A mendiga e a cachorra morta
O Brasil não é para amadores. Ultimamente, o mundo também anda de lascar. Por sorte temos os “grandes”, que nos inspiram com arte para que suportemos as agruras e as coisas pequenas, mas chatas de doer, da vida.
A cachorrinha morreu na quarta-feira, 9 de março de 2022, depois 16 anos de adoção e dois anos de vida nas ruas, sabe-se lá em quais condições. Morreu sem dentes, debilitada, caduca, sem forças pra se levantar, bebendo água na seringa, com toda a decrepitude da idade, dando gritinhos de dor. Apesar de tudo, seu corpinho canino de vira-lata sofrido se recusava ao descanso eterno por modo natural. Não teve jeito: eutanásia foi a solução.
Bem no dia da morte da cadela, o Brasil celebrava a eliminação de Jade Picon do Big Brother Brasil ocorrida na véspera. Parte da rejeição à moça milionária no reality se deveu ao discurso da própria de que daria o prêmio de R$ 1,5 mi para cinco instituições de caridade, incluindo ONGs de meio ambiente – vejamos os paradoxos da vida: logo Jade Picon, a criatura que usa calcinhas descartáveis, se propondo a fazer doações para meio ambiente. E doações justamente com o prêmio do BBB, logo ela, a pessoa rica desde o berço e que conseguiria arrecadar o montante milionário com poucos stories no Instagram. A pessoa rica disposta a dar migalhas aos pobres foi eliminada com rejeição – ainda bem – mostrando que seu papinho de caridade vazia não colou.
Eliminada a Jade e morta a cadela (a vira-lata, pois a do fascismo está viva e sempre no cio), seguia eu pela Major Mariano com o corpinho da cachorra numa caixa de papelão, quando começou a chover. Me abriguei na sacada de uma casa, onde permanecei por alguns minutos com o cadáver nos braços, quando lembrei da peça O Mendigo e o Cachorro Morto. E era o que poderíamos estar parecendo, eu e a defunta, naquele momento: uma mendiga e uma cachorra morta. Só faltou passar um rei ou rainha na calçada para nos agredir, mas os reis do mundo agridem mesmo à distância.
E finalizo esse texto homenageando todos os cachorrinhos vira-latas do Brasil que resistem a toda sorte de maldade; lembrando Brecht, o gigante do século 20 que nos ajuda a suportar as agruras contemporâneas e sabendo que o Brasil é muito melhor que essa elite cafona que apazigua sua consciência dando migalhas aos pobres. Que o “basta” aos ricos seja mais intenso nas eleições de outubro.