Torta Napoleão: um patrimônio cultural de Piraju
Por Isabella Marin Silva
Acompanhe essa matéria ouvindo o episódio do podcast “Registros de Piraju”!
É quase uma obrigação vir para Piraju e experimentar a famosa torta Napoleão. A cidade do interior de São Paulo, cortada pelo rio Paranapanema, apresenta ricos patrimônios culturais materiais e imateriais e na área da gastronomia não foi diferente. Composto por camadas de massa e creme, é um espetáculo único da estância turística. Criado por volta da década de 50 por Isair e Anita Vecchia, o doce faz sucesso no município e fora dele, sendo o grande preferido de muita gente em comemorações. Para começar, conheceremos um pouco mais de quem foi dona Anita e dona Isair (ou dona Zaíra, como também era conhecida) e quem pode falar mais sobre é Rodnei Vecchia, administrador de empresas formado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ele também é ambientalista e autor dos livros “O Meio Ambiente e as Energias Renováveis” (2010) e “Energia das Águas: Paradoxo e Paradigma” (2014). Além disso, nosso entrevistado é filho de Isair e neto de Anita Vecchia, sendo a pessoa certa para falar sobre as criadoras da famosa torta.
RODNEI VECCHIA: Minha mãe era uma pessoa de uma generosidade sem tamanho, uma santa. Todo mundo fala bem, normalmente, dos pais, mas minha mãe era uma pessoa ímpar. Se você pudesse perguntar para as pessoas que ainda a conheceram na cidade, quem era dona Zaíra e o que ela fazia, era uma pessoa assim fora do tempo, visionária. Minha vó idem, minha vó era mais troncuda, rústica, mas também muito generosa. Minha mãe ajudava muito nas festas do Asilo São Vicente de Paulo, ela era uma costureira exímia, era uma daquelas donas de casa que faziam tudo, inclusive costurar, e fazia as roupas para eu e meus irmãos. Ela ia com frequência ao asilo costurar roupa para os velhinhos dentro da generosidade dela e, as festas juninas, fazia torta napoleão a rodo e ficava lá nos dias de festa vendendo doce para arrecadar dinheiro para o asilo. Participava ativamente de todos os eventos do Asilo São Vicente de Paula e o doce sempre fez parte dessas festas em Piraju, sempre.
I.M.S: A ideia da famosa torta surgiu a partir de uma festa de aniversário na qual Dona Anita se encontrava presente. A festa acontecia na loja maçônica, a mesma que continua localizada ainda hoje na Rua Washington Osório de Oliveira, em frente à Praça Joaquim Antônio de Arruda, em Piraju. Era lá que ocorriam algumas comemorações de aniversário dos filhos de maçons e é lá também que nasce a ideia da torta.
RODNEI VECCHIA: Os maçons acostumavam comemorar o aniversário de filhos aos sábados, na loja maçônica. Era um evento para a cidade, a loja maçônica em frente à praça e uma esposa de um maçom trouxe uns pequenos petit four, que era uma massa com creme para distribuir entre os presentes nesses aniversários. Cada um trazia uma coisa de casa para comemorar: uns traziam refrigerantes, outros bolos, outros salgados, e virava uma festa na loja maçônica aos sábados. Meu pai era maçom, Roberto Vecchia, que tinha uma mercearia ali ao lado da padaria Florença, hoje um bar, em frente à Igreja Matriz, e era precursor dos supermercados, o armazém de secos e molhados. Em um desses aniversários de comemoração de aniversário de dois irmãos meus, a minha avó notou esse pequeno doce e, dentro da criatividade e perspicácia dela, gostou do sabor e começou a desenvolver o doce numa forma de torta. Foram feitos alguns testes para chegar a um tamanho mais ou menos de um bolo de aniversário e aí foram apurando a receita, a forma, o jeito, até ao formato com quatorze camadas de creme e quatorze massas. Não é uma massa folheada, é uma massa feita a mão, bem sequinha, crocante e, quando colocada no doce, ela amolece porque fica em contato com o creme. Então é um doce que não é simples de fazer, é trabalhoso, ele precisa de ao menos dois dias porque de um dia para o outro a massa e o creme ficam descansando na geladeira e no dia seguinte que se coloca o chocolate. Antigamente era o chocolate do padre, mas ele deixava um pouco de água na parte debaixo da torta e não ficava um sabor tão bom; de repente, a minha mãe (a minha vó já tinha falecido) substituiu esse chocolate do padre por ganache.
