O Abajur
Desde pequeno eu tive cisma com abajures. Creio que aquela cantoria da mãe “que será/da luz difusa do abajur lilás/se nunca mais vier a iluminar/outras noites iguais”, deixou essa cicatriz.
De sorte que, nas andanças pelo mercadão central, garimpando objetos oferecidos a preço de desapego, encontrei aquele que se tornaria a minha última cisma.
Gostei dos detalhes, quatro peças de vidro translúcido, perfeitamente encaixados no esqueleto de arame. Desenhos de gueixas na porcelana dos pés, um cabo curto com a chave liga-desliga e o soquete interno para lampadas.
– Quanto custa esse abajur moça?
– Cinquenta reais para o senhor.
A moça era bem simpática, apesar da cicatriz atravessada na face e o olho ligeiramente estrábico. Na parede atrás da moça uma placa pendurada “lar doce lar”.
Nem pechinchei, coloquei na sacola e paguei. Voltei para casa assoviando a cantoria da mamãe.
Instalou-se direto no criado mudo, ao lado da cama, na qual me deito solitário. Um certo tremor de contentamento subiu pelos ossos da costela quando liguei a chave e uma luz difusa clareou o cantinho do quarto.
Estava assim absorto quando ela esticou a cabeça pela porta entreaberta:
– Recolheu essa imundície no lixo?
Normalmente ignoro esse tipo de provocação, raramente tenho disposição para brigas, especialmente quando estou feliz:
– Não gostou do meu abajur, querida?
O canto da boca dela acusou uma ruga de ciúmes. Pudesse eu voltar no tempo e apagar essa frase, teria feito. Aquela ruga me trouxe lembranças desagradáveis.
– Te cuida! Esse lixo, vestido de abajur, carrega alma de gente morta.
Dito isso, a cabeça dela desapareceu pelo vão enquanto a porta fechava suavemente.
Senti uma dor intensa no estômago, olhei para o meu amigo desconfiado. Um calafrio retornou pela espinha.
Não dormi naquela noite. Ou melhor, dormi no escuro, o abajur no canto, apagado.
* Carlos Alberto Muzille é escritor e ativista ambiental