que habitavam capitanias vizinhas ao Rio, uma típica política de extermínio levada a cabo pelo governo de D. João no Brasil, ou de todos os descontentamentos que a nova Corte provocou em outras capitanias, como Pernambuco, Maranhão e Pará, que nada ganhavam com essa nova sede. A história dos acontecimentos de 1808 é muito mais sinuosa do que as atuais comemorações deixam ver.”

D. João e a Independência – Outra dúvida: até que ponto a vinda da família real influenciou a independência brasileira? Será que D. João tinha essa preocupação com o futuro do Brasil? O historiador Malerba explica que muitos autores não gostam de misturar a vinda da Corte com a Independência. Mas não há como negar essa correlação. “Basta lembrar o que aconteceu na América espanhola, que se esfacelou para o bem ou para o mal, por meio de revoluções cruentas, em inúmeros entes políticos, que, na maioria, adotaram o regime republicano e aboliram o trabalho escravo.”

Autor: Rugendas
Rua Direita, no Rio de Janeiro: Corte encontra ambiente tropical e mulato

Malerba afirma que a presença da Corte no Rio de Janeiro imantou as elites locais em torno de um projeto de poder que exigia a manutenção da integridade social, mas particularmente a manutenção do regime produtivo, baseado na concentração da terra, na produção monocultora voltada ao abastecimento externo e no trabalho escravo. “Esse foi o botim que receberam as elites locais em troca da preservação de um corpo político unitário, monárquico, que manteve à testa um herdeiro da Casa de Bragança.”

Para Garrido Pimenta, a Independência pode começar a ser pensada quando o espaço colonial luso-americano se torna, de modo inédito, sede do máximo poder imperial português. “Isso aumenta o tamanho da colônia, conferindo-lhe uma importância que até então não tinha. A partir daí, e também com a criação de muitas fissuras nesse império que D. João e seus ministros queriam manter unido, tem gente que perde com a saída da Corte de Lisboa, tem gente que ganha com sua instalação no Rio. Essa relação se inverte com a volta da família real, em 1821, de modo que o que ocorre em 1808 cria descontentamentos e contradições por toda parte. Esse clima propicia as condições para que as pessoas passem a pensar na criação de um estado no Brasil separado de Portugal.”

Dois séculos depois, como podemos pensar nos efeitos do governo de D. João na realidade atual? Será que existem? “Talvez seja forçar nas tintas derivar o Brasil de hoje daqueles acontecimentos”, reflete Jurandir Malerba. “Mas duas coisas são fundamentais: primeiro, que D. João trouxe consigo todo um aparato do estado português. Aqui se instalou a máquina administrativa do império com suas mesas, secretarias e desembargos, com suas forças militares. Ora, um ano depois do retorno do rei houve a Independência e aqui já havia um estado em pleno funcionamento, que sofreu poucos ajustes de imediato. Segundo ponto importante foi o modo como se deu a aproximação do período joanino, do príncipe-regente e sua corte com as elites residentes no Rio de Janeiro, num sistema simbiótico de toma-lá-dá-cá que definiu qual seria o projeto vitorioso após a emancipação política: o das elites do centro-sul, que assumiram as rédeas do estado nascente e se arrogaram a primazia da construção do estado monárquico ao longo do século 19 à sua imagem e semelhança. Muitos dos vícios de nossa história política, até os dias de hoje, remontam a esse momento fundador do estado e da nação brasileira e da forma como isso se deu ao longo do século 19.”

Na avaliação de Garrido Pimenta, a falta de conteúdo histórico na divulgação das comemorações desses 200 anos leva a uma reflexão importante. “De todo modo, considero como trágico o fato de que o Brasil insiste em ignorar o papel nodal, crucial da educação de qualidade como ferramenta de desenvolvimento da nação. Nossa incapacidade de conhecer minimamente nossa história é apenas uma parte disso, que evidentemente joga para muito longe a possibilidade de divulgações e revisões críticas acerca dessa história.”

O programa A Corte no Brasil, da série Olhar da USP, será reapresentado pela TV USP nesta terça-feira, dia 15, às 12h30. A TV USP integra o Canal Universitário de São Paulo (CNU) ao lado de outras oito universidades paulistanas. Ela pode ser sintonizada pela NET (canal 11, digital e analógico) e pela TVA (canal 71, analógico, e canal 187, digital), na cidade de São Paulo.

 

Eventos cariocas e joaninos

Capital da colônia e cidade que recepcionou, hospedou e serviu de base para a Corte portuguesa durante os anos em que ela permaneceu nos trópicos, o Rio de Janeiro é o foco principal das comemorações dos 200 anos de chegada da família real ao Brasil. É de lá que emanam os principais eventos comemorativos e é também do Rio que o diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva, presidente  da Comissão Organizadora das Comemorações, cuida da agenda cultural deste tão falado bicentenário.

Já foram lançados, por exemplo, vários livros que tratam dos mais variados aspectos da chegada da família real, cobrindo áreas como história, filosofia, artes plásticas, arquitetura, música, costumes, gastronomia e saúde. São títulos, na maioria dos casos, que procuram lançar novas luzes sobre o papel e a importância da Corte no Rio de Janeiro, além de destacar alguns aspectos mais curiosos, como o volume A arte da cozinha, da Editora Senac-Rio, que apresenta receitas da época em que Dom João devorava seus franguinhos com regularidade. Esses livros não são o que se poderia chamar de “publicações oficiais”, já que a intenção dos organizadores das comemorações não é revestir a efeméride de pompas e circunstâncias que possam afastar o interesse e a curiosidade do público.

O resgate da figura do homem que aportou no Rio como príncipe-regente e voltou a Lisboa como rei é, inclusive, um dos pontos principais dessas comemorações, como destaca Costa e Silva. “Não podemos medir um estadista pela sua feiúra ou por ser glutão. D. João foi um dos poucos governantes brasileiros que alterou definitivamente a vida nacional”, acredita o diplomata, que tem feito da Academia Brasileira de Letras, que ele já presidiu, um dos pólos de discussão acerca dos 200 anos da chegada da família real. Em março, por exemplo, a ABL recebeu o historiador inglês Leslie Bethell para falar a respeito das relações de Brasil, Portugal e Inglaterra em 1808, durante o 1º Ciclo de Conferências da ABL. Nos próximos meses, será a vez das historiadoras Lília Schwarcz, Lorelai Kury e Lúcia Bastos abordarem o tema.

A intenção da organização oficial das comemorações é pontuar todo este ano com eventos no Rio de Janeiro que remetam à reflexão de tudo o que a vinda da Corte portuguesa para o Brasil representou para o país – desde a criação da Impressão Régia, da abertura dos portos e da fundação do Banco do Brasil –, incluindo aí a própria proclamação da Independência. O Brasil, tal como o conhecemos, teria sido talvez impossível se não fosse o drible de corpo que D. João deu em Napoleão.

MARCELLO ROLLEMBERG

 
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