Loja Maçônica Cavalheiros do Sul, em Piraju, na década de 50. (Fonte: Rodnei Vecchia) Local onde era o armazém de secos e molhados de Roberto Vecchia. (Fonte: Rodnei Vecchia).
I.M.S: A partir daí, muitas pessoas passaram a se deliciar com a invenção das duas e também começaram a aprender o modo de fazer a torta. Com o passar do tempo, foram sendo criadas diferentes versões: alguns colocavam outro tipo de chocolate, outros montavam as camadas de maneira diferente ou com ingredientes adicionais. Rodnei conta que o segredo para a torta ficar tão saborosa como a da receita original é o uso de ingredientes naturais e sem tanta química em sua composição.
RODNEI VECCHIA: A minha mãe tentava falar para as pessoas fazerem a receita como ela tinha concebido e depois fez alguns ajustes junto com a minha avó, né, mas hoje tem muitas versões e o gosto não fica parecido como o pessoal das antigas está acostumado, da coisa original mesmo, feita com muito carinho e ingredientes naturais e originais. Ela sempre pedia para que fizesse a receita original, tentasse não colocar leite com muita química, que a manteiga não fosse substituída pela margarina, que a massa não fosse a massa folhada e sim a massa feita a mão bem fininha, que a torta tivesse quatorze camadas de massa, nem mais, nem menos, com o tamanho certo dela. São aquelas detalhezinhos… acho que se você já fez um café expresso numa máquina torrando o grão, você sabe, um simples café, quanta diferença não dá no paladar se não faz a coisa correta.
I.M.S: Agora, mesmo conhecendo todos esses detalhes, por que realmente a torta recebeu o nome de “Napoleão”?
RODNEI VECCHIA: O nome do doce Torta Napoleão muito provavelmente é uma homenagem que minha avó, Anita Longo Vecchia, e minha mãe Isair Rocha Vecchia quiseram fazer ao imperador Napoleão Bonaparte que, na França, costumava cuidar pessoalmente daquilo que saía da cozinha para atender a ele e aos seus súditos e guerreiros. Depois da atuação forte de Napoleão, a cozinha francesa tomou um rumo muito melhor do que já tinha. Outra característica do doce mil-folhas, que é massa, creme, massa, creme, é espelhada naqueles petit four franceses, que também dizem ter origem húngara, mas a França que tomou a frente desses doces. Então, é uma conjunção de homenagem ao imperador com a origem de massa creme que é a base da torta Napoleão criada pela minha avó e minha mãe.
I.M.S: Dona Anita e Dona Isair eram apaixonadas pela cozinha. As duas cozinharam juntas muitas vezes, ainda mais pelo fato de morarem parede a parede uma com a outra na Rua João Hailer. Os maravilhosos quitutes que muitos pirajuenses tiveram a honra de saborear partem dos pratos mais doces até os salgados, com delícias de dar água na boca de qualquer um.
RODNEI VECCHIA: As duas cozinhavam muito. A minha vó foi a precursora da cozinha na família. Ela cozinhava muito bem, aprendeu com a mãe dela, espanhola de quatro costados e transmitiu os conhecimentos dela para a minha mãe e as duas, por um tempo, cozinharam juntas e faziam não só doces, como a torta napoleão e diversos bolos, mantecal, brigadeiro, cabeça alemã, torta alemã, torta de amendoim, quindim, torta de maçã, pavê, enfim, uma infinidade de doces que a comunidade pirajuense apreciou por anos a fio, como também salgados, esfihas, coxinhas – tudo que elas faziam era de uma elaboração sui generis né, muito esmero, muito capricho e também uma necessidade para sustentar a família, em épocas de crise principalmente. Então elas faziam muitas coisas doces e salgadas.
