Maria Conceição Pereira Martini: a história de uma mulher extraordinária na Piraju dos anos dourados

Por Isabella Marin

Dona de casa, mãe carinhosa e uma esposa fiel era o perfil esperado de uma mulher ideal nos anos 50. Ou seja, uma figura feminina sem a possibilidade de se posicionar diante dos debates sérios e com a tarefa de honrar os cuidados com o lar e de seus filhos. Felizmente, Maria Conceição Pereira Martini estava muito além de seu tempo. 

No livro Tessituras Femininas na Piraju dos Anos Dourados (2014) é possível conhecer mais dessa personalidade. Escrito por Luciana Souza Carvalho, Mestra em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a obra é fruto de sua dissertação de mestrado . Dividido em três capítulos, as histórias sobre Maria Conceição são contadas por meio de entrevistas e registros deixados pela professora e escritora, assim como de suas alunas.  

Seja da década de 50 (no qual se encaixa o período conhecido como “Anos Dourados de Piraju”, de 1950 a 1964) ou em nosso contemporâneo século XXI, muitas das condições femininas descritas assemelham-se ao que temos hoje. Do livro, podemos retirar uma gama de aprendizado e reflexão diante dos fatos expostos, com cuidado e criticamente, por Carvalho. É uma leitura que, certamente, vale a pena, especialmente às mulheres que desejam conhecer mais sobre a própria história das pirajuenses.

Livro Tessituras Femininas na Piraju dos Anos Dourados (2014), de Luciana Souza Carvalho. [Imagem: Divulgação/Isabella Marin]

Capítulo 01: Uma vida de “Maria”, um olhar de “Maria” na Piraju dos Anos Dourados

No dia 27 de abril de 1914, na cidade de Fartura (a 33 km de Piraju), Maria Conceição Pereira tinha seus primeiros momentos de vida. A menina, que logo viria a se tornar uma professora, ambientalista, poetisa e figura de destaque na sociedade pirajuense, era apenas mais uma ‘Maria’ em uma cidade no interior de São Paulo.

Com o tempo, se casou com Américo Martini e teve três filhos: Selma, Sylvio e Fernando. Após ser abandonada pelo marido e com crianças para cuidar, Maria Conceição se muda para Piraju e consegue um emprego como professora de Economia Doméstica. Tal cargo ensinava “moçoilas” da sociedade a se comportar, cozinhar, bordar e todos os tipos de tarefas domésticas esperadas de uma mulher da época.

Maria Conceição e seu marido, Américo Martini. [Imagem: Arquivo pessoal/Flávia Assaf]

No primeiro capítulo do livro, Carvalho relata toda a vida de Maria Conceição detalhadamente. “O principal na trajetória da dona Conceição foi que ela era uma mulher de seu próprio tempo, mas, ao mesmo tempo, ela era uma mulher que desafiava as regras desse período. As mulheres da década de 50 tinham o ideal da rainha do lar, a esposa e mãe, aquela que está dentro de casa. E dona Conceição estava trabalhando para sustentar os filhos de um casamento desfeito e os criou com muita dignidade”. Além disso, a escritora também apresenta outras atuações da personagem fora das salas de aula. Maria Conceição também foi uma cidadã comprometida com o que acontecia na sociedade e chegou a participar de muitos movimentos, algo longe do esperado.  

“Ela ensinava as meninas da elite a exercerem esse papel perfeito de esposa e mãe, de dona de casa, de mulher do lar, mas ao mesmo tempo ela estava batalhando para criar os filhos, foi uma mulher interessadíssima nas artes, nas questões da cidade, se envolveu nos movimentos da cidade, foi uma das fundadoras do grupo dos Alcoólicos Anônimos (AA)” E ainda complementa: “Foi uma mulher preocupada com as demandas da sociedade em um tempo em que isso não era muito comum, que esse papel público não cabia às mulheres. Historicamente, o papel público é masculino, e o das mulheres é o privado, mas Conceição conseguiu transitar entre esses dois mundos de uma forma bastante interessante.”

Diferente de muitas de sua época, Maria Conceição mantinha um diário pessoal, onde registrava muitos pensamentos e poesias de sua autoria. As outras mulheres de seu tempo até escreviam anotações íntimas, mas antes do casamento, visto que a maioria dos escritos eram na esperança de encontrarem o amor. Após isso, não havia razão para continuar mantendo tais expectativas — mesmo para aqueles que se casavam, mas continuavam sem amor. 