I.M.S: Há, ainda, outras razões para a inspiração das duas na cozinha?
RODNEI VECCHIA: Essa inspiração, creio eu, tenha vindo dos ancestrais de minha avó, que sempre gostaram muito de ir à cozinha, espanhóis, mas também a minha mãe era originária de roça, então é um pouco o que está no DNA dessas pessoas que gostam do campo, gostar também da cozinha, da cozinha artesanal. A outra coisa que aguce isso pode ser a necessidade de ter uma renda adicional para sustentar a família em épocas de crise, que sempre tínhamos isso, com minha família muito humilde, muito simples. E um terceiro fato, numa cidade pequena, você tem tempo suficiente para poder ir à cozinha, cuidar de fazer isso para as pessoas que queriam comprar e também para sustento da própria família. Então é um conjunto de fatos que levou à essa arte da cozinha, tanto em doces quanto em salgados.
I.M.S: A torta fez parte da vida de muitas pessoas e, claro, a do próprio Rodnei Vecchia?
RODNEI VECCHIA: Torta Napoleão eu acho que no primeiro dia que saí do hospital e fui para casa já me deram um pedacinho dela, exagerando né (risos). Eu nem era nascido, nasci em 1959, essa torta já existia, já era consumida pelos pirajuenses e a minha mãe e minha vó, na generosidade delas, ensinaram muitas pessoas a fazer o doce. Eu me lembro, e é uma das lembranças que eu tenho do doce, eu e minha irmã, Rosângela, um ano mais nova, na cozinha de casa ou na cozinha da casa da minha avó que elas moravam parede e meia uma com a outra, ali na Rua João Hailer 365, um pouco para cima do Colegio Objetivo, do lado contrário ao colégio. Eu tenho muitas lembranças, enquanto criança, minha mãe fazendo o creme da torta ou a massa da torta e eu ia lá pedir para raspar a panela, que ela deixasse um pouquinho do creme, junto com um pouquinho da massa, parecia uma massa biscuit, bem crocante, e comíamos aquilo e sempre quando minha mãe que fazia uma torta para fora, fazia uma pequenininha para nós.
Família Vecchia em 1973. Da esquerda para direita, respectivamente: Rodnei, Ronaldo, Roberto, Isair, José Roberto e Rosangela Vecchia. (Fonte: Rodnei Vecchia) Homenagem para Dona Isair no Iate Clube Piraju em festa promovida pelo jornal Observador, em 2012. (Fonte: Rodnei Vecchia)
A torta fez e continua fazendo muito sucesso na cidade e também fora dela. A todo momento uma nova pessoa conhece esse doce e, com ele, conhece também um pouquinho de Piraju e da história de dona Isair e dona Anita. Por isso, como diz Rodnei em seu artigo: “Usem, abusem e se lambuzem. De Piraju para o mundo e para a eternidade do domínio público”.
Rodnei Vecchia também administra uma página no Facebook onde compartilha diversos conteúdos sobre a torta Napoleão, receita de sua família que você pode acessar pelo https://www.facebook.com/TortaNapoleao/?ref=page_internal.
Segue abaixo a receita original da torta Napoleão, doce criado por Anita e Isair Vecchia, de Piraju:
Referências:
VECCHIA, Rodnei. Isair Rocha Vecchia criadora da Torta Napoleão de Piraju homenagem. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=_q2BXq4bDdo&feature=youtu.be. Acesso em 2 de outubro de 2020
VECCHIA, Rodnei. Energia das Águas: Paradoxo e Paradigma. Editora Manole, 2014.
VECCHIA, Rodnei. O Meio Ambiente e as Energias Renováveis. Editora Manole, 2010.
VECCHIA, Rodnei. Torta napoleão, patrimônio cultural de Piraju! Administradores. Disponível em:
https://administradores.com.br/artigos/torta-napoleao-patrimonio-cultural-de-piraju. Acesso em 2 de outubro de 2020