Alguns dos poemas de Maria Conceição registram seu amor aos pais, filhos e até ao próprio marido, que a havia abandonado e iria retornar para ela ao final de sua vida. Tantos outros registravam seu pensamento sobre temas da época e a forma como via as coisas.  

Não sei* 

Se sou poetisa não sei

sei que ao olhar para o céu

sinto o azul transcendental

sinto a brisa no meu rosto qual carícia fraternal

*MARTINI, Maria Conceição Pereira. In: Poesia Palavra Sentimento. São Paulo : João Scortecci Editora, 1992. p. 43.

A lágrima quente do arrependimento**

ao rolar de teus olhos

veio molhar minha face unida à tua

num gesto de compaixão por tua dor.

[…]

Meus lábios, como cálice sagrado

receberam a hóstia pura da sublimação de tua dor

num beijo incontestável do mais puro perdão.

[…]

Lábios nos lábios, braços se apertando com ardor

nossas almas se fundiram novamente para o amor

na felicidade da reconciliação.

**MARTINI, Maria Conceição Pereira. Reconciliação. In: Poesia, Palavra e Sentimento. São Paulo : João Scortecci Editora, 1992. p. 45.

Flávia Assaf, filha de Selma e neta de Maria Conceição, lembra carinhosamente da avó: “Minha avó tinha uma compleição física miúda, mas era uma fortaleza. Era uma mulher firme em seus princípios, sabia se fazer respeitar. Era uma professora nata: ensinava sempre com humildade e paciência. Como avó, era carinhosa, protetora, provedora. Sua casa era um refúgio onde, além das comidas maravilhosas, tinha muitos livros, todo tipo de ferramentas e material para artesanato. Além disso, ela era uma autoridade dentro da família, nossa ‘segunda instância’. Muitos problemas que nós, os netos, tínhamos com nossos pais eram intermediados por ela e eram sempre resolvidos a nosso favor!”, relata. 

Selma Assaf, Flávia Assaf com Flora no colo e Maria Conceição Martini. [Imagem: Arquivo pessoal/Flávia Assaf]

Capítulo 02: A modernidade invade a intimi(ci)dade pirajuense

É nesse capítulo que Carvalho aborda a historicidade a respeito dos “Anos Dourados” que Piraju viveu. As mudanças no município e as grandes reformas que teve nesse período. Um mundo de máquinas e ferramentas para ajudar na vida da dona de casa começa a surgir. A modernidade incidia na cidade, refletindo-se também no interior das casas.

Nessa parte, Carvalho apresenta esse “novo mundo” que as mulheres da época tiveram que se adaptar e como Maria Conceição passava isso a suas alunas. Nos cadernos das estudantes de Economia Doméstica, anúncios de máquinas de lavar, ferros elétricos, geladeiras, aparelhos de liquidificador e batedeira eram expostos nas aulas para conhecimento de todas.  

Maria Conceição e suas alunas de Economia Doméstica. [Imagem: Arquivo pessoal/Flávia Assaf]

Claro, as propagandas eram cheias de significados que remetiam sempre aos cuidados da beleza, praticidade e um ideal feminino comportado, dócil e querido. Em um anúncio de remédio para tosse, de Peitoral de Scott, a propaganda ilustrava um gentil homem conduzindo uma mulher (frágil) por um caminho. Em outros anúncios semelhantes, as frases “Sempre feliz” e “Viva sempre sorrindo” foram destacadas. 

Mesmo com todas as facilidades que os aparelhos, máquinas e invenções para usos femininos — a pílula anticoncepcional, por exemplo — possam ter trazido, Maria Conceição ainda se preocupava com um trabalho bem feito. “Fui aluna da minha avó no ‘ginásio’, nas matérias de Artes Manuais e Economia Doméstica. Ela costumava dizer que, para o trabalho ser bom, o avesso deveria ser confundido com a frente, ou seja, não deveríamos deixar fios soltos, nós grosseiros. Enfim, nada poderia estar fora de lugar no avesso ou no direito do trabalho. São ensinamentos desse tipo que nos formam e nos marcam em nossas vidas profissionais quando adultas. Buscar a qualidade máxima possível sempre, em trabalhos manuais ou em outro tipo de trabalho qualquer”, relata Flávia Assaf, que hoje é publicitária, historiadora e editora do Flor de Sal (editora que publicou o livro).  

Capítulo 03: De corpo e alma: uma breve história de corpos saudáveis e moral ilibada na Piraju dos Anos Dourados

Mulher***

Ele a fez matematicamente mulher

para ser

somada ao companheiro

multiplicada em sua prole

dividida com a humanidade

subtraída nunca em seu Eu maior: – ser mulher.

Deu-lhe

beleza ao corpo escultural

bondade ao coração maternal

doçura para vida matrimonial

inteligência para ser do homem uma igual

calor para vivência fraternal 

discernimento para ética e moral

Deu-lhe

os parâmetros para ser feliz.

***MARTINI, Maria Conceição Pereira. Mulher. In: Poesia, Palavra e Sentimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1992. p. 07.

Maria Conceição deixava bem claro sua opinião sobre o papel da mulher e seu ideal, mesmo que ela própria não representasse alguns deles. Ser professora, uma profissão muito valorizada na época, a ajudou a passar por cima do fato de ser uma mulher separada do marido, o que rendia polêmica naquela época.

Essa característica única de Conceição foi um dos elementos que atraiu Luciana para a escrita do livro centrada em sua figura. “Eu encontrei a poesia, que é autobiográfica, e trouxe todas essas questões que gostaria de trazer do diário na poesia e das contradições entre uma sociedade que pregava uma coisa e uma mulher que na realidade não se encaixava nesse mesmo perfil, mas que estava ali no meio daquela sociedade ousadamente”, relata a escritora. 

Maria Conceição Pereira Martini em clube de lazer. [Imagem: Arquivo pessoal/Flávia Assaf] 

A primeira escolha de Carvalho para a pesquisa era por meio de diários de mulheres populares, com o intuito de contar a história daquelas que foram apagadas, daquelas histórias que não foram contadas. Longe da convencional história feita e representados por homens, a luta era conhecer aquelas mulheres simples, de uma das cidades mais antigas do interior paulista, Piraju.

Em seu livro, Luciana conclui suas considerações incentivando que é tarefa das mulheres pesquisadoras descortinar “as vivências femininas em Piraju, seja das mulheres da elite, seja das populares em outros momentos históricos. Sim, acredito que esse trabalho deve ser feito por mãos femininas, pela ótica feminina (…), com a sensibilidade que somente nós, mulheres, possuímos para compreender e reconstruir nossa própria história e da sociedade à qual pertencemos.”

Após o estudo, uma das coisas que Luciana Carvalho destaca em suas descobertas é que, embora as forças direcionassem as mulheres a um caminho de submissão e reclusão às paredes de suas casas, algumas não participaram dessa conjectura. A pesquisadora relata que muitas das alunas de Maria Conceição que contatou se tornaram profissionais extremamente bem sucedidas que não ficaram presas no papel de esposa e mãe e algumas nem mesmo chegaram a se casar e ter filhos. Foram jornalistas, empresárias, mulheres que sabiam fazer todas as tarefas esperadas delas e ainda assim escolheram um caminho diferente. “Apesar de uma educação que formava para um determinado papel social, muitas delas vão subverter esse papel como a própria dona Conceição Martini. Elas foram além e são o que elas quiserem ser. Isso é bastante interessante no mundo das mulheres”, conclui.  

ISABELLA MARIN é repórter e bolsista do projeto “Registro da Memória e do Turismo na Estância Turística de Piraju: desenvolvimento das habilidades comunicacionais no ensino fundamental I e II” do Programa USP MUNICÍPIOS

2 thoughts on “Maria Conceição Pereira Martini: a história de uma mulher extraordinária na Piraju dos anos dourados

  • 2 de março de 2021 em 09:24
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    Maravilhosa, deu aula de economia doméstica para nós. Um dia ela me disse que o advento do plástico (sacos plásticos) iria destruir a natureza…isso há pelo menos uns 55 anos atrás. Mulher de proza boa, astral bom…era puro aprendizado ao lado dela.

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  • 3 de março de 2021 em 08:59
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    Dona Conceição,quantas lembranças boas,além de ter sido minha professora de economia doméstica, era amiga da minha vó Elsa Camargo Lopes, com isso nossas famílias eram próximas e pude compartilhar muitos momentos de aprendizado com essa grande mulher a frente do seu tempo, muito carinhosa em seu jeito de ensinar e sempre muito acolhedora, saudades ❤️